A partir desta semana passo a postar minhas impressões, ideias, teorias e devaneios acerca do episódio corrente da série Westworld, minha nova obsessão. A partir da semana que vem os textos serão postados às terças-feiras.
Atenção: o texto a seguir é recheado de spoilers sobre o episódio 1.4 (temporada 1, episódio 4).
Você foi avisada(o).
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Não me escapa a ironia de que este episódio — o primeiro sobre o qual comento — começa como começou minha primeira obsessão televisiva: LOST.
A cena inicial do episódio 1.4 (Dissonance Theory, ou “Teoria da Dissonância”) começa com um close nos olhos de Dolores (Evan Rachel Wood), a heroína cibernética de Westworld. A série LOST tem na cena inicial do piloto o mesmo subterfúgio: um close nos olhos do Dr. Jack Shephard (Matthew Fox), que aos poucos se afasta. Vemos Jack em choque deitado sobre o chão de um bambuzal no meio de uma ilha deserta. Vemos Dolores acordando de seu estupor em uma sala do laboratório. Jack está sozinho, mas logo percebe a presença de Vincent, o cão Labrador que é uma presença sutil, porém brutalmente significativa à série. Dolores é acordada pela voz de Bernard Jeffrey Wright), o técnico em comando de Westworld, que é uma presença sutil, porém brutalmente significativa à série.
Já passamos da fase (ainda bem!) de comparar toda série de mistério que surge na televisão com LOST. “A série XYZ é o novo LOST” é uma frase que pretendo nunca mais escutar, e ainda assim vai ser cedo demais. Só que é impossível não traçar paralelos, principalmente quando são suaves como no caso de Westworld, e sobretudo sabendo que as mãos hábeis de J. J. Abrams estão por trás das duas séries. Não acredito que as séries ocorram no mesmo universo, ou que veremos personagens de LOST em Westworld. Mas estou certo que os paralelos vão continuar, e talvez nem sejam tão sutis assim.
Menos sutil é o paralelo entre esta cena inicial, começando com os olhos de Dolores, um androide, e a cena inicial de Blade Runner (1982, um título porcamente traduzido para o português como “O Caçador de Androides), em que os olhos do androide Leon (Brion James) são analisados pelo policial Holden (Morgan Paull). Dolores é um Androide e Bernard sabe disso, entrevistando-a para conhecer o que se passa em seu íntimo. Leon é entrevistado por Holden para ser ou não identificado como androide, uma presença ilegal no planeta Terra. Os paralelos são inevitáveis.
É interessante observar que essas seções entre Bernard e Dolores ocorrem sem que ninguém tenha conhecimento (Será? Será que Ford, protagonizado por Anthony Hopkins, não sabe? Ele que sabe de tudo? Tenho muitas dúvidas a este respeito). As seções corriqueiras com os “anfitriões” — os robôs — ocorrem em uma parte bastante pública do laboratório, com pessoas passando o tempo todo, em uma sala onde todas as paredes são de vidro. Os anfitriões estão invariavelmente nus e são tratados como meros objetos. Aliás, o próprio Ford enfatiza este ponto de forma bastante contundente no episódio anterior, quando dá uma dura no técnico que cobre o anfitrião com um lençol, deixando apenas seu rosto à mostra. As seções entre Dolores e Bernard são bastante diferentes. Ocorrem em uma parte isolada do laboratório, onde há paredes, onde ninguém está por perto, e com Dolores completamente vestida. Bernard demonstra, nesses encontros, um respeito para com Dolores que vai muito além do respeito que se tem com um equipamento qualquer.
Dolores é incentivada por Bernard a falar do que se passa em seu íntimo, e explica que sente a dor de ter perdido os pais de forma violenta, o que ela presenciou (talvez pela enésima vez, não sabemos) e sobreviveu. No episódio anterior, ela aprendeu a se defender, matando o bandido que iria viola-la em poucos instantes. Quando Bernard pergunta se ela quer que ele tire a dor, Dolores (um nome prá lá de adequado, não?) diz que não e, segundo ela própria, adapta um diálogo para o qual foi programada para expressar como cresce por meio da dor. Algo impensável para uma máquina fazer, sobretudo pelas analogias emocionais que são feitas. A mensagem é clara: os anfitriões estão evoluindo para muito além das máquinas os visitantes pensam que são.
