Essa semana me peguei rememorando Eça de Queiroz, em especial sua pequena obra O Mandarim, publicada em 1880. Pequena em extensão, que fique claro, pois em que pese ser curta, é de uma profundidade quase que mariana, como tudo o que o autor português escreveu.
De certa forma foi interessante lembrar dessa obra que li pela primeira vez nos tempos de cursinho, nos idos de 1986. À época me preocupava mais com o que poderia ser perguntado na prova de Literatura do que com o prazer enorme de ler algo que — como eu descobriria apenas anos mais tarde — encara de frente e não fica devendo nada para uma das maiores obras da literatura universal, Crime e Castigo de Fiodor Dostoievsky. O estudo sobre culpa e consciência magistralmente desenvolvido pelo autor russo ganha cores fantásticas de um encontro com o diabo em pessoa, além das descrições absolutamente deliciosas do realismo de Eça de Queiroz, que nos instiga até quando descreve os sonhos pueris do mais medíocre dos amanuenses, Teodoro, o “herói” da história.
Para quem não se lembra, em O Mandarim vemos um jovem amanuense, um burocrata menor, pobre e sem perspectivas, que em determinada noite recebe a visita do diabo. Uma campainha — uma caixa com um botão — materializa-se na sala, e o diabo informa o jovem que, ao pressionar o botão, um mandarim chinês dono de vasta fortuna morreria. O crime, ocorrido do outro lado do mundo, jamais poderia ser ligado a Teodoro, e o jovem herdaria toda a fortuna do chinês.
Teodoro pondera, mas cede aos seus impulsos. Nada de espetacular ocorre quando ele pressiona o botão, e pouco tempo depois recebe, de fato, a fortuna do finado Ti Chin-Fu. O jovem se entrega, a partir daí, a uma vida de prazeres, sem mais preocupações, que fatalmente deságua no sentimento de culpa e na busca vã por “descometer” o crime que só ele sabia que havia cometido.
Por favor, me perdoem trucidar assim uma obra tão maravilhosa. É proposital em dois níveis e incidental em um terceiro. É proposital porque nem de longe o cerne da questão de O Mandarim foi endereçado nos dois parágrafos acima. Há um oceano a ser explorado nesse livro, e a pequena poça d’água que ofereci nem de longe faz justiça ao texto. Esse primeiro propósito é te instigar a ler o livro. É proposital, também, porque o objetivo do texto não é dissecar a obra de Eça de Queiroz. (É incidental porque sou absolutamente incapaz de qualquer coisa que preste ao versar desse fantástico livro).
Mas o que quero com essa digressão insatisfatória, então?
Bem, quero dizer que desde março de 2020, aqui em nosso triste Brasil, produzimos o óbito de nada menos que 300 mil mandarins. A vasta maioria desses mandarins brazucas não deixou fortuna, e muitos deles inclusive só tinham boletos em seu nome, mas esse não é o ponto. Ninguém herdou sejam suas posses ou suas dívidas, mas esse também não é o ponto.
O ponto é: nós brasileiros, coletivamente, apertamos os botões que tiraram a vida desses 300 mil mandarins. Sim, alguns deles pediram, suplicaram até para que apertássemos o botão, quando deliberadamente descumpriram as medidas de segurança, se lançando a baladas como se não houvesse amanhã.
Contudo, outros não pediram — a maioria —, e muitos deles inclusive fizeram o que estava a seu alcance para se livrar do botão fatal oferecido pelo diabo. E ainda assim nós apertamos o botão, e eles se foram.
Agimos como Teodoro, não pela busca de prazeres mesquinhos e mundanos, no mais das vezes. Apertamos o botão não pelas riquezas, mas simplesmente porque julgamos que nosso direito de trabalhar é mais importante que o direito deles de viver. E, em muitos casos, por falta de tempo ou de interesse em conhecer as consequências de nossas atitudes, alheios ao fato de que estamos apertando esses botões e matando mandarins pelo país afora. Em qualquer caso, por mais que nosso instinto seja rejeitar essa comparação com Teodoro, o assassino do livro de Eça de Queiroz, esse é o papel que temos desempenhado nesse último ano.
Alguns de nós fomos inclusive instados a agir assim. Um dos primeiros a nos incentivar a apertar um ou mais desses 300 mil botões tem sido ninguém menos que o presidente da república. E quando o presidente fala, muita gente escuta, não é verdade? Quando o presidente nos incita a não sermos “um país de maricas”, quando diz que máscara é “coisa de viado”, quando faz aglomeração e ataca os governantes que estão tentando preservar a vida, ele nos aponta o botão e nos exorta a apertá-lo sem delongas.
Contudo, é fundamental observar: da mesma forma que o diabo de Eça de Queiroz não obrigou Teodoro a apertar o botão, nosso presidente não nos obriga a nada. Ele nos incentiva, nos desafia, diz com expressão séria que esse é o único caminho, mas não nos obriga. Não, o apertar do botão — e aí é que está a questão principal — é escolha nossa. Apertar o botão é resultado exclusivo do exercício do livre-arbítrio de cada um. Tanto que alguns ouvem a exortação do presidente (ou de quem quer que seja) e não atendem o chamado.
Alguém vai dizer, certamente “Ah, que escolha, que nada! Se eu não trabalhar meus filhos passam fome!”. É verdade. Em milhões de situações em nosso país, a família passa fome se o arrimo não for trabalhar. Mas isso não significa que não seja uma escolha. É sim. O indivíduo — o pai, a mãe, o irmão — decide que descumprir as regras (sim, em prol de seu ganha pão, claro), está decidindo que é mais importante esse seu ganha pão do que a vida de alguém. É uma escolha difícil, claro, mas é uma escolha. E para aqueles que entendem que o direito à vida é mais importante que o direito ao trabalho, não é a escolha acertada.
O apertar do botão, também nesses casos, ocorre. Basta ver qualquer tomada externa nos telejornais para perceber que inúmeros são os arrimos de família que estão na rua sem máscara, ou com a máscara no queixo, ou com a máscara abaixo do nariz. Estão apertando o botão porque estão expelindo aerossóis e estão dando o exemplo a todos os que os veem para que também se sintam incomodados com a máscara e deixem esse negócio de máscara para lá. O apertar do botão também ocorre, mesmo que o pai de família esteja de máscara, pelo exemplo que ele dá com o descumprimento das regras. Muitos são os que veem imagens de ônibus lotados, de ruas cheias, de montes de gente pela cidade e pensam “por que só eu vou ficar aqui? Por que só eu vou fazer isolamento? Por que só eu vou passar dificuldade?”, e saem também, contribuindo para mais botões apertados.
Há também aqueles que insistem em abrir seus bares e restaurantes, justificados por empregados que precisam trabalhar, indignados com os governantes porque se seguirem as regras terão que deixar vários pais e mães de família na rua. Consideram que os empregos que proveem são mais importantes que os mandarins que perderão a vida como consequência. A aglomeração que provocam, as máscaras e o distanciamento social que não cobram são mais botões a matar mandarins.
E assim caminhamos. E assim nossas ações, nossos botões apertados — independente da justificativa que utilizamos para alicerçar essas ações — vão custando vidas. 300 mil mandarins até agora.
“Mas o que você quer que eu faça? Que solução você propõe?” alguns (ou muitos) vão certamente perguntar.
Pergunta difícil, claro.
Penso que não haja respostas fáceis, e infelizmente os 300 mil mandarins mortos até o momento são resultado de termos recorrido a respostas fáceis. “Eu vou sair, sim, para os meus não passarem fome!” é, infelizmente, uma resposta fácil — a mais fácil delas, aliás.
A tomada de consciência de que ao sairmos na rua colocamos outros em risco, é um primeiro passo. Repetir para mim mesmo “Minha viagem de ônibus e meu dia na cidade pode matar alguém, e essa morte é menos relevante que minha família passar dificuldade” é um passo importante. O primeiro passo é repetir isso para mim mesmo quando saio de casa. É uma frase verdadeira, e que precisa ficar consciente para todo mundo que decide encarar a pandemia “de peito aberto”.
Para aqueles que decidirem “encarar”, é absolutamente fundamental também tomar todas as providências para evitar que o botão seja apertado: máscara usada o tempo todo — por mais que seja incômodo — sempre que se está fora de casa, seja ao ar livre, seja em ambientes fechados, e da maneira certa: cobrindo corretamente nariz e boca; higiene o tempo todo: mãos bem lavadas o tempo todo; cobrar quem está à sua volta que tome as mesmas providências. Distanciamento social sempre que possível (e não só quando estivermos com vontade) é outro passo importante. E mais um: não sair a não ser que seja para o objetivo declarado de cuidar do ganha pão, pois ir ao bar com os amigos em meio à pandemia é matar mandarins frivolamente, sem a desculpa de que é pelo bem da família.
As ações acima não vão resolver: continuaremos apertando o botão, e os mandarins continuarão morrendo. Talvez, inclusive, alguém aperte o nosso botão, ou o botão de alguém que a gente ama.
Mas pelo menos nesses casos, estaremos agindo como seres humanos, e não como monstros. Teremos a consciência de nossos atos, e essa consciência estará em nossos olhos quando nos olharmos no espelho. E, em alguns casos, nossa consciência nos avisará das mortes que nossas ações provocaram.
Os mandarins já terão perdido a vida, mas a memória deles merece, ao menos, isso.
