Chegamos à metade da temporada e, ao que parece, ainda estamos sendo apresentados aos mistérios de Westworld. Esta situação me parece bastante normal, pois espero que a série tenha no mínimo três temporadas. Se eles conseguirem manter o nível dos roteiros, espero que a série dure pelo menos por uma seis ou sete temporadas. A ver.
Começamos o episódio vendo Ford novamente em companhia de Bill, o proto-anfitrião, mineiro velho, que sempre está disposto a ouvir o velho “amigo”. Bill aposta que Ford tem histórias para contar, e Ford não se faz de rogado. A história que conta sobre o cachorro de corrida da raça greyhound que ele e o irmão ganharam quando crianças é — como ele próprio anuncia — triste. É, também, significativa em vários níveis. O cão, acostumado a correr atrás de um coelho de brinquedo nas pistas de corrida, segue em disparada atrás do gato que vê pela frente na primeira ocasião em que se vê solto. Com sua enorme velocidade, o cão não demora em pegar o gato, alcançando sua presa pela primeira vez na vida. Ele obviamente estraçalha o gato, e depois fica sem saber o que fazer. Ford pode estar falando sobre várias personagens de Westworld: ele próprio (“Consegui fazer o parque, e agora? Consegui fazer robôs virtualmente indistinguíveis de seres humanos, e agora?”); Dolores (“Ela vai encontrar sua liberdade, e depois?”); o Homem de Preto (“Ele vai encontrar o centro do labirinto, e depois?”); Theresa (”Ela vai conseguir escalar até o topo em sua carreira executiva, e depois?”). Desconfio que a história se encaixe em todos esses casos, mas que ele está falando especificamente de Dolores, cujo caso acompanha de perto. É um alerta para os objetivos que estabelecemos para nós, e também uma nota em harmonia com o título do episódio: Contrapasso.
Contrapasso é o nome da punição que Dante define como sendo o processo de opor ou imitar o pecado cometido. É, por exemplo, a punição que o autor italiano atribui aos magos, adivinhadores e astrólogos, que vivem de prever o futuro (atividade explicitamente proibida no Velho Testamento). Eles têm sua cabeça invertida, sendo obrigados a caminhar para trás a partir daí. Outro exemplo de Dante é a punição a Henrique, o Jovem, filho do rei Henrique II da Inglaterra. O jovem é decapitado no inferno, lembrando o pecado de ter decapitado politicamente o pai, um rei legítimo, quando trabalhou por arruinar seu reinado a fim de subir ao trono.
O greyhound que atinge seu objetivo é condenado a não ter mais objetivo sem a satisfação de ter cumprido o que se propôs. Dolores está em busca de sua liberdade. O que lhe ocorrerá se (quando?) conseguir?
Reencontramos a jovem em um cemitério improvisado nas proximidades da cidade de Pariah (um nome que já prenuncia o que lá encontraremos), e ouvimos uma voz na cabeça da jovem demandando: “Encontre-me”, ao que a jovem responde: “Mostre-me como”. Não sabemos de quem é a voz masculina, mas tudo leva a crer que se trate de Arnold, o sócio morto de Ford.
Sobre Pariah, descobrimos pela voz de Logan (Ben Barnes) que a cidade foi criada pelo próprio Arnold, que é deficitária (gera prejuízos ao parque), e que a empresa que Logan representa está em negociações para assumir sua gestão. O que vemos ali, do lado de fora das velhas casas, é algo de bíblico nas proporções de Sodoma e Gomorra: sexo ao ar livre, mulheres vendidas como escravos, corpos amontoados em carroças, urubus sobrevoando a cidade. Até uma fonte de sangue (ou vinho, talvez?) vemos no centro da cidade. É, de certa forma, a representação de um dos círculos do inferno dantesco. É ali que veremos duas punições de contrapasso de William (Jimmi Simpson), que se põe do lado dos heróis e se vê matando soldados pelas costas; que se acha corajoso, mas é obrigado a encarar a própria covardia quando foge do confronto com Logan. Vemos, também, a transformação de Dolores em seu oposto: de “donzela” que não sabe nem segurar uma arma, em pistoleira fria. Essa transformação de Dolores, aliás, seria forçada, se não conseguíssemos ver as mãos e a vontade de Ford no processo.
Durante uma festa semelhante às comemorações do “Dia de los Muertos”, Dolores vê a si mesma na procissão e, quando parte atrás de si mesma, ouvimos duas frases bastante significativas: a primeira é “Nossos mortos nunca estão mortos para nós até que os esqueçamos”, uma citação presente no livro Adam Bede, publicado em 1859. O livro é a primeira obra de George Eliot, pseudônimo da escritora inglesa Mary Ann Evans. Ela adotou o pseudônimo masculino – transformando-se em seu contrário, mais um contrapasso – para ser levada a sério, e nunca mais conseguiu se livrar dele. No contexto de Dolores, a frase se refere à transformação pela qual ela passa, deixando seus pais mortos no esquecimento para transformar-se, como é seu objetivo. A segunda é a já conhecida “Que você descanse em um sono profundo e sem sonhos”, a frase usada para “desligar” os anfitriões. Imediatamente, Dolores cai desacordada.
A jovem acorda nua no laboratório, de frente para Ford. No diálogo que se segue, Dolores afirma que não fala com Arnold desde sua morte, 34 anos, 42 dias e sete horas atrás. É interessante a sequência de perguntas de Ford que geram essa resposta: “Você tem ouvido vozes? Arnold tem falado com você novamente?”. Esse intercâmbio de Dolores e Ford gera enormes dúvidas: Como Arnold pode falar com Dolores se morreu mais de três décadas atrás? Se a pergunta se refere a “novamente”, Arnold já falou com Dolores, e Ford sabe disso. Como é possível?
Uma teoria interessante que surge daí é Arnold como a presença no centro do Labirinto, como a consciência (talvez preservada nos servidores que controlam o parque e os anfitriões) por trás das transformações em curso que não estão nas mãos de Ford. O Homem de Preto quer chegar ao cerne para apoiá-lo, Ford quer que Dolores chegue ao centro para impedi-lo. Quem sabe? Teorias, teorias…
Quando Ford pergunta o que Arnold disse a Dolores 34 anos antes, em sua última comunicação, Dolores informa: “Ele me disse que eu iria ajuda-lo”. Ford pergunta: “Ajudá-lo a quê?”. Dolores responde: “A destruir este lugar.”
Ford sabe que Dolores quer se transformar, e não se opõe. Ao contrário, fica claro que a transformação posterior de donzela em pistoleira fez parte das mudanças que não vimos em tela. Nesse diálogo, vemos Dolores questionar Ford diretamente sobre serem velhos amigos, ao que Ford responde tacitamente que não. É interessante a possibilidade de que Dolores seja um anfitrião baseado em alguém que Ford conheceu três décadas e meia atrás, ou mais. Um amor perdido? Um amor transformado em ódio, em desprezo? Pela forma com que trata Dolores, não será de espantar.
Em outro laboratório vemos Lutz e Felix, dois técnicos, consertando Maeve, novamente. Enquanto Lutz termina cedo e vai para seu intervalo, Felix põe-se a tentar consertar um passarinho robô, que surrupiou do parque. Nesse ponto, temos uma cena bastante intrigante: Lutz pega o colega no ato e o escorraça pela estupidez: “Você não é um ornitologista e não é um programador. Você é um açougueiro e sempre será um açougueiro”. E, para espanto de Felix, traz novamente Maeve para ser consertada. A cena é bastante peculiar, porque dá a impressão de ocorrer em tempo real, sem interrupções. Só que fica claro que, pelo menos mais um dia se passou, com Maeve sendo morta novamente, e Felix não se lembra. O que levanta mais uma dúvida: será que Felix é um anfitrião? Estou apostando que sim.
Ainda nos laboratórios, Elsie vê o corpo do escultor de madeira passando em uma maca para ser incinerado (Lembra? Aquele que bateu uma pedra na cabeça até deformar-se, na frente dela). Ela vai atrás e depois de uma pequena chantagem com um técnico ligeiramente necrófilo, consegue examinar o corpo. Encontra ali um enorme transmissor embutido no anfitrião desativado: alguém está surrupiando dados de Westworld, e as perguntas são várias: que tipo de dados? A quem interessam? Quem teve acesso ao anfitrião para inserir um dispositivo daquele tamanho em seu braço? Teria sido um técnico na base do suborno, ou na base da ameaça de um dos executivos? Seria alguém trabalhando para Ford ou contra Ford? A expressão de Bernard quando Elsie lhe mostra o dispositivo é de quem tem essa e mais umas cem perguntas na cabeça. Aliás, é o único momento em que vemos Bernard em todo o episódio. Penso que ele não seja alguém associado à punição de contrapasso , por isso, ficando (quase) de fora deste episódio infernal.
Em Pariah, depois do assalto bem-sucedido ao transporte de nitroglicerina (e ao subsequente assassinato dos soldados por parte de William), Logan, Dolores e William retornam à cidade e partem com El Lazo/Lawrence (Clifton Collins Jr.) e os confederados para uma noite no bordel.
O bordel de Pariah é um espetáculo à parte. Lembra bastante a mansão dos prazeres do filme “De Olhos Bem Fechados”, o último de Stanley Kubrick, estrelando Tom Cruise e Nicole Kidman). As cenas ali são para quem decidir deixar o puritanismo de lado, pois não são nada sensíveis. A presença em um local tão cru, em si já é uma punição de contrapasso para Dolores, a quem nos acostumamos a pensar em uma personagem sensível e pura. No bordel, Dolores se encontra com uma cartomante, que novamente se transforma nela mesma, em uma cena onírica, na qual não sabemos o quanto ela está acordada e o quanto está alucinando. A carta que ela tira do baralho? O labirinto. Pela primeira vez vemos o labirinto de forma clara, podendo analisá-lo sem dificuldade. Fica claro que o labirinto é uma estilização da máquina que mergulha os anfitriões em construção na substância branca que lhes gera os músculos. Esta máquina e o próprio labirinto nos remetem diretamente a outra imagem: o Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci, sobre o qual eu poderia escrever duas semanas seguidas, e não o faço porque perderia duas coisas que prezo muito: meu tempo e meus leitores. Basta dizer que o Homem Vitruviano é um dos ícones do antropocentrismo, o carro-chefe do Renascimento do fim do século 15 e início do século 16. O Homem Vitruviano de Da Vinci coloca o Homem — em toda sua perfeição estética — no centro geométrico de um quadrado e de uma circunferência. É uma metáfora perfeita para a necessidade de colocarmos o Homem como centro das atenções de uma Humanidade que conseguia finalmente se livrar dos grilhões da Igreja depois de um milênio de subjugação.
