Em 1984, enquanto adolescente em intercâmbio no Canadá, conheci dois tipos de jogos que viriam a moldar as décadas seguintes de minha vida. O primeiro era um jogo de tabuleiro chamado Trivial Pursuit, uma versão mais sofisticada do que o nosso Master. O segundo era um jogo do tipo adventure (um conjunto de quebra-cabeças, demandando cérebro ao invés de reflexos) chamado Transylvania. O primeiro demandava que o jogador fosse bom em conhecimentos gerais e, dada a variedade dos assuntos das perguntas, era tão importante conhecer esportes e televisão quanto Literatura e História. O segundo abria-nos a imaginação, ao mesmo tempo que nos pedia para resolver problemas de lógica e a dialogar com o computador, descobrindo os comandos que nos fariam progredir pela história. E — o mais bacana — era um jogo em que as chances de sucesso aumentavam na proporção da quantidade de cabeças pensantes em volta do computador.
Em função da paixão que desenvolvi por ambos, desenvolvi uma carreira profissional na área de Computação, e minha paixão pela leitura e pelo computador nunca arrefeceu.
Pensando nesses dois jogos de mais de três décadas atrás vejo com clareza por que a série da HBO Westworld faz tanto sucesso: trata-se de um híbrido de jogo de trívia com jogo adventure para múltiplos jogadores, tudo empacotado em fina produção televisiva. Não se trata, em outras palavras, de uma série que acompanhamos passivos e comentamos por alguns minutos em volta da máquina de café. Não, Westworld é um animal completamente diferente. É um imenso e convoluto jogo de tabuleiro em que somos instados a prestar atenção a cada detalhe, a cada instante, com referências às dúzias aos mais diversos produtos da cultura pop e da cultura clássica. É um jogo que nos convida — não: intima — a participar, ao nos fazer questionar o tempo todo o que achamos que está acontecendo; ao nos provocar com pistas sutis, com becos sem saída, com possibilidades dúbias.
A história é produto das mentes incomuns de Lisa Joy e Jonathan Nolan, Lisa Joy é roteirista e trabalhou como produtora da série Burn Notice, que ficou no ar entre 2007 e 2013. Jonathan Nolan é o irmão mais novo do diretor Christopher Nolan, mas não vive à sombra daquele: escreveu os roteiros dos filmes do Batman dirigidos por seu irmão, claro, mas também foi o roteirista principal da excelente série Person of Interest, que ficou no ar de 2011 a 2016. Juntos, Joy e Nolan aperfeiçoaram um gênero televisivo que está se mostrando um sucesso absoluto: a televisão como esporte coletivo de caça ao tesouro.
Isso porque não basta assistir os episódios e comentá-los en passant no dia seguinte: os fãs da série (eu incluso, claro), passam horas discutindo as minúcias de cada episódio, buscando antecipar os acontecimentos por meio de teorias que se alicerçam sobre supostas evidências que cada um enxerga ou não ao longo dos episódios. Enxergamos aquilo que reflete nosso cabedal íntimo de cultura e nossa capacidade de raciocínio e criatividade: meus livros, meus filmes, minhas músicas, meus jogos, minhas vivências nas décadas de 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010. Tudo isso serve de insumo para as mais variadas interpretações. Agora pense que somos milhões ao redor do mundo, e pense também que os fóruns e as redes sociais potencializam os encontros destes milhões de espectadores transformados em detetives de ocasião.
Funciona?
Ô, se funciona: a série já faz mais sucesso do que Game of Thrones, a campeã da HBO — e, muitos dizem, da televisão nos dias de hoje — até então. Enquanto GoT é um híbrido de épico de fantasia com novela da Globo (as intrigas são irritantemente semelhantes), Westworld é cerebral, calculado, brilhantemente atuado e, apesar de se apoiar sobre a premissa de um filme lançado em 1973 de mesmo nome, é algo de completamente novo. Novo, porque, mesmo juntando estilos já conhecidos (mistério, mais jogo de poder, mais dúvidas existenciais de seres artificiais, etc.), executa-o de forma nova.
Westworld tem várias coisas em comum com LOST. Por exemplo — a série de mistério e ficção científica em que os sobreviventes de um acidente de avião buscam desvendar o que está acontecendo na ilha em que se veem presos —, mas ao mesmo tempo também é diferente em pontos cruciais. O principal deles é que LOST começou como uma ideia inacabada e, no meio do caminho, seus condutores principais — os mais que carismáticos Damon Lindelof e Carlton Cuse — perderam o rumo e a finalização ficou muito aquém das expectativas da maioria dos fãs. LOST abriu mistérios demais, e se enrolou para resolvê-los, deixando muita gente frustrada.
Já Westworld foi milimetricamente pensada por seus criadores antes mesmo de ser confirmada pela HBO. Antes que qualquer dos atores assinasse contrato, Joy e Nolan já tinham tudo planejado (ou pelo menos repetem isso várias vezes ao dia, para quem se digne a perguntar-lhes). Ao que parece até agora, estão mantendo a palavra: a série está para terminar sua primeira temporada, e as pontas soltas já começaram a ser amarradas. E com que destreza estão sendo amarradas!
Se você vive em um planeta vizinho e acaba de descer por aqui, de férias ou a negócios, a premissa de Westworld é primariamente simples: em um futuro próximo (algo entre 40 e 50 anos no futuro, imagino), um parque de diversões chamado Westworld é criado por dois sócios. O parque ocupa um enorme território e é composto de pequenos vilarejos cuja temática é o velho-oeste americano. Xerifes, bandidos, saloons, trens a vapor, pianolas, prostitutas bem vestidas e com sotaque europeu, e — obviamente — muito chumbo e pouca lei.
É um paraíso adulto onde o desejo corre solto, e as consequências são inexistentes. Os “habitantes” do parque são robôs, chamados de “anfitriões”. Quando morrem ou quando a história que estão vivendo naquele momento termina, estes têm suas memórias suprimidas (elas não se apagam) e começam tudo de novo, como se fosse a primeira vez. Tudