O nono e penúltimo episódio desta primeira temporada de Westworld se chama A Well Tempered Clavier, ou Um Cravo Bem Temperado, que é o nome de um conjunto de composições de Johan Sebastian Bach. Puxa, Bach e Anthony Hopkins… Onde é que eu já vi essa combinação antes? Hmm… ah, sim, nada de mais: apenas na cena que precede a fuga do Dr. Hannibal Lecter no filme O Silêncio dos Inocentes, uma das melhores cenas de um dos melhores filmes de todos os tempos. Quer saber por que o Anthony Hopkins foi escolhido para encarnar Dr. Robert Ford? Basta olhar para o Dr. Hannibal Lecter. Voltando à música, em O Silêncio dos Inocentes o Dr. Lecter ouve a Aria, a primeira composição do conjunto intitulado The Goldberg Variations. Já esse nono episódio de Westworld faz alusão a Um Cravo Bem Temperado, um conjunto dividido em duas seções, ambas contendo 24 composições em duas partes: prelúdios e fugas, gêneros musicais bastante em voga no início do século 18. Os prelúdios são como prefácios a uma composição mais longa. No caso do período barroco, e em especial nas composições de Bach, os prelúdios estabelecem o tema da fuga que geralmente se segue. É o caso em todas as composições de Um Cravo Bem Temperado.
O que vem na sequência do prelúdio é o que nos interessa mais especificamente para este episódio de Westworld: a fuga. A fuga é um gênero musical de ponto e contraponto. Um tema é executado por uma “voz”, enquanto uma repetição é imediatamente oferecida por outra “voz” da mesma orquestra ou instrumento. Estas vozes dialogam ao longo da música, inserindo pequenas variações, invertendo seus papeis, sempre em ponto e contraponto, como um diálogo, um duelo, uma dança. É esta a tônica do episódio.
O primeiro ato é a interação de Maeve — recolhida aos laboratórios — com Bernard. Ele sabe do desvio da narrativa e está empenhado em descobrir o que está acontecendo. Maeve, por sua vez, está ciente de tudo o que ocorre, e até segue o script, fingindo se autoanalisar, e até mentindo quando afirma que não sabe a fonte de sua intensa “dor e sofrimento”. É visível que este é o tema desta “fuga”: Bernard, o mestre em posição superior, atuando sobre Maeve, a serva. Até o momento em que Maeve decide acabar com a charada e usa seus poderes narrativos para congelar Bernard, invertendo os papeis na fuga: a serva assume o papel de mestre, e o mestre passa à servidão. Ponto e contraponto.
Quando um anfitrião apresenta um erro de comportamento, os técnicos simplesmente suprimem sua memória, voltam o código a uma versão anterior segura, e o reiniciam. Nesta nova interação da “fuga” entre Maeve e Bernard, a anfitriã age de forma diferente: escancara a consciência de Bernard para sua condição de anfitrião, dando-lhe a chance de buscar as respostas para suas perguntas por si mesmo. Maeve começa a assumir um papel interessante — e potencialmente devastador — na história: o papel de Pandora, abrindo caixas que não tem a menor intenção de fechar, mostrando a realidade a quem quer que seja o anfitrião à sua frente, sem se preocupar com as consequências.
Maeve, em seguida, livre para retornar ao parque, vai ao encontro de Hector que está em uma clareira no meio da floresta junto com Armistice e o resto bando, todos empenhados em abrir o cofre que roubaram do saloon de Sweetwater. Maeve confronta Hector quando ele se afasta para urinar e simplesmente narra o que vai ocorrer em seguida: os membros do bando vão se matar, sobrando apenas Hector e Armistice, que vão se matar também. Hector não acredita, e quando a cena ocorre exatamente como Maeve previra — com a única variação sendo imposta por ela mesma: ela mata Armistice no último instante, salvando Hector —, Hector entende que está diante de uma situação para a qual não estava preparado. Maeve continua o processo de escancarar a realidade para Hector, mostrando-lhe que o cofre está (e sempre esteve) vazio. Nossa Pandora de ocasião mostra ao bandido que a faca que ela pressiona sobre o próprio abdome já esteva lá, empunhada por ele mesmo. A interação de Maeve e Hector é uma pequena variação da interação de Maeve com Bernard, formando uma belíssima sequência da fuga em que este episódio se configura.
Ocorre, então, um momento cuja caracterização me remete a Marion Zimmer Bradley e a história do Rei Arthur que a autora contou sob o ponto de vista feminino em As Brumas de Avalon. Morgana — a verdadeira heroína da história —, descrevendo a magia, afirma que o encantamento mais efetivo para se fazer com que um homem faça o que uma mulher quer é essa mulher dormir com ele. Este é um “encantamento” de conhecimento de toda cafetina, certamente, e Hector se compromete a ir com Maeve ao “inferno” enquanto os dois transam em meio à tenda a que a super-anfitriã ateou fogo. A interação de Maeve e Hector é uma pequena variação da interação de Maeve com Bernard — ambas as cenas se encaminham para um clímax de carga sexual , apesar de que de forma diferente em cada caso —, formando mais uma sequência da fuga deste episódio.
No campo dos renegados, Logan se refestela com o desespero de William ao vê-lo ameaçar Dolores. É o tema inicial desta fuga particular, o ponto. William quer levá-la para fora do parque, pensando que assim a estará libertando, mas é a própria Dolores que lhe abre os olhos para a realidade que ele não consegue enxergar: “Se lá fora é um lugar tão maravilhoso, por que vocês clamam tanto por entrar aqui?”. Um contundente contraponto para as intenções de William. De fato, a 40 mil dólares por dia — o valor revelado pelos autores da série, com todos os problemas que tem, Westworld deve ser ordens de grandeza preferível ao mundo “lá fora” do universo da série. Aposto que ainda vamos nos surpreender muito neste quesito nas próximas temporadas.
O jovem “major ou general” (nem ele sabe a que posto foi promovido pelo grupo de soldados anfitriões), no intuito de abrir os olhos de William (ainda preso às realidades do parque), não hesita em esfaquear o ventre de Dolores, revelando a maquinaria interna, para horror do prisioneiro. Uma reafirmação do ponto de que ele está no comando, e de que Dolores é irrelevante no que interessa a ele. Dolores, então, afirma o que já sabemos. Com sua fala “Há beleza neste mundo. Arnold o fez assim, mas pessoas como você continuam se espalhando por ele como uma mancha.” Sim, Dolores está ciente da existência de Arnold e de seu papel de criador do parque, contrariamente ao que se espera de um anfitrião. É uma indicação de que em algum nível ela está resolvendo suas questões e confusões mentais.
Em seguida, em uma cena que dá a impressão de ser tão malfeita que destoa da série como um todo, Dolores se apossa de uma arma, atira em vários anfitriões e foge, sem que ninguém sequer aponte-lhe um revólver, em um exemplo claro de como um destacamento militar jamais deveria agir diante de um inimigo. Talvez a estupidez dos soldados venha a ser explicada no futuro como intervenção de forças maiores (Arnold?), mas por enquanto isto seria apenas uma especulação. Dolores foge com os renegados em seu encalço, mas ao chegar a uma clareira, a cena muda por completo: ela se encontra só, tendo apenas o silêncio da noite por companhia, e ao olhar para o ventre percebe que não está ferida. Estamos em outra linha do tempo, mas ainda não sabemos qual. Um pouco mais tarde, no próprio episódio, descobriremos.