O “Homem Fordiano”, isto é, o anfitrião no centro do círculo que lhe serve como moldura enquanto é construído, não simboliza algo menos significativo: aponta para um universo em que o robô é o centro das atenções, até mesmo dos humanos que com eles se imiscuem em busca de diversão.
E o labirinto? Esse ainda teremos de decifrar. Talvez a resposta seja o significado profundo eu que o Homem de Preto procura sem descansar, talvez algo totalmente diferente. Talvez, ainda, nada: pode ser apenas uma coincidência identificada por uma cabeça acostumada a encontrar padrões em tudo o que vê e movida pela Gestalt. (Se for essa última, já peço desculpas por antecedência). A ver.
O último encontro do episódio se dá quando o Homem de Preto entra em um bar em algum lugar ao longo de sua jornada, acompanhado de Teddy, que não parece nada bem. Achei que aqui fôssemos ouvir a pianola do dia, mas não. Mãos velhas e calejadas tocam “Clair de Lune”, de Claude Debussy ao piano. Parêntese: esta é uma das composições clássicas de piano mais conhecidas atualmente, tendo sido criada quando Debussy tinha 28 anos, em 1890 como parte de sua obra “Suite Bergamasque”. Sabe-se que o autor, anos depois (em 1905), revisitou a obra e modificou várias de suas partes. “Clair de Lune” (Clarão da Lua) se chamava “Promenade Sentimentale” (Passeio Sentimental), e não se sabe que porções da composição que conhecemos hoje são originais e quais foram reescritas. De volta à cena, vemos que as mãos tocando a música são de Ford, que deixa o piano e se junta ao Homem de Preto e a Teddy. O diálogo é bastante significativo, com o Homem de Preto assumindo o papel de “vilão”. Descobrimos que Arnold — que o Homem de Preto acredita que morreu 35 anos atrás, uma discrepância de um ano para as informações passadas por Dolores — tentou destruir o parque, e que quem o salvou foi o próprio Homem de Preto. Bem, pelo menos é isso que ele diz, e Ford não o contradiz. O diálogo não deixa de ser um “passeio sentimental”, mas os sentimentos são mais de ódio, desprezo, cálculo frio e estratégico do que os despertados por “Clair de Lune”. O Homem de Preto deixa isso claro quando faz menção de esfaquear Ford, e Ford mostra mais uma pequena fresta de seu poder, quando Teddy — sem saber porque, e ainda que moribundo — segura a faca e impede que o Homem de Preto se quer a aproxime de Ford. A tensão entre ambos é mais sólida e espessa que o concreto usado para impedir que a radioatividade de Chernobyl se espalhe pela Ucrânia.
Ao se despedir, mais uma surpresa: Ford toca levemente os ombros de Teddy, dizendo algo na linha de “Sr. Flood, devemos olhar para trás e sorrir para os perigos passados, não devemos?”. As palavras de Ford (ou teria sido o whisky que Ford levou para a mesa e Teddy tomou? Ou teria sido o toque no ombro do anfitrião) têm efeito imediato: o anfitrião se revigora como se não tivesse sofrido nada. Em Westworld, Ford é deus.
O episódio termina com Felix encarando Maeve, que acorda para receber em seu dedo o passarinho que ele acaba de consertar. “Olá, Felix. É hora de termos uma pequena conversa” é a frase que termina o episódio. Maeve não só tem a oportunidade de encarar o técnico que vê em suas imagens subconsciente, como sabe seu nome e não aparenta ter nenhum medo dele.
E tome mais uma tonelada de perguntas que ficam no ar até (pelo menos) o próximo episódio.
Música da semana na pianola: não tivemos, mas é interessante notar que “Clair de Lune” estava tocando também em Pariah, quando William e Dolores estão conversando sobre Westworld ser o lugar que as pessoas escolhem para mudar. Me pareceu estranho uma melodia tão pura e tão suave tocando em uma cidade com contornos tão violentos, crus, selvagens até.
Teoria da semana (de novo: descarte depois de ler): a possibilidade imediata de Felix, o técnico, ser um anfitrião abre outra, bastante intrigante, a de todos em Westworld (técnicos, pesquisadores, executivos, e quem sabe até mesmo os visitantes) serem anfitriões. Seria uma explicação simples para as balas dos revólveres não os ferirem: são portadores de uma carapaça mais forte do que os anfitriões que encontram pelo parque.
Até a próxima!
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