Todo mundo gosta de uma boa história de Davi e Golias, não é mesmo? Exceção feita à Apple, quando vemos uma empresa pequena enfrentando um gigante multinacional qualquer, sempre vamos torcer pelo que o americano chama de underdog, o explorado, o oprimido. O papo aqui é outro, mas só para explicar, se você não sabe, a Apple já foi pequena, já enfrentou gigantes antes de se tornar ela um gigante, e fora seus poucos fãs, todos sempre previram — com verve e esperança — sua destruição, sua falência iminente.
Recentemente o diretor Jason Cohen lançou um documentário que conta uma bela história de Davi vs. Golias que me chamou tanto a atenção que, entre eu descobrir sua existência por meio de uma dica do amigo Humberto Cordioli e parar tudo para assistir, demorou só o tempo de eu ir ao banheiro para não ser interrompido depois de começar. Cohen, para quem não conhece, foi nomeado em 2014 para o Oscar de melhor documentário curta-metragem por seu filme Facing Fear, e pelo visto tem predileção por histórias de conflitos e seus desdobramentos.
O assunto do documentário é a história da Compaq, a fabricante de computadores fundada em 1982, no Texas que, em pouco tempo, desafiou a IBM, tornou-se um dos principais fornecedores de computadores pessoais do mundo, e foi fundamental em definir o padrão de PCs que conhecemos e usamos hoje. A empresa foi responsável por mais do que isso, como veremos no fim desse artigo, mas o documentário não cobre essa parte final, o que é uma pena. Mas estou me adiantando.
A Compaq foi fundada por três engenheiros da Texas Instruments: os três amigos Rod Canion, Jim Harris e Bill Murto. Conhecedores de suas capacidades técnicas e interessados em criar um negócio próprio, qualquer que fosse (cogitaram até abrir um restaurante mexicano), os três tomaram uma decisão audaciosa: pediram demissão antes mesmo de saber o que fariam, que tipo de empresa abririam.
Estávamos, então, no início de 1982, e o mercado de computadores pessoais havia entrado em sua “fase adulta” havia menos de um ano. Digo “fase adulta”, porque, em que pese o fato de que a Apple e a Radio Shack já terem entrado com sucesso no mercado durante a década de 1970, com a oferta de ótimos computadores, poucas eram as empresas que utilizavam suas máquinas. Isso porque poucos fabricantes de software criaram pacotes de negócio. Esse cenário mudaria em 1981 com a entrada da IBM nesse mercado, lançando seu “PC”, o primeiro computador a usar o nome “Personal Computer” (“Computador Pessoal”).
Se você acha que o Google ou o Facebook são empresas dominantes nos dias de hoje é porque você não conhece a IBM dos anos 1960, 1970 e 1980. A empresa era dona de 80% do mercado mundial de informática, e competir com ela era equivalente a colocar um gato num ringue contra um tiranossauro e apostar em quem vai vencer. Durante décadas, a IBM definiu o mercado e os padrões de informática. “Novidades” tais como o protocolo de comunicação TCP/IP e o sistema operacional experimental Unix nem sequer eram registrados nos radares dos analistas de mercado da época, e a empresa se estabelecia sobre as vendas de mainframes, computadores de grande porte custando milhões de dólares. O documentário caracteriza os técnicos de computadores dessa época como “sacerdotes”, os únicos autorizados a se aproximar das máquinas.
Pois bem: em 1981, a IBM decidiu lançar uma máquina de padrão aberto (cuja arquitetura era de conhecimento público, usando componentes de fácil obtenção) no mercado de computadores pessoais. O nome “IBM” foi suficiente para que fabricantes de software portassem pacotes empresariais para a nova máquina, e o sucesso foi imediato. Em pouco tempo, a IBM tomou conta do noticiário de informática de pequeno porte, deslocando Apple, Radio Shack e outros provedores já estabelecidos. Foi como se uma loja qualquer, antes administrada e operada por adolescentes, passasse para as mãos de adultos experientes. Em questão de poucos meses, o computador pessoal saiu da condição de hobby e passou a ser uma ferramenta útil. Empresas de pequeno e médio porte que nunca tiveram recursos para adquirir um dos mainframes da IBM finalmente tinham oportunidade de se automatizar. O sucesso foi imediato, e rapidamente Golias tomou para si o campo de batalha.
Canion, Harris e Murto olharam para esse mercado e ali enxergaram uma oportunidade intrigante: por mais útil e desejável que fosse o PC da IBM, tratava-se de uma máquina do tipo desktop como as que temos hoje em dia em nossas escrivaninhas: era uma máquina fixa, estática. Uma vez instalada e configurada, deveria ficar parada em seu lugar.
O IBM-PC original, de 1981.
Os três engenheiros imaginaram uma máquina que fosse compatível com o IBM-PC, mas que eliminasse a restrição de ser uma máquina fixa. Imaginaram um computador que pudesse ser transportado e ligado em locais diferentes, podendo, por exemplo, ser usado por executivos em viagem. O esboço inicial da máquina “transportável” da Compaq foi desenhado nas costas do forro de uma bandeja de restaurante de fast food. O console abriga uma pequena tela, e o teclado é a única peça móvel do conjunto, podendo ser fixado na frente, protegendo tanto a tela quanto os leitores de disquete.
Esboço do que viria a ser o primeiro computador da Compaq
Na parte de trás do computador, apenas uma alça para transporte e o acesso a um compartimento para o fio da tomada. Mais nada, até porque não havia Internet ou outros tipos de rede local para conectar uma máquina dessas.
Na época, havia outras empresas tentando concorrer com clones do IBM-PC, mas todas elas cometeram um erro que foi evitado pela Compaq. Ao invés de copiar o código dos programas de baixo nível, que controlavam os vários chips e dispositivos do computador, Canion, Harris e Murto (e seu pequeno time, já contratado nessa época), não olharam para o código existente, mas sim escreveram o seu próprio, emulando o comportamento da máquina. O processo era lento e baseado em tentativa e erro: um programa qualquer era executado, e quando ocorria um erro ou um comportamento diferente do IBM-PC, os técnicos ajustavam o programa controlador.
Com essa estratégia, a Compaq evitou os processos judiciais que tiraram do mercado os primeiros concorrentes do mercado de PCs, e a transportabilidade de seu computador fez com que se tornasse um sucesso imediato de vendas.
Estabelecia-se como Davi, ainda que o campo de batalha fosse quase que totalmente dominado pelo Golias chamado IBM.
A partir desse momento, impulsionada por um inesperado sucesso nas vendas, a pequena Compaq teve que se expandir rapidamente, e mal dava conta de fabricar e entregar os pedidos que chegavam aos montes a escritório da empresa. Novas contratações, novos engenheiros, novos montadores, e muitos novos pedidos eram a rotina da Compaq nessa época.
Aqui Cohen mostra algo que não vemos mais no mercado americano, ou mesmo no mercado brasileiro. Mesmo que o cineasta não mencione explicitamente, vemos as linhas de produção sendo operadas nos EUA, por trabalhadores americanos. Esse fato notório e de extrema importância não é mencionado, e há uma boa razão para isso, ainda que sub-reptícia (como veremos à frente).
Em pouco tempo, a empresa quebra recordes de venda e passa a ser vista como “queridinha”, por Wall Street. Seu sucesso alça Rod Canion, o CEO da Compaq, ao posto de guru do novo mercado de informática, e a empresa vira sinônimo de sucesso, dinamismo e inovação. Em poucos anos, a Compaq sairia de seus menos de 20 empregados para mais de 10 mil, atingindo um bilhão de dólares em vendas ainda na metade da década de 1980.
Quando a IBM decidiu tomar conhecimento da Compaq, Davi já se sentia confortável no campo de batalha. A IBM ameaçou acionar judicialmente a empresa texana por infração de patentes, pois se o código base havia sido desenvolvido do zero, vários pontos da arquitetura do PC haviam sido patenteados pela IBM. Sem se fazer de rogada, a Compaq aceitou um acordo extrajudicial, pelo qual pagaria 130 milhões de dólares à IBM. Não era exatamente “dinheiro de pinga”, mas a Compaq já era tão bem-sucedida que o valor do acordo pôde ser absorvido sem problemas para a empresa.
Ainda assim, incomodada por estar sendo ameaçada no mercado que ela própria “criara”, a IBM decidiu mudar o jogo. Em uma ação ousada — bem como brutalmente equivocada —, a empresa lançou um novo computador no mercado: o PS/2, supostamente a “nova geração” de computadores pessoais. As novas máquinas tinham arquitetura proprietária e eram bem mais rápidas, por conta de um novo mecanismo de transporte interno de dados chamado “arquitetura microcanal”. Eu tive a oportunidade de trabalhar brevemente com uma dessas máquinas no início de minha carreira profissional, na IBM. Eram máquinas muito bem construídas, com uma novidade desconhecida até então: não era necessário usar chave de fenda ou qualquer outra ferramenta para montar e desmontar o computador. Uma máquina de qualidade superior, mais rápida e de fácil manutenção. Garantia de sucesso, certo?
Errado. E como…
Em sua estratégia para retomar o mercado, a IBM achou que seria uma boa ideia se os PCs comuns não executassem os programas feitos para os novos PS/2. Essa estratégia postulava que o P/2 era uma máquina tão revolucionária e superior às demais, que os empresários não hesitariam em investir em software para colher-lhe os benefícios.
Ao contrário, o que os donos de PCs comuns viram foi um gigantesco ato de desrespeito. A arrogância da IBM, segundo a opinião geral, era evidenciada pelo fato de que a empresa esperava que seus clientes jogassem fora dezenas de milhares de dólares em software e fizessem esse mesmo investimento novamente. Típica ação de quem ainda acreditava — erroneamente, claro — que ainda era “dona” do mercado.
Os 9 principais fabricantes de PC da época, encabeçados pela Compaq, uniram-se em torno do padrão aberto dos PCs e da compatibilidade do software, comprometendo-se em preservar os investimentos dos consumidores, fossem eles pessoas físicas ou empresas. E mais: com o intuito de avançar o desenvolvimento do hardware aos níveis obtidos pela IBM com o padrão proprietário da arquitetura microcanal, as 9 empresas desenvolveram o padrão EISA de transporte interno de dados, que permitia a compatibilidade do software e era aberto a todos os fabricantes de hardware.
Para tornar ainda mais forte a posição das 9 empresas, um jovem empreendedor do setor de software, um nerd de óculos grandes de nome Bill Gates — que fornecia o sistema operacional para os PCs — aliou-se ao grupo, firmando também o compromisso do padrão aberto junto ao mercado. Unia-se a Davi, a Compaq, o vendedor de fundas, a Microsoft. O resultado dessa “aliança” veremos logo ali na frente.
O documentário de Cohen, já próximo de seu final, mostra a vitória do grupo dos 9 sobre a gigante IBM, que rapidamente perderia a relevância no mercado de PCs. Cohen fecha o filme pincelando rapidamente sobre a pressão por preços menores que outros componentes o grupo dos 9 — em especial a Dell — exerceriam sobre a Compaq, provocando os primeiros prejuízos da empresa e a remoção de Rod Canion do posto de CEO, como resultado. Como fatos finais apresentados, Cohen declara que, em 2003, a Compaq e a HP se uniram em uma fusão e formaram o maior fabricante de PCs do mundo. The End.
Mesmo? Será esse mesmo o fim?
Não, se formos honestos. O documentário de Jason Cohen termina por aí porque é laudatório, e visa contar uma história de Davi vencendo Golias no campo de batalha, o que de fato ocorre. Mas falta objetividade a Cohen quando ele passa por cima de fatos importantes que ocorreram durante e depois da batalha.
Em primeiro lugar, a vitória sobre a IBM por meio da adoção de um padrão comum aos 9 grandes fabricantes de mercado marcou também o fim da diferenciação de mercado. A partir dali todos os computadores do tipo PC passaram a ter rigorosamente a mesma arquitetura, o que os tornou, para todos os propósitos práticos, a mesma máquina.
Em segundo lugar, em decorrência desse nivelamento, a diferenciação passaria a ser por preço, e não mais por características do hardware, o que gerou a guerra de preços que é levemente comentada no documentário. O que Cohen não conta é que essa guerra levaria os preços e os lucros da indústria a patamares abissais. Nos dias de hoje, um fabricante de PCs não pode nem sequer sonhar com lucros superiores a 7%, o que é absolutamente ridículo (exceção feita à Apple que vive em um mundo próprio e nunca entrou nesse acordo pela padronização). Os níveis abissais de lucratividade empurraram todos os empregos operacionais (de fabricação, montagem e logística) da indústria de informática para fora dos EUA, em direção aos tigres asiáticos, na década de 1990, e da China, nos dias de hoje.
Outro ponto importante que Jason Cohen esconde no fim de seu documentário: a “fusão” da Compaq com a HP foi, na verdade, a compra da Compaq pela HP, pois os custos da empresa texana já não eram compatíveis com os rigores do mercado. A compra pela HP, aliás, não se alicerçou sobre alguma vantagem tecnológica da Compaq, mas sim sobre a base instalada, ou seja, sobre os clientes daquela empresa. Foi o interesse nos clientes que moveu a HP, que na época também buscava formas de evitar a erosão de seus lucros.
Mas o efeito mais impressionante dessa vitória de Davi sobre Golias foi o resultado maior para a indústria de informática para os vinte anos que se seguiram: a hegemonia inconteste do fabricante de fundas, a Microsoft. A decisão de Bill Gates de apoiar os 9 grandes fabricantes de software em sua luta contra a IBM foi, sem sombra de dúvida, uma das decisões estratégicas mais geniais da história do capitalismo contemporâneo. Com ela, Bill Gates nada menos do que assegurou sua posição hegemônica no mercado de informática, o que o alçaria à posição de maior bilionário do planeta.
Em um mercado em que não havia diferenciação de hardware e todos os computadores dependiam de software da Microsoft, a empresa nadou de braçadas: passou a impor quotas de aquisição para os fabricantes, garantiu sua presença, no início dos anos 2000, em 95% dos computadores instalados no mundo. O resultado final, se olharmos honesta e completamente para a guerra dos PCs foi uma vitória de Pirro do Davi/Compaq contra o Golias/IBM, e ainda assim, uma vitória relativa e temporária.
No fim das contas, quem venceu de fato essa guerra foi o vendedor de fundas.
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