Um pequeno parêntese ocorre no episódio quando Stubbs, o chefe da segurança, recebe a informação de que um dispositivo pertencente a Elsie — a assessora de Bernard que ele próprio (sem estar consciente) matou no teatro abandonado — está emitindo um sinal de um local onde nenhum funcionário do parque vai há semanas. Stubbs vai investigar e dá de cara com os índios da nação fantasma. Aqui aqueles que se lembram do filme Parque dos Dinossauros abrem um sorriso de reconhecimento: enquanto Stubbs encara os três indígenas à sua frente — que, aliás, não respondem ao comando para congelar —, um quarto elemento se aproxima pelo flanco, atacando-o. A técnica é a mesma dos velociraptors do filme. Cumpre lembrar que Parque dos Dinossauros é um filme baseado no livro homônimo de Michael Crichton, que dirigiu a versão de 1973 de Westworld. Essa série é fantástica, ou não é?
De volta a William e Logan, vemos o que parece ser o jovem chefe dos renegados finalmente convencer seu amigo a deixar as fantasias que nutre para com Dolores e para com o parque, “voltando” à realidade. Alguma coisa no semblante de William nos grita que ele está interpretando os acontecimentos de outra forma, algo completamente diferente do que espera seu amigo. Na manhã seguinte enxergamos um pouco da direção em que segue a “transformação” de William: ao acordar Logan percebe que todos os soldados foram barbaramente assassinados, com vários deles tendo sido desmembrados por William. Um contraponto mais do que enfático. Logan se assusta com a voz do amigo, e percebe que está desarmado, face a face com William, que empunha uma faca que é “coincidentemente” muito parecida com a faca que o Homem de Preto carrega. Quem ainda duvida que são a mesma pessoa, separados apenas por trinta e tantos anos, está se autoenganando. William está mudado — como se a cena da carnificina já não gritasse isso aos quatro ventos! — e afirma para Logan: “Você disse que este lugar é um jogo. Ontem à noite eu finalmente entendi como jogá-lo.” William assume o comando com decisão e ferocidade. A mecânica da fuga bachiana é tão explícita que quase ouvimos os instrumentos barrocos tocando ao fundo.
A energia de William me remete a outra cena de mesmíssimo teor, desta vez da literatura brasileira. De certa forma, o momento lembra muito Riobaldo assumindo o controle do bando de Zé Bebelo com sua pergunta definitiva: “Agora quem é que é o chefe?” na obra prima Grande Sertão, Veredas, de João Guimarães Rosa. O certo é que como Riobaldo, William está transformado e continuará se transformando: ele deu um passo importantíssimo em direção de se tornar aquele a quem costumamos chamar de Homem de Preto.
Ocorre que esta versão de William ainda pensa que busca Dolores, e ainda tenta, com esta busca que (aposto) se mostrará inútil, agarrar-se à humanidade da qual se afastou com as brutalidades da noite anterior. A transformação pela qual William passa em seu caminho ao Homem de Preto lembra outra transformação famosa da ficção: o pequeno e inocente Smeagol se transformando em Gollum pela força do Anel. No caso, o “Anel” do Home de Preto é o parque em si, mas não é difícil vê-lo perdendo sua humanidade e sua inocência em troca de algo muito mais escuro, e potencialmente destruidor.
Na outra ponta das três décadas e tanto, vemos outras vozes da fuga que é este episódio: Teddy e o Homem de Preto, amarrados diante de Angela, a anfitriã que no fim do episódio anterior havia sobrepujado Teddy. “Ela” o faz lembrar a história em dois momentos: primeiramente como Ford criou seu background, com o jovem soldado revivendo o momento em que assassinou seus companheiros na cidade de Escalante, supostamente muito tempo antes. Em um segundo momento, Angela o faz reviver outra história: Teddy se enxerga como xerife de Escalante, assassinando todos os cidadãos, com Angela sendo a última a morrer pelo revólver do anfitrião. Não sabemos por que esta última cena nos é mostrada — talvez como uma forma de dar sequência ao “despertamento” de Teddy —, mas uma coisa é certa: “Ela”, neste momento, não é Angela. A anfitriã se refere a Teddy por seu nome formal: Theodore, e quando revela o massacre que ele perpetrou em Escalante, diante da incredulidade do anfitrião, que tenta se recusar a acreditar que cometeu aquela barbaridade, ela reafirma que ele fez e que fará de novo, na “cidade engolida pela areia”, ao lado de Wyatt. Porém, ela também afirma que ele ainda não está pronto, e o mata com a faca do Homem de Preto, dizendo “talvez na próxima vida”. Uma simples anfitriã diria e faria estas coisas? Não.
