O título do oitavo episódio dessa primeira temporada de Westworld é Trace Decay, que em português significa “decadência de traço”, uma teoria de psicologia que visa descrever o processo pelo qual nossas memórias ficam mais tênues, difusas, esmaecidas com o passar do tempo. É como se fossem desenhos cujos contornos (traços) fossem perdendo a clareza. Tente se lembrar de um fato ocorrido dez anos atrás — um fato que não tenha sido muito marcante em sua vida — e você vai entender. Ao tentarmos nos lembrar, parece que estamos assistindo o ocorrido de uma distância longa, com neblina no meio tornando o ato de assistir ainda mais difícil.
Como sempre é o caso em Westworld, a imagem sugerida pelo título vai permear o episódio todo, podendo ser identificada em vários momentos, e não apenas no momento principal que lhe dá o nome.
Lembra-se dos episódios que começam com Dolores sendo “religada” diante de Bernard? Então, este começa com Bernard sendo religado diante de Ford, e imediatamente mergulhando no remorso pelo assassinato de Theresa, de quem ele verdadeiramente gostava. Ford, sempre avesso às (ou incapaz das?) demonstrações de empatia, prefere comentar sobre o leque de emoções que Bernard pode exibir, atribuindo ao próprio Bernard esta amplitude, que permeia todos os anfitriões. Quando Bernard questiona Ford sobre o porquê do ato que foi obrigado a cometer, Ford responde com nada menos que uma variação de um monólogo do segundo texto fundamental sobre a relação do criador com suas criaturas: Frankenstein (o primeiro posto, obviamente, pertence à Gênese). Como explicação, Ford oferece as palavras ditas antes por Victor Von Frankenstein para suas ações no sentido de criar vida:
“A vida ou a morte de um homem seriam apenas um pequeno preço a pagar pela aquisição do conhecimento que eu procurava, pelo domínio que eu buscava.”
Demorou, mas finalmente os autores da série chegaram à obra maior de Mary Shelley. O que abre a possibilidade para outra que ouçamos, em algum momento futuro dessa história, outra frase famosa do livro, a ser expressa de uma posição em que o domínio se inverte e Ford (ou toda a Humanidade?) está sob o controle final dos anfitriões, conscientes, superiores, letais:
“Em algum momento você considerou as consequências de seus atos?”
Provavelmente seria pedir demais, eu sei.
Nesse momento estamos ainda muito distantes desse futuro hipotético: quando Bernard tenta dar vazão à sua ira — a lá monstro de Frankenstein — com uma simples frase, pronunciada em voz calma e baixa por Ford, ele congela, e se submete à vontade do criador.
Aqui é importante notar que essa conexão com Victor Von Frankenstein traz nova dimensão para os planos de Ford. O médico do livro buscava nada menos que igualar-se à divindade, criando a vida. Nesse sentido, os planos de Ford podem ser bem maiores do que simplesmente o controle sobre o parque ou a liberdade de criar narrativas: ele almeja muito mais do que isso. E “muito mais” para alguém que já criou seres mais fortes, mais inteligentes, e virtualmente indistinguíveis dos seres humanos, pode ser algo de verdadeiramente monstruoso e grandioso ao mesmo tempo. Dominar o mundo? Destruir a Humanidade, substituindo-a pelos anfitriões? Salvar a Humanidade de si mesma por meio dos anfitriões? O plano de Ford, certamente, é o maior segredo de Westworld, e desconfio que ficaremos ainda várias temporadas sem compreendê-lo de todo.
Qualquer que seja o caso, Bernard destrói as pistas que poderiam levar olhos inquisidores a liga-lo (e a Ford) com o assassinato. Ele promete a Bernard, com prêmio, o esquecimento, uma versão androide da “decadência de traço”, ou seja: o apagamento imediato da memória do crime contra Theresa.
No que concerne a executiva morta, aliás, o episódio contradisse o que muitos — esse que vos escreve, inclusive — esperavam: que Theresa fosse substituída por um anfitrião, supostamente já sendo preparado pela impressora no laboratório do porão da casa da floresta. Não: o corpo dela é apresentado a uma incrédula, mas calculadamente conformada Charlotte, sendo que uma história falsa da executiva ter escorregado e caído de um penhasco quando tentava transmitir dados para fora do parque é oferecida como explicação para seus hematomas, seus cortes e sua morte. Mais uma vez podemos observar a maestria com que Ford age: sempre com total controle sobre a situação, qualquer que seja a situação.