Oi Ruy. Normalmente, escreveria empolgado pela troca que você sempre proporciona com o leitor e pela consideração em fazer isso. Bem, se você tivesse milhares de leitores e comentários, isso iria fica mais difícil. De toda forma, agradeço. Ontem, com a decisão do STF sobre a suspeição do Moro, como li barbaridades... Dormi mal, respondendo alguns comentários loucos, sem contexto, sem noção, sem compaixão, sem nada. Penso no porquê de tê-los respondido e já dou a resposta: raiva. Tudo ronda, ainda sobre PT, Lula, esquerda, aliás, esquerda é qualquer coisa que é contrária ao pensamento de quem defende um governo desgovernado. Como sairemos disso? Quantas eleições até a "discussão" tomar outros rumos? Essa pergunta é bem mais difícil da que você deixou no texto. Para aquela, máscara, higiene, distanciamento E vacinação. Sim, coordenação federal, (nunca tirada pelo STF) gestão dos recursos, propostas, conversa, muita. Mas, como conversar com quem acha que o Brasil está até bem, que estamos na vanguarda de como lidar com a doença, que o culpado são sempre, sempre, os outros? Sabe, quem precisa circular, que circule com menos pessoas nas ruas, pois muitos, com certeza, podem ficar em casa. Isso não é ser contra a economia, que sim, será afetada, mas adivinha quem pode fazer algo? O governo desgovernado que só pensa, desde a eleição, em se manter no poder... Exata crítica feita ao governo passado, não? Ontem, o presidente falou sobre os mortos. Não que seja necessário, mas não percebi e não percebo consternação alguma, o texto foi lido e pronto, deixemos de mimimi. Abraço.
Oi Jaylei. Em primeiro lugar, obrigado pelo comentário. Cara, eu já cansei dessa tática onipresente do “Ah, mas e o PT?” que em alguns momentos é a única arma retórica de quem não consegue mais argumentar em favor do atual (des)governo. O que antes era um comparativo para mostrar que apesar de alguns “errinhos” o genocida seria supostamente melhor que os governos anteriores, agora passou a ser uma ferramenta de nivelamento, para tentar mostrar que “dá tudo no mesmo”. Não tenho mais energia nem tempo para lidar com esse pessoal. E olha: continuo muito crítico ao Lula e ao PT, e não tenho dúvida quanto à responsabilidade de ambos. Mas isso não me impede de enxergar o óbvio ululante que é a excrescência de um juiz atuar como assessor do promotor em um caso judicial. Não tem nenhum cabimento esse tipo de parcialidade que ficou absolutamente escancarado. Mas não tenho paciência para argumentar essa obviedade. Quem não quer ver, simplesmente não vai ver. Triste.
Ruy, eu concordaria 100% com sua tese, não fossem dois fatos cruciais na inversão da culpa que propõe: 1.) Há uma máquina de mentiras – provavelmente financiada com recursos públicos – disparando um volume colossal de desinformação. Vou te citar um caso pessoal: minha mãe tem 77 anos, sofreu 2 cânceres, 1 infarto, 1 SRAG por água nos pulmões e foi desenganada à morte em 2019. Sobreviveu. Não sem sequelas: tem apenas 40% da capacidade pulmonar. Pois bem. Com todos esses problemas de saúde, minha mãe recebeu esse volume colossal de desinformação e NÃO vai tomar a "vaChina". Não há quem a faça. Como minha mãe, deve haver milhões de brasileiros e brasileiras que receberam essas "notícias", além da campanha com a falácia da falsa dicotomia "morrer de Covid ou morrer de fome", que se sujeitaram aos riscos (des)graças a essa máquina de mentiras. Então, não, não fomos nós, como sociedade, que apertamos o botão pela nossa própria vontade. Não foi somente uma tentação colocada à nossa porta pelo demônio. Foi uma ação orquestrada, massificada e meticulosamente calculada para por em prática a tentativa de alcançar a "imunidade de rebanho", enquanto aproveitava para dar uma "limpada" no pagamento de aposentadorias e pensões para melhorar as contas públicas (fiz o cálculo em outro post) e promover a eugenia, matando as pessoas com comorbidades e sem "histórico de atleta". 2.) Metade da população brasileira adulta tem até o ensino fundamental. O que significa dizer que são praticamente analfabetos funcionais. Têm pouco ou nenhum discernimento e baseiam suas decisões no que diz o líder – no caso, o desprezível-dente. Então, não. Não concordo que a culpa dessas 300 mil mortes é da sociedade. A culpa é de quem orquestrou, propagou e executou uma política de extermínio da parte da população mais vulnerável: idosos, pobres, pretos e pessoas "não saudáveis". Você, bem melhor do que eu, sabe: palavras matam. Por isso eu disse que aquele seu texto em outro post era arriscado: sua tese favorece ao desprezível-dente, um especialista em "terceirizar a culpa", culpa que é totalmente dele.
