A língua é também um sofre influência da cultura, das experiências, do conjunto de sentimentos de um povo. A língua reflete raciocínios, sensações físicas e psicológicas, emoções, traumas. A língua incorpora modas e tendências, e adequa sua velocidade à velocidade dos que a falam, escutam, escrevem.
As experiências transformam o povo, e o povo transforma a língua (bem, e a língua colabora, também, para a transformação do povo e interfere na percepção das experiências, mas fiquemos só no “vice”, deixando o “versa” para outra oportunidade).
Podemos perceber o reflexo cultural nas várias línguas em termos que só nelas existem, como no caso do termo japonês karoshi, que pode ser traduzido como “morte por excesso de trabalho”. Só a língua japonesa tem um termo, uma palavra para designar este tipo de morte. Em alemão temos schadenfreude que é o prazer derivado por uma pessoa ao saber do sofrimento de outra pessoa. Não que este prazer não exista em outros povos, falantes de outras línguas, mas o termo só existe em alemão. Em inglês temos serendipity, que é a faculdade ou fenômeno de encontrar algo de valioso que não se estava procurando. Algo na linha de se abrir uma gaveta há muito fechada e encontrar lá um objeto útil que não vemos há muito tempo. Ocorre a qualquer um, em qualquer lugar do planeta, mas somente os anglófonos têm um termo que descreve isso. Nós, lusófonos também temos a nossa “saudade”, que é exclusiva em nossa língua. Saudade é mais eu sentir falta; saudade é diferente de nostalgia; saudade é fácil de sentir e saber que se está sentindo, mas em uma palavra só, em um sentimento só, só existe em português.
Pois bem, o americano John Koenig investe boa parte de seu tempo compondo o que chama de Dicionário dos Sofrimentos Obscuros, que começou como um blog, transformou-se em um canal do YouTube, e vai ser lançado como livro. Nesse “dicionário”, Koenig se dedica a criar palavras para sofrimentos e ansiedades que afligem a sociedade ocidental contemporânea. Algo como alguém que busca capturar o zeitgeist (outro termo interessante que só temos em alemão, e que significa “o espírito da época”) de nossa vida moderna em termos que definam o que sentimos e que não conseguimos nomear. Nas palavras do próprio Koenig ao definir seu projeto, temos:
“Não há nenhuma palavra no idioma Inglês para o desejo de desaparecer. Ou para a tensão estranha de uma tempestade iminente. Ou para uma troca de olhares que pode te cegar por alguns dias. Ou para a percepção de que cada transeunte aleatório vive uma vida tão completa e complexa quanto a sua. Não existe nenhuma palavra para o pressentimento melancólico do primeiro sinal do outono. Ou para a tendência instintiva de enxergar as pessoas como você as conheceu em sua juventude. Não há nenhuma palavra para o momento em que você começou a temer que sua vida iria seguir uma sequência de marcos previsíveis. Ou para o medo de que as coisas nunca poderiam acontecer de determinada forma. Não há nenhuma palavra para a suspeita de que você é absolutamente único. Nem para a suspeita de que você absolutamente não é. Ou para o receio de que não existe fronteira restante. Para a percepção de que você já sentiu tudo o que existe para ser sentido.”
Cada um dos sentimentos acima — e vários outros que vieram depois — são explorados pelo autor, em termos belos e em descrições que são, ao mesmo tempo, tristes, belas, poéticas, filosóficas. Obviamente que a ausência desses termos se repete em todas as línguas conhecidas, e os “sofrimentos” explorados têm resson6ancia em nós, lusófonos, da mesma maneira que em nossos irmãos anglófonos.
São, em sua maioria, pequenas ansiedades que a maioria de nós nem tem consciência de que sente. Quando estes nos sobrevêm, são menos impactantes que o brilho de um vagalume à beira de uma estrada escura quando estamos dirigindo a 100km/h. Mas são, de fato, ansiedades que existem que, se paramos para prestar atenção — como Koenig nos conclama em seus vídeos — explicam muita coisa em nossas vidas. Enxergamo-nos nelas, e percebemos o peso que têm em nossas ações e em nossas experiências.
Todas? Para todos? Não, claro que não. Eu, por exemplo, que sou fascinado pela História e pelo passado, me identifico com o termo “Anemoia”, que Koenig define como sendo “nostalgia por um tempo que não se viveu”. Em outras palavras: a saudade de passado que não foi realidade da pessoa que sente “anemoia”, a vontade de ter vivido esse passado. Ainda que eu não pudesse interferir e interagir com esse passado, apenas o ato de, digamos, me sentar em uma calçada na São Paulo do fim do século 19 e observar as pessoas seguindo suas rotinas já me seria suficiente. Mas, obviamente, isso não é possível. Nas palavras de Koenig, o passado é um país diferente do nosso, que só podemos observar de longe. É diferente de nossas expectativas, e jamais poderemos visitá-lo. A tristeza que sinto ao constatar essa impossibilidade é “Anemoia”. Todo mundo que já ouviu um rock clássico ou viu um trecho de um show antigo e disse para si ou para outros algo na linha de “nasci na época errada” sabe o que é “Anemóia”. Muitos de nós até podem sentir isso, mas obviamente muitos outros não têm a minha ligação com o passado, com a História, e certamente não se identificarão.
Poderão, talvez, se identificar com o termo “Sonder”, que descreve a descoberta de que todo mundo tem uma vida tão completa e complexa quanto a nossa, mesmo que para nós sejam apenas coadjuvantes no filme de nossas vidas. Nós, por nossa vez, seremos também coadjuvantes no filme de suas vidas.
Koenig vai, assim, criando substantivos que descrevem pequenos incômodos que, no mais das vezes, nos passam despercebidos, e o faz de maneira a os tornar significativos e importantes. É um explorador jogando luz em cantos escuros de nossa psique, explicando dores que nem percebemos que nutrimos dentro de nós mesmos.
Veja que interessante a lista de termos do Dicionário dos Sofrimentos Obscuros, com links para cada um dos filmes (cada um com duração no entorno de 3 minutos):
- Sonder – a descoberta de que todo mundo tem uma vida tão completa e complexa quanto a nossa;
- Vermödalen – o medo de que tudo que possa ser feito já foi feito;
- Avenoir – o desejo de se ver memórias por antecedência
- Onismo – a consciência de como é pequena a porção do mundo que você de fato experimentará
- Anemoia – a nostalgia por um tempo que você não viveu
- Oleka – a consciência de como são poucos os dias realmente memoráveis em nossas vidas
- Opia – a intensidade ambígua do olho-no-olho
- Nodus Tollens – quando sua vida não se encaixa em uma história, em uma narrativa coerente
- Ambedo – um momento de sua vida que ocorre por sua própria causa, sem estar ligado a um significado maior
- Yu Yi – o desejo de sentir de forma intensa novamente
- Socha – as vulnerabilidades ocultas que o outro guarda em si
- Kenopsia – a desconfortável estranheza dos lugares que deixamos para trás
- Astrofe – a sensação de se estar preso à Terra
- Zenosyne – a sensação de que o tempo passa cada vez mais depressa
- Klexos – a arte de revisitar continuamente o passado
- Koinofobia – o medo de se ter vivido uma vida ordinária
- Alazia – o medo de não se ter mais a capacidade de mudar
- Ballagàrraidh – a consciência de que você não está em casa na natureza
- Dès Vu – a consciência de que o que você está vivendo vai se transformar em uma memória
- Lutalica – a porção de sua identidade que não se encaixa em nenhuma categoria
- Lachesismo – a sentir falta da clareza que um desastre traz
- Kudoclasma – quando os sonhos que nutrimos a vida toda são reduzidos à realidade
- Momento de Tangência – um vislumbre das pessoas e situações que poderiam ter feito parte de sua vida, mas não fizeram
Esses termos não deixam de existir apenas no idioma inglês, obviamente: não os temos em português ou em qualquer outra língua. Tomo a liberdade de “aportuguesá-los” quando necessário e de traduzi-los mantendo o sentido que nossa língua demanda. Todos os episódios são narrados em inglês, mas apresentam legendas em português.
Recomendo fortemente que todos sejam assistidos, assimilados e pensados. Não todos de uma vez, pois as ideias ali contidas — em que pese serem belas — são densas, e demandam um tempo de assimilação. Em alguns desses verbetes, não encontraremos espelho em nossas vidas. Em outros, certamente nos enxergaremos. São situações e sensações que a vida moderna propicia, que o mundo em seu estado atual faz emergir no inconsciente coletivo (lembrando de Jung, que com seu conceito de “sincronicidade” pode ser considerado o santo padroeiro dos sofrimentos obscuros).
Mais importante: enxergaremos no Dicionário de Sofrimentos Obscuros os sutis efeitos que estes verbetes têm sobre nosso comportamento, sobre nossas vidas, sobre nossa personalidade.
Somos animais complexos, e mais complexos ainda pelo tempo em que vivemos. Koenig põe um espelho de cores melancólicas à nossa frente, mas ao encará-lo somos levados a enxergar em nós mesmos nuances que talvez tenham nos passado despercebidas por toda vida.
E não é assim – descobrindo coisas novas em nossos recônditos íntimos – que temos a oportunidade de nos aprimorar, ou de pelo menos de nos aceitar com mais clareza e consciência?
Grande Ruy, ótimo artigo-indicação! Só de lê-lo, começou a auto-análise (link com sua última frase). Rs... Um adendo. Por leigo que sou, não entendi o verbete abaixo, daí te perguntar: Poderia me descrever "Avenoir – o desejo de se ver memórias por antecedência" de uma outra forma? Abraço e, enquanto não sai o livro, "boralá" ver os vídeos. Abraço
Oi Heitor. Obrigado pelo carinho, meu caro! O Koenig descreve “Avenoir” de uma maneira bem poética. Ele faz analogia da vida de uma pessoa como sendo essa pessoa remando um barco em um lago. Imagine-se no barco: para ser eficiente, você está de costas para a frente do barco, puxando os remos mergulhados na água, e indo para frente, de costas para seu destino. Assim é a vida: temos visão do que já passou, mas não sabemos o que vem pela frente. Avenoir é a vontade de poder olhar para frente em nossas vidas, e enxergar por antecedência aquilo que virá a se tornar memória depois de passar pelo presente. É um conceito muito lindo, muito melancólico, e absolutamente impossível: enxergar o futuro como se ele já tivesse passado. Ou seja: enxergar nossas memórias por antecedência, antes de se tornarem memórias.
Perfeita explicação, perfeito entendimento. Não escrevi no comentário, mas havia compreendido como "vontade de prever". Nem um pouco poético, mas entendido na essência. Rs... Abraço, meu amigo e continuem "confrariando".