Charlotte, vendo seu plano ir por água (ou ribanceira) abaixo, mas emprenhada em colocar os preciosos dados dos anfitriões nas mãos da Corporação Delos, cria um “Plano B” na mesma hora, e coopta Sizemore, o roteirista cujo ego é ordens de grandeza maior que o talento para auxiliá-la em seus intentos. O plano dos dois beira o cômico: reativar um dos anfitriões “aposentados” — no caso, o “pai” de Dolores —, entupir-lhe a mente de dados, e contrabandeá-lo para fora do parque. Como ela espera fazer isso sem que Ford descubra no instante em que o anfitrião seja ligado é um mistério. Suspeito que ela tenha tanta chance de ser bem-sucedida nessa empreitada quanto se invadisse o CPD do parque e tentasse fugir carregando um dos servidores — do tamanho de uma geladeira — nas costas.
Na linha do tempo do passado (e a mim já não resta dúvida alguma de que se trata de uma história que ocorreu décadas antes da morte de Theresa), vemos Dolores e William encontrando um grupo de renegados brutalmente chacinado na beira de um rio. Um jovem, apenas, sobreviveu, mas fica claro que ele não tem muito tempo de vida. Dolores vai buscar água e vê-se, por um instante, morta, meio mergulhada no rio.Uma voz indistinta fala em sua cabeça “Venha me encontrar”. O acesso que ela tem às repetições que viveu começam a se confundir com a realidade, em mais um caso de decadência dos traços. Isto só vai se fazer aumentar ao longo desse episódio e, desconfio, de mais vários outros à frente.
Depois que o jovem morre, Dolores e William seguem seu caminho, até que a anfitriã anuncia que conhece o caminho, e olhando para uma clareira, anuncia que “está em casa”. No semblante dela e de William não poderíamos encontrar expressões mais distantes uma da outra: ela embevecida com o que está “vendo”; ele incrédulo como quem só vê um descampado, um lugar desolado e mais nada. Dolores vê o que não está mais lá: uma vila povoada, em que cidadãos vivem seu dia-a-dia. A cena corriqueira só se torna estranha porque um grupo de anfitriões dança no meio da rua, com uma técnica do parque direcionando os acontecimentos. Até Maeve está presente. Dolores, nesse momento, não está mais usando seu “traje de pistoleira”: calça e camisa, com o revólver na cintura, mas sim seu vestido azul que tanto a faz parecer com Alice, dos livros de Lewis Carroll. Os traços das memórias de Dolores estão totalmente esmaecidos nesse momento. Ela vê a “filha” de Lawrence, a menina que anunciou o labirinto para o Homem de Preto. A menina lhe pergunta se ela encontroe o que procurava, e antes que Dolores pudesse pedir esclarecimentos, um tiroteio se inicia. Dolores percebe que é ela que está atirando e matando todos os cidadãos, e quando volta a arma para sua própria cabeça, é salva — no momento real — por William. O presente de Dolores está se tornando uma questão de múltipla escolha.
“Onde nós estamos?”, ela pergunta a William, e quando ele responde “aqui, juntos”, ela devolve “Então quando nós estamos?” A Igreja que ela via é apenas a trama de metal da torre, carbonizada por algum incêndio ancestral. Pobre Dolores.
Eles se vão, e ao cair da noite pensam ver soldados da União ao longe, só para serem surpreendidos por mais renegados, desta vez liderados por Logan, que abre um largo sorriso para lhes informar que estão encrencados (apesar de não ser exatamente este o termo que ele usa). Suspeito que este é o início do fim do romance entre Dolores e William.
Maeve dá sequência à sua transformação, e sua participação nesse episódio é quando vemos mais progresso, mais mudança. E que mudança. Que surpresas essa mãe transformada em cafetina que não tem medo da morte nos reserva. Lembram do episódio 6, chamadoThe Adversary? Fui rápido em ligar o epíteto ao diabo, e busquei exemplos de adversários na série, concentrando-me em Ford e no Homem de Preto. Nesse processo, um adversário que a cada dia se torna mais formidável ficou de fora, e o erro é meu por essa omissão injusta. Maeve está se configurando em uma adversária de proporções tectônicas para uma futura luta com Ford.Ainda tenho uma desconfiança enorme de que o despertar dela está sendo milimetricamente coordenado pelo criador de Westworld, mas o fato é que eu não a iria querer como inimiga (e, penso, nem Ford).