Quando o Homem de Preto menciona a tal “cidade engolida pela areia’, dizendo que já esteve lá e que o labirinto o trouxe de volta ao início, Angela (supostamente Angela, claro) responde com a frase que já ouvimos antes: “O labirinto não é para você”. Esta mesma frase já foi dita ao próprio Homem de Preto pela pequena anfitriã, filha de Lawrence. Fica claro que, nos dois casos, alguém estava falando pela boca de ambas e, apesar de não ser possível demonstrar com toda a certeza do mundo, as evidências apontam para Arnold. Ele, de alguma forma, preservou uma versão de sua consciência na imensa rede de computadores formada pelos servidores de Westworld, bem como pelos anfitriões. Não acho que seja possível que Ford não desconfie da presença do ex-sócio, mas não há garantias de que ele saiba de quão onipresente é Arnold neste momento. Um adversário que tem acesso a todos os anfitriões do parque — e se ele tem acesso à garota e à Angela, está ajudando Teddy a se lembrar, está “atualizando” Maeve e “conversa” com Dolores, não há porque duvidar que ele possa ter acesso a qualquer anfitrião — está mais que à altura de Ford. Aí está: Ford e Arnold são ponto e contraponto não deste episódio, mas sim desta fabulosa macro-fuga que é a série Westworld.
Angela termina sua participação perguntando ao Homem de Preto algo na linha de “já que você gosta tanto de jogos, por que não joga um dos nossos?”, batendo sua cabeça contra a rocha em que se recosta e o desacordando com essa ação. Quando acorda, ele está amarrado, com uma forca no pescoço cuja outra ponta passa por um galho alto e robusto, e termina na cela de um cavalo. O cavalo ameaça a sair, e vemos o Homem de Preto tentando impedir o cavalo de andar. Quando um coiote, uivando na distância assusta o cavalo, ele mal tem tempo de pegar a faca cravada no peito de Teddy e cortar a corda antes de morrer enforcado.
Nesse momento Charlotte aparece, em trajes de executiva e visivelmente desconfortável por estar ali. Descobrimos, então, que o Homem de Preto é um dos sócios do parque, com voto no Conselho. Charlotte afirma que os visitantes de Westworld estão interessados apenas em corpos quentes “para balear ou para transar”, e que as narrativas “barrocas” de Ford são desnecessárias. Aí está a razão explícita para o nome do episódio, aliás: Um Cravo Bem Temperado é uma das obras mais famosas deste período musical, que na Europa ocupou o período do início do século 17 até mais ou menos a metade do século 18. É um estilo musical em que as estruturas são complexas formais, quase matemáticas, como no caso da fuga —e, obviamente, da estrutura deste episódio. Charlotte quer o voto do Homem de Preto para tirar Ford do controle do parque. Aqui temos mais uma pequena fuga dentro do episódio: dois outsiders com objetivos semelhantes, mas ao mesmo tempo absolutamente diferentes. Ambos querem derrotar Ford, mas enquanto Charlotte trama sua derrocada com base nas regras administrativas, o Homem de Preto — talvez alicerçado em mais de três décadas de experiência com Ford e com o parque, e portanto sabendo que este caminho é inútil — busca a vitória no “jogo” do labirinto. Charlotte nos informa que foi o Homem de Preto que manteve Ford à frente do parque “todos esses anos”, e fica a enorme dúvida sobre o porquê desta ação. No encontro de ambos, no episódio 5, ficou claro que os dois estão continentalmente longe de serem amigos, e não temos elemento algum que justifique esta ação — se for um fato — por parte do Homem de Preto. Uma possibilidade é ele ter convicção de que outra pessoa, no lugar de Ford, o impediria de atingir seu objetivo (qualquer que seja), por exemplo fechando o parque, ou destruindo as informações disponíveis nos servidores ou nas memórias dos anfitriões.