Fabrício, em primeiro lugar obrigado pelo comentário. Entendo sua argumentação, mas preciso levantar alguns pontos importantes. O primeiro deles deveria ser bem claro: não proponho, como você afirma, a inversão da culpa. Estou ciente de que o principal responsável pela situação calamitosa que vivemos é o genocida Jair Messias Bolsonaro. Desde o início da pandemia ele assumiu de bom-grado esse papel, e só ontem à noite tentou distorcer a realidade, em que pese a mudança do discurso ser benéfica para o país. Bolsonaro é o principal responsável pelas mortes, pelo atraso nas vacinas, pela aversão às máscaras, pelas aglomerações, pelos inúteis tratamentos precoces, e por aí vai. O que me leva ao segundo ponto: em que pese Bolsonaro ser um grande propulsor do caos que vivemos, ele não é o único. Como no caso de O Mandarim, do Eça de Queiroz, o papel dele é o do diabo: suas palavras, sua incitação, suas bravatas, são como as palavras do diabo. Concordo com você que o discurso dele — amplificado pelos seguidores interessados na manipulação, pelo gabinete do ódio, e por mais gente que se beneficia do discurso do “tudo tá normal” (como no caso de muitas empresas) — é muito potente, obviamente. Mas o papel do diabo não é obrigar o indivíduo ao erro, mas sim levá-lo ao erro, para que sua consciência faça o restante do trabalho. Por mais que as mensagens sejam potentes, elas carecem de agência. A agência fica, em 100% dos casos, por conta de quem toma a decisão, seja essa decisão pela ação ou por ignorar a comanda do diabolsonaro. Nesse sentido, conheço gente eu está se recusando a descumprir as comandas do diabolsonaro, mesmo que isso signifique passar dificuldades. Pessoas que já perderam parentes próximos tendem a aprender que correr o risco de apertar o botão é coisa séria. Já disse isso para minha mãe, que é bolsonarista, mas que tomou a vacina: “Você escolhe no que quer acreditar. Tem gente que te ama dizendo coisas com base na ciência, e tem gente que te quer manipular te dizendo coisas com base no interesse eleitoral do presidente. A escolha de quem você vai ouvir é estritamente sua.” O terceiro ponto está ligado a esse, mas é o outro lado da questão. Sim, temos milhões de analfabetos funcionais no país. Mas veja: todos esses estão sujeitos à mesma legislação que eu ou você que temos graduação, pós-graduação, mestrado, o escambau. E qual é um dos princípios básicos do arcabouço legal do país? É o seguinte: “a ignor6ancia da lei não exime o cidadão do dever de cumpri-la”. A desculpa “Não sei ler, doutor, não sabia que nessa placa tá escrito que não posso estacionar minha carroça porque é a entrada de um hospital” não vai ajudar o analfabeto a se livrar de uma multa ou coisa pior. Entendo que. Ignorância do analfabeto funcional o faz presa mais fácil da desinformação, mas isso não o exime da responsabilidade como cidadão de seguir as recomendações legais. Sim, essas recomendações são contraditórias quando contrastamos o governo federal com o governo estadual, mas a mensagem que chega pela mídia (e recentemente nem os canais chapa-branca da televisão estão se furtando a divulgar as regras da fase vermelha ou da fase roxa, e nem o número diário de mortos) atinge letrados e iletrados, e o quadro pintado é sério, e as recomendações são claras. Por conta disso tudo, Fabrício, creio que o diabolsonaro é, sim, grande responsável pelas mortes, mas a responsabilidade coletiva, de todos nós que continuamos ouvindo o aviso dos cemitérios mas mesmo assim teimamos em apertar o botão, é inegável.
Fabrício, uma coisa boa é que o Ruy ainda se esconde por aqui, se não, você sabe como ele, eu e você poderíamos ser rotulados: esquerdopatas, petistas e comunistas. Esse último é fantástico, porque as pessoas nem sabem o que é ser comunista, só que matou bilhões de pessoas no universo! Sobre a rede de fakenews, ela realmente impressiona. Aliás, estou no grupo do presidente no Facebook e lá tem-s uma pequena mostra de como a lavagem cerebral foi e é bem feita.
Realmente a fábrica de Fakenews é potente e eficiente, Jaylei. Mas, como argumentei acima, para o Fabrício, ela ainda depende do livre-arbítrio de cada um, em que pese ser grande influenciadora desse livre-arbítrio.
Gostei da publicação. Acredito que cabe como reflexão. Baseando os comentários acredito que na dúvida entre as informações podemos recorrer a evidências científicas.
Obrigado, David.