Nós a encontramos, como é de costume, encostada no balcão do saloon Mariposa, desdenhando em silêncio da nova Clementine, que nem desconfia que é nova. Ela cai em uma reminiscência de quando era uma mãe, vivendo uma vida simples no campo, e viu sua vida ser rasgada em pedaços por um ato de violência. Imediatamente a vemos em outra posição corriqueira: nua, sentada em uma mesa de operações nos laboratórios de Westworld, diante de Felix e Sylvester. A cafetina se refere à menina, de quem já não se lembra direito, em mais um exemplo de decadência de traço sutilmente mencionado no episódio. Felix menciona exatamente a decadência de traço quando tenta explicar o fenômeno a Maeve: a mente dela é diferente da mente dos humanos (se é que Felix e Sylvester são, de fato, humanos, o que para mim ainda é uma dúvida enorme). No caso dos humanos, lembramos imperfeitamente, mas no caso dos anfitriões, as memórias, quando presentes, são perfeitas. Eles as revivem como se fossem realidade. É exatamente o que está acontecendo com Dolores.
Quando Feliz se oferece para dar mais informações sobre a garota e sobre o novo papel de Maeve como cafetina, uma surpresa: ela se recusa, pois sabe que são apenas narrativas fantasiosas. Ela está decidida a fugir, e tem coisas mais importantes com que se preocupar. Precisa da ajuda dos técnicos, pois quer mais modificações em suas capacidades, e precisa remover nada menos que uma bomba alojada em sua sexta vértebra cervical.
Parênteses: como as autoridades de saúde do mundo de Westworld permitem que robôs autômatos carreguem explosivos dentro de si enquanto interagem com armas de fogo em meio a seres humanos é algo que o consultor de segurança em mim jamais vai entender. Que as balas não causem dano aos humanos já é de difícil explicação, mas esperar que as explosões também não os prejudiquem já é “um tiquinho” demais. Mas estou derivando. De volta a Maeve.
Nesse momento temos uma belíssima homenagem à maior obra-prima da ficção científica de todos os tempos: 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. Os dois técnicos saem do laboratório e fecham a porta, conversando longe dos ouvidos de Maeve. Mas, do mesmo modo que o computador HAL-9000 conseguir ler os lábios dos astronautas Dave Bowman e Frank Poole, é certo que Maeve está a par de tudo o que estão dizendo.
Maeve quer ser levada a um dos laboratórios mais bem equipados de um andar superior para que as mudanças sejam feitas, e Sylvester quer aproveitar o momento para desligá-la e destruí-la de vez. Qual não é a surpresa do técnico nervosinho quando ela acorda antes que ele pudesse agir, com todas as mudanças feitas em sua mente. Aqui uma cena interessante: Maeve corta o pescoço de Sylvester, mas antes que ele perdesse a consciência, ela obriga Felix a “consertá-lo” com um aparelho que parece soldar a pele e reparar o dano às veias e artérias cortadas. Alguma dúvida de que Sylvester é um anfitrião? A teoria de que a maioria dos técnicos de Westworld é, de fato, artificial ganha corpo.
Com seus novos “atributos”, Maeve põe em ação seu intento de juntar um exército e fugir. Ela acaba de ganhar uma possibilidade que só vimos ser exercida por Ford e por Bernard até o momento: ela pode criar narrativas, direcionando os anfitriões a agir como quiser, regendo a invasão de Hector em busca de seu cofre como se fosse um balé. Bastante apropriado, portanto, que a música escolhida para a trilha sonora tenha sido a valsa do Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky. As palavras de Maeve levando o xerife a crer que os bandidos são, na verdade, “cidadãos honestos”, os auxiliares da lei a atirarem um contra o outro e outros comandos semelhantes dão um poder substantivo a Maeve, mas também atraem a atenção dos administradores do parque. À noite, quando ela tenta por seu golpe em curso, cidadãos, pistoleiros e a própria Clem são postos como obstáculos em seu caminho. Ela foge para seu quarto, e sua participação no episódio termina quando vemos os técnicos paramentados entrado para buscá-la. Uma perguntinha capciosa: são mesmo técnicos, ou são seus comparsas disfarçados, agindo de acordo com suas instruções? A ver.
A última participação do episódio fica por conta de Teddy e o Homem de Preto. Teddy começa a se lembrar, em flashes, do que o Homem de Preto lhe fez no passado recente: chamá-lo de perdedor, matá-lo enquanto arrasta Dolores para uma ligeira sessão de estupro.Mais exemplos de decadência de traço à moda dos anfitriões. Na cena seguinte temos mais uma pista apontando para a teoria das duas linhas do tempo. Eles encontram um massacre, perpetrado pelos homens de Wyatt. Em meio aos corpos, uma jovem convenientemente deixada viva, amarrada. A reação do Homem de Preto é curiosa: “Você por aqui? Achei que tivessem aposentado você”. Trata-se, como podemos ver nas fotos a seguir, a mesma anfitriã que cuidou de William em sua chegada ao parque:
Depois de se livrarem — com muito custo — de um dos assassinos mascarados que ainda estava por ali de tocais, Teddy desacorda o Homem de Preto com a coronha de seu revólver, prendendo-o. Quando este acorda, já de noite, nos conta um pouco de seu passado: um ano antes a esposa sofrera um acidente ao confundir as pílulas e se afogar na banheira. A filha, no entanto, conta que a esposa na verdade se suicidara, por medo do Homem de Preto. Ele nunca as tratara mal, mas elas não tinham dúvida do escuro em seu coração. Ele, então voltara as costas para o mundo e se embrenhara em Westworld. Para testar se seu coração era mesmo de pedra, criou um experimento simples: matou Maeve e a filha, descobrindo que nada sentia. Quando Maeve se levanta e arranca a faca do ventre, uma surpresa nas memórias de ambos: nós a vemos brevemente cortando o pescoço do Homem de Preto, mas a cena rapidamente corta para a rua de Sweetwater, com Maeve cortando o pescoço de Clem. Seria mais um caso de decadência de traço? Ou seria uma memória verdadeira do Homem de Preto, que nesse caso também seria um anfitrião, consertado logo depois e reinserido em seu papel em Westworld?
O episódio termina de maneira óbvia: a mulher “resgatada” havia sido plantada por Wyatt, e enterra uma flecha no ombro de Teddy enquanto os homens de Wyatt se aproximam.
A temporada está terminando, e pelas notícias amplamente divulgadas nas últimas semanas, a segunda temporada só começa em 2018. Vai ser um longo e tenebroso estio para os fãs da série.
Música da semana na pianola: tivemos duas! Começamos com House of the Rising Sun, de 1964, do grupo inglês The Animals. A música fala de um jovem (ou, em alguns casos, de uma jovem) que se perde como o pai, um jogador de cartas, na casa de prazeres. Belíssima escolha.
A segunda, Back to Black, de Amy Winehouse, com um verso que cai como uma luva para Maeve: “Só dissemos adeus com palavras / Eu morri cem vezes / Você volta para ela / Eu volto para a escuridão.”
Teoria Descartável da Semana: Charlotte sabe que seu plano de contrabandear os dados na cabeça de um anfitrião desativado não tem a menor chance de dar certo. Ela também sabe que Sizemore é um anfitrião e está na verdade tentando usar este idiota útil para fazer o almejado transporte.
Parabéns pela análise do episódio, muito boa. Só achei que faltou comentar um acontecimento que achei desconcertante: Ao ser perguntado pelo Cybernard antes do seu reboot se já havia matado alguém antes a seu mando, Ford diz categoricamente que não e como ele tem a prepotência característica de quem está com o jogo ganho acredito que não esteja mentindo. Num último flashback. Bernard se vê estrangulando a desaparecida Elsie, um fato recente. Ou seja, ele de alguma forma conseguiu manter controle sobre uma parte da sua consciência e também está jogando com Ford e todos os outros? Mistérios²! A teoria de que os técnicos sejam todos AI's também é muito boa, não tinha me ocorrido. Até por uma questão de segurança das tecnologias usadas no parque essa seria uma solução bem pensada. No mais, abraço e até o próximo episódio.
Obrigado, Giba! Muito boa a sacada de que Bernard pode estar agindo por conta própria. Realmente abre uma possibilidade interessantíssima. Eu não levei em consideração porque achei logo de cara que o Ford estava simplesmente (e descaradamente) mentindo. Afinal ele não teve cerimônia nenhuma em mentir adoidado na história da carochinha que inventou para justificar a morte da Theresa. Pensei que estava indo na mesma direção: agindo maquiavelicamente para atingir seus objetivos (quaisquer que sejam). as gosto muito da possibilidade de outra entidade (Bernard?) estar controlando o "Cybernard" (EX-CE-LEN-TE o apelido!), ou pelo menos em parceria oculta com ele. É do tipo de bola nas costas que um seriado inteligente assim passa na gente. Vou ficar mais do que atente de agora em diante para esta possibilidade e sou grato por ter me apontado a ela. Obrigado novamente pela participação. Semana que vem tem mais!
Excelente análise, gostei muito do texto e vou acompanhar sempre.
Obrigado pelo carinho, Mateus! Até semana que vem!
Parada garantida após cada episódio! Ler o seu comentário engrandece muito a experiência proposta pela série e traz muitas referências enriquecedoras. Obrigado e parabéns!
Puxa, Sérgio, muito obrigado pelo carinho. Assim a gente se anima de continuar a fazer o trabalho. Até a semana que vem, então!
Muito bom!! Li todas as suas resenhas e gostei bastante. Coloquei seu site nos favoritos.
Obrigado, Fernanda! Semana que vem tem mais. Pena que tá acabando a temporada. Vai ser duro aguentar até a próxima, viu...