Aqui cabe uma pequena teoria baseada na certeza de que o Homem de Preto é William três décadas depois. William de fato está empenhado em libertar Dolores. Se em algum momento ele percebe que este também é o plano de Arnold, os dois podem estar trabalhando com o mesmo objetivo. Quando Arnold morre, William/Homem de Preto descobre seus planos de libertar não apenas Dolores, mas todos os anfitriões. Entendendo a importância desta tarefa, ele se entrega a ela com a paciência, o empenho e a meticulosidade necessários. Ele sabe que Ford é o inimigo, mas também sabe que a única chance de ser bem-sucedido é tendo Ford à frente do parque. Ford, por sua vez, sabe os planos do Homem de Preto, mas não consegue impedi-lo de continuar seu trajeto porque se tornou sócio do parque e membro do conselho. A nova narrativa de Ford, nesse contexto, poderia ser um plano contrário ao de Arnold, um contraponto ao ponto do sócio morto. A ver.
O Homem de Preto despacha Charlotte dizendo que as narrativas em que ele se interessa não têm nada a ver com Ford, e que se eles querem tirar Ford do comando, boa sorte. Aqui temos duas informações importantes, passadas de forma subliminar.
A primeira: o Homem de Preto já afirmou que conhece todas as histórias de Westworld, menos a última. Ele não se refere, portanto a outras narrativas criadas por outros funcionários do parque (nada, por exemplo, de autoria do pobre Sizemore). Se as narrativas em que ele se interessa não são de Ford, e se ele já conhece todas as demais, ele se refere a algo de ímpar, inusitado, e muito provavelmente não-autorizado. Ele não fala da narrativa de Wyatt (que é de autoria de Ford), e as evidências apontam para apenas um “autor”: Arnold. Ou seja, por esta teoria o Homem de Preto está em busca de realizar os planos de Arnold, e desconfio que este plano seja libertar os anfitriões e derrotar Ford de maneira definitiva. Uma tarefa e tanto.
A segunda: ele sabe que os esforços de Charlotte para tirar Ford do poder por meio de votações e afins têm exatamente zero por cento de chance de dar certo.
Bem, deixamos Bernard lá longe, não é verdade? Meio zonzo, meio sem rumo depois de sua pequena fuga com Maeve. Nós o vemos entrando no escritório de Ford, e em seguida vemos Ford caminhando pelo cemitério de anfitriões “aposentados” chegando à sala onde costuma beber em companhia do velho mineiro. Lá Bernard espera por ele, para que ambos executem a fuga mais importante do episódio.
As microexpressões de Anthony Hopkins são fantásticas: ele demonstra surpresa pelo fato de Bernard ter recobrado a memória de que de fato é um anfitrião, mas de forma tão sutil e natural que se prestamos atenção quase nos surpreendemos junto com ele. Bernard sabe que as porções “mais elegantes” de seu código não foram criadas por Ford, mas sim por Arnold. Ele quer recobrar totalmente suas memórias para finalmente encontrar-se com quem julga ser seu criador. Pobre Bernard: ainda não sabe o que já está claríssimo para muitos dos que analisam a série: este encontro é impossível. Para tentar este feito, Bernard subverte a relação de poder com Ford: ele reativa Clementine parcialmente, mantendo desativado seu circuito de proteção aos humanos. Ele lhe dá uma pistola automática — diga-se de passagem, de um design futurista belíssimo — e a anfitriã a aponta para Ford. Um contraponto magistralmente construído este, pois coloca Ford em uma posição servil e seu servo em clara posição dominante. Bernard começa a revisitar, então, suas principais memórias, começando pela “pedra fundamental”, no dizer de Ford: a morte de seu filho virtual.
Ao mesmo tempo vemos Dolores, ainda na linha do tempo diferente daquela em que fugiu dos renegados, chegando até a cidade abandonada. Não sabemos, aqui, o quanto do que ela vê é real, e o quanto é fruto do fluxo de suas memórias antigas à sua consciência atual. Enquanto Ford descreve os defeitos dos anfitriões que respondem a vozes inexistentes, Dolores retorna ao seu vestido azul e entra na igreja que sabemos não estar mais lá (sabemos mesmo?). Na igreja ela encontra alguns anfitriões defeituosos falando sozinhos e se dirige ao confessionário. O confessionário é um elevador, que a leva a um subsolo abandonado. Ela vê a desolação mesclada com memórias passadas: um jovem D. Ford passa sem dar-lhe atenção e busca Arnold. Um anfitrião (Abernathy?) recita uma das linhas mais contundentes da peça “Rei Lear”, de William Shakespeare em uma sala ao lado (“When we are born we cry that we are come to this great stage of fools”, ou, em português “Quando nascemos, choramos por termos chegado a este grande palco de tolos”), pela qual o rei desiludido expressa seu desdém pela Humanidade e pela vida em si, uma vez que crê ser o homem apenas um condutor de sofrimento para seus semelhantes). Dolores continua caminhando e desce uma escada — já nossa conhecida — e chega ao laboratório onde já a vimos conversar com Bernard (Bernard?).
Bernard, por sua vez insiste para descer mais fundo em suas memórias, repelindo a noção que Ford tenta lhe passar, de que este encontro é impossível. Ele chega, finalmente, ao seu nascimento, mesclando a voz do filho imaginário com a de Ford: “abra os olhos”. Vemos o anfitrião abrindo os olhos de frente para Ford, e descobrindo que ele próprio é o substituto de Arnold, feito à imagem e semelhança de Arnold. Ele inclusive se vê na fotografia que antes apresentava apenas Ford e o anfitrião feito à imagem de seu pai.
Está respondida uma das principais questões da série até o momento. Ao mesmo tempo, Dolores em suas memórias (ou em sua imaginação? Ou em uma manipulação de Arnold) se lembra de que fala com Arnold, e que este não pode ajudá-las porque está morto. Lembra-se também de que foi ela quem o matou. Pobre Dolores: está entregue à sua consciência sem ninguém para auxiliá-la. Não. Quem dera ela estivesse sozinha: já novamente na nave da pequena igreja, agora vazia, enquanto ela vai saindo, a porta se abre e o Homem de Preto entra, sorrindo e se dirigindo a ela sem a menor cerimônia.
Aqui temos um mistério que só o truque da confusão de memórias resolve: o Homem de Preto de fato abre a porta e de fato entra na Igreja. A menos que Dolores esteja alucinando toda a cena, a igreja está de pé. Ocorre que já vimos o esqueleto da torre da igreja na presença de Ford, no episódio 2. Ocorre também que no episódio anterior, quando Dolores pergunta a William onde e “quando” eles estão, ambos estão diante do mesmo esqueleto da torre, supostamente três décadas no passado. Obviamente estamos vendo todas as cenas pelos olhos de Dolores, mas somente muita ginástica mental vai fazer sentido de tudo. A meu ver o que é real no tempo de William, três décadas atrás, é a cidade abandonada e a igreja de pé. No presente temos o escombro da torre e nada mais além da desolação, sem que nenhum prédio tenha restado (como Ford viu no episódio 2). O resto é alucinação de Dolores, um congestionamento de suas memórias passadas e presentes.
Acima à esquerda vemos o esqueleto da torre da igreja visto por Ford e Bernard no presente (episódio 2). à direita temos o mesmo esqueleto ao fundo de Dolores e William, no passado (episódio 8).
Já acima temos o Homem de Preto entrando em uma igreja que não deveria existir no presente (episódio 9).
A última variação do tema da bela fuga entre Ford e Bernard se dá quando o anfitrião ordena que Clementine puxe o gatilho e percebe que a anfitriã semi-desabilitada já não responde mais a ele. Ford usou de uma rotina secreta — criada pelo próprio Bernard e instalada em todos os anfitriões — para retomar o controle da anfitriã e da situação. É a última inversão da fuga. Resta a Ford apenas narrar o fim de Bernard, recitando como ele toma a arma de Clementine, espera que Ford saia da sala, e “acabe com o sofrimento”.
Bernard vai fazer falta. Mas, estou certo, Arnold está a caminho.
Música da semana na pianola: não tivemos, mas tivemos uma caixa de música em Escalante quando Teddy chacinava sua tropa ou os habitantes, como queiram. A caixa de música tocou (novamente) Reverie, de Claude Debussy, que é associada à calma dos anfitriões, um truque que Ford aprendeu com Arnold.
Teoria descartável da semana: os indígenas da Nação Fantasma — impermeáveis às ordens de Stubbs — estão agindo sob ordens diretas de Arnold. Capturaram Stubbs para cooptar o chefe da segurança, mostrando a ele onde Elsie está enterrada, e provando que Ford é perigoso, o inimigo real a ser combatido.
Eu tenho acompanhado suas críticas e, definitivamente, esta é a melhor. Não sei o que me deu mais prazer: assistir o episódio e revirar minha mente tentando assimilar e encaixar tudo assumindo que William = MiB ou ler sua crítica. A interpretação com base em ponto e contraponto é simplesmente genial! Parabéns! Agora sobre o episódio em si, discutindo com algumas pessoas, cheguei a conclusão que a Igreja, no presente, está sim reconstruída. MiB diz à "Angela" que já esteve em Escalante. E, na cena final do MiB com Dolores, eles estão novamente neste local. Sabemos, pelas linha de Willian e Dolores que a igreja está soterrada ("Cidade engolida pela areia"). Ford vê a cidade ainda assim, certo? Mas ele diz aos engenheiros que pretende desenterrar a cidade para a nova narrativa. Em um dos episódios, nós conseguimos ver inclusive obras ocorrendo. Então, na minha interpretação, a cidade foi reconstruída. Então teríamos os seguintes eventos em Escalante: 1 - Cidade intacta antes do massacre (Ponto de vista de Dolores há 35 anos) 2 - Cidade enterrada pela areia (Ponto de vista de Dolores e William há 30 anos). 3 - Cidade enterrada pela areia (Dolores vagando sozinha em busca de Arnold - algum período entre 30 anos e o presente, pois Dolores parece ter tido "insights" várias vezes). 4 - Cidade enterrada pela areia (Ponto de vista de Ford - no "presente") 5 - Cidade intacta novamente (Ponto de vista de Dolores - no presente, após o ponto 4). Será que faz sentido? Abraços!
Creio que sua interpretação faz um enorme sentido, sim, Renan. Pode muito bem ser por aí. Eu pensei no tempo que demora para que uma região seja de fato soterrada, e me pareceu que era muita areia em pouco tempo para mudar o cenário de cidade (Dolores sozinha) para cidade soterrada (Dolores e William). Também achei rápido demais a reconstrução a partir do momento que Ford e Bernard visitam os escombros enterrados e uma reconstrução total, como vimos. Mas pensando a respeito, nada impede que as coisas tenham ocorrido como você descreve. E tem a vantagem de remover o fator "alucinação". Ainda assim, vou deixar em aberto na minha cabeça, porque ainda não tem comprovação final nem para o lado da alucinação, nem para o lado do soterramento/reconstrução rápidos. Muito obrigado pelo carinho e pela participação! Suas palavras são um enorme incentivo para que eu me supere no próximo episódio. Até semana que vem!