Penso que os anfitriões de Westworld estão a poucos passos dos Cylons, os androides de Battlestar Galactica: falta muito pouco para descobrirem que são tão conscientes quanto qualquer ser humano. É perceptível que, em algum momento da série (se a HBO não cair na besteira de cancelá-la antes do fim), veremos uma cena equivalente à cena inicial de Galactica, em que Número Seis (Tricia Helfer) entra sexy e sorridente no posto de fronteira e lasca um beijo na boca do funcionário que, no máximo, esperava por um robô desengonçado (e jamais por uma mulher fisicamente perfeita), perguntando ao abobalhado: “Você está vivo?”. A cena remete a um Teste de Turing ao contrário, em que a máquina tenta determinar se o humano é inteligente. Não tenho dúvida de que Westworld nos prepara algo nessa linha, para o futuro, isto é, um momento em que os anfitriões não só se julgarão nossos iguais, mas rapidamente passarão a enxergar-se como nossos superiores.
Antes, porém, Dolores vai passar por um périplo. Esta “menina” loira de vestido azul lembra outra menina loira de vestido azul: Alice. Como a personagem de Lewis Carroll, ela está sendo tirada de sua zona de conforto e jogada em uma aventura pela qual não pediu. Está claro que sua história muda a partir de agora: ao invés de ser recolhida e reiniciada, tendo sua memória apagada após o assassinato dos pais, ela aprendeu (foi forçada a aprender, na verdade) a se defender, e pôde correr e fugir, vivendo um próximo dia que nunca esteve ao seu alcance. Bernard sabe disso, e Ford certamente também sabe. Ela vive uma dissonância cognitiva gigantesca neste momento (e daí o nome do episódio): sua realidade percebida difere de sua realidade esperada sua crença do que deve ser real). Segundo as teorias da dissonância cognitiva, quando um ser humano passa por esta condição, tem três alternativas à sua frente: mudar sua crença, mudar suas ações, ou mudar sua percepção. São possibilidades que vão do difícil ao fácil e, ao mesmo tempo, do são ao insano. Penso que ela vai escolher mudar suas ações, para em seguida mudar suas crenças, adaptando-se à realidade que se descortina. A ver.
Maeve (Thandie Newton), a cafetina do saloon da pequena cidade de Sweetwater, revive suas memórias de dias anteriores, enxergando um indivíduo mascarado (um dos técnicos que recolhem os corpos dos anfitriões depois que são desativados pelas balas dos visitantes) e, mais uma vez, fica com a certeza de que já viu aquilo antes, que as imagens são memórias vividas, e não alucinações. Ela desenha o mascarado e qual não é sua surpresa quando, ao tentar esconder o desenho, encontra vários outros — certamente feitos por ela em dias anteriores — sem se lembrar de tê-los feito. Um déjà vu físico, palpável como aquele deve provocar um horror com o qual a maioria de nós só pode encarar em pesadelos. Uma criança indígena, passando pela cidade acompanhada de vários adultos, deixa cair um brinquedo: justamente uma figura pequena representando o técnico mascarado visto por Maeve. Ela pega a figura e a devolve à criança, sendo informada por um dos que veem os índios passarem que se trata de um ser da religião dos indígenas. Mais tarde, com a ajuda de Hector (Rodrigo Santoro), Maeve vai comprovar que não está alucinando: ela se lembra de um tiro no abdome e, com a ajuda do fora-da-lei, corta-se e força-o a remover a bala de suas entranhas. Interessante que muitas são as pessoas que têm certeza de já terem vivido esta ou aquela situação em vidas passadas. Pessoas vistas pela primeira vez na vida deixam a impressão de já terem cruzado nosso caminho, lugares nunca antes visitados nos parecem familiares, e por aí vai. Maeve vive isso, com uma explicação (que não está ao seu alcance) mais do que prosaica: ela é um robô que tem sua memória (imperfeitamente) apagada todos os dias. Para nós, nada mais simples, nada mais explicável. Para ela, o inimaginável. Por mais que para nós, expectadores, seja algo “normal”, é certo que para ela será um choque tectônico quando descobrir.
Theresa (Sidse Babett Knudsen), a diretora de QA (Quality Assurance) continua tentando estender sua influência e seu poder o quanto pode. Ela assume a investigação da autodestruição do “desgarrado”, que se mutilou batendo uma pedra na cabeça até destruir o próprio crânio. Mais tarde ela se reúne com Ford em um restaurante e se lembra de quando esteve ali muitos anos antes, quando era garota, acompanhada pelos pais. Ela ameaça Ford veladamente como boa executiva que é, só para descobrir que Ford está a par de tudo em sua vida, até mesmo do caso com Bernard e de sua visita ao restaurante quando criança. Não se brinca com quem tem esse poder, e Theresa descobriu isso da forma mais constrangedora possível. Ford me lembra aquela velha piada: “Pense na geografia de sua cidade. Se você soltar um tiranossauro vivo no centro da cidade — na praça da igreja matriz — onde o tiranossauro vai escolher dormir? Resposta: onde ele quiser.”
Ford é o tiranossauro de Westworld, e quem não prestar atenção nisso, tende a virar chiclete.
E o Homem de Preto (Ed Harris)? Ele continua sua busca pelo labirinto, chegando até o “Arroio de Sangue” (Blood Arroyo, na legenda em português incorretamente traduzido como “Orion Sangue”) e encontra a cobra, na verdade a fora-da-lei Armistice (Ingrid Bolsø Berdal), que tem uma cobra tatuada em seu corpo, adicionando uma parte da cobra à própria pele cada vez que consegue matar algum dos responsáveis pela morte de sua família. A namorada de Hector aceita a ajuda do Homem de Preto para liberta-lo e, em troca, conta a história da tatuagem. Como essa história vai ajudar o Homem de Preto, ainda veremos. Penso que Wyatt, o renegado que matou a família de Armistice e de alguma forma traumatizou Teddy, o par romântico de Dolores. Wyatt ainda é uma incógnita dessa história, mas pela violência de que é capaz parece ser um bom antagonista para o Homem de Preto. Aliás, descobrimos que o Homem de Preto é um milionário filantropo, informação que quase custa uma garganta cortada ao visitante que “agradece” ao Homem de Preto pela ajuda que sua fundação deu à irmã, salvando-lhe a vida. Um filantropo “lá fora” transforma-se em um assassino de sangue gelado. Este é o poder de Westworld: trazer à tona o lado que buscamos esconder dos outros, e até de nós mesmos.
Música da semana na pianola: A Forest, do grupo inglês The Cure.
[arve url=”https://www.youtube.com/watch?v=xik-y0xlpZ0″ align=”center”]
A letra é mais do que apropriada para o que acontece na série (tradução livre):
Chegue mais perto e veja
Ver em meio às árvores
Encontre a menina
Se você puder
Chegue mais perto e veja
Veja no escuro
Basta seguir os seus olhos
Basta seguir os seus olhos
Eu ouço sua voz
Chamando meu nome
O som é profundo
No escuro
Eu ouço sua voz
E começo a correr
Para as árvores
Para as árvores
Para as árvores
De repente eu paro
Mas eu sei que é tarde demais
Eu estou perdido em uma floresta
Sozinho
A menina nunca esteve lá
É sempre a mesma coisa
Eu estou correndo em direção ao nada
De novo, e de novo, e de novo, e de novo
Teoria da semana (a ser descartada três segundos depois que você ler): Ford é um anfitrião que, no passado, foi criado pelo original e sobreviveu a ele (talvez à força). Tudo o que vemos é seu plano para libertar os demais anfitriões de sua escravidão infernal.
Gostou? Leia a análise do episódio 1.5 – Contrapasso.
Até a próxima!
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