Hahaha se tem uma coisa que estou aprendendo com WestWorld é não fechar nenhuma porta, sem descartar nada. Senão uma hora caímos no caso "que porta?". Acho que realmente as coisas acontecem rápido demais. Se pensarmos no tempo que dunas naturalmente cobririam uma cidade levaria muitos e muitos anos. Não faz sentido que isto seja casual. Na minha interpretação Ford mandou enterrar a cidade como se ele quisesse realmente "enterrar" o que lá aconteceu, pois aquele massacre tem a ver com o "despertar" da Dolores, talvez como consequência dela ter "seguido o labirinto" e do assassinato do Arnold. Agora, o Ford pretende trazer essa cidade novamente, O propósito disso eu ainda não peguei, mas com certeza não é por acaso ser justamente nesta cidade. Deve ter alguma relação com o Arnold. Para mim soa como se Ford e Arnold estivessem jogando, desafiando um ao outro. Sobre a questão da alucinação, eu preferiria que não fosse isso. A série já ousa bastante ao mexer com diferentes linhas do tempo mostradas simultaneamente. Se colocarmos o fator alucinação nisso, pode ser que, para o público, soe mais confuso do que já é e seria arriscado. Eu pessoalmente gosto desse lance de ficar vendo o episódio, revendo e viajando, querendo entender. Mas, para muita gente, isto é o fator que faz as pessoas desistirem. Enfim, WestWorld tem sido excelente, fato que até me preocupada saber que haverá mais temporadas. Espero que realmente o planejamento dos roteiristas esteja incluindo uma história a ser contada a longo prazo porque seria uma pena esta série se perder. E o Anthony Hopkins, a Thandie Newton e o Jeffrey Wright tem feito um trabalho tão espetacular! Eles são expressivos com apenas um olhar, uma pequena expressão facial, ou com singelas mudanças na atuação. Revendo o diálogo da Dolores com o Bernard (Arnold, no caso) - episódio 4 ou 5, acho -, dá para ver como o trabalho do Jeffrey naquela cena é diferente de quando ele atua como Bernard. Continue com o ótimo trabalho! Abraços!
Grande verdade, Renan: se fechamos uma pra nessa série, a possibilidade de tomarmos uma "bola nas costas" é enorme! Sobre as alucinações, infelizmente alguma parte elas t6em nas cenas com Dolores, pois nós a vemos mudar de roupa de um momento para outro na mesma cena, o que não é possível. Podemos até não chamar de alucinação, mas sim de congestionamento de memórias, mas o fato é que ela percebe coisas que não estão lá naquele momento. Gosto da ideia de Ford ter soterrado a cidade para não precisar encarar o que ocorreu lá. Bem bacana essa possibilidade.
Acho que a série responderá tudo isso no próximo episódio! Espero que seja com uma bela edição, como foi nesse episódio! Temos que aguardar com ansiedade o próximo episódio! Eu não sei se são alucinações mesmo. Acho que vou mais no encontro de de algo similar as memórias que você falou. Acho que a mudança de roupa é um artificio do roteiro e da edição para mostrar justamente que as cenas que estão sendo mostradas, embora as vezes sobrepostas, são de momentos diferentes. E elas tem a ver com a própria personalidade da Dolores, de "donzela" a "desafiadora". Algumas cenas mesmo que ela esteja com a mesma roupa, há algum elemento que nos dê pistas que não seja no mesmo tempo, por exemplo o ferimento na barriga (nas duas a Dolores está com o traje de pistoleira). Talvez a Dolores tenha algo em sua programação que traga estas memórias. Por outro lado, não descarto o elemento das alucinações, como por exemplo, a lembrança de que ela matou o Arnold. Se o Arnold está morto, como ele pode lembrar a Dolores disso? A menos que a "morte" do Arnold tenha sido programada, que tenha sido intencional que a Dolores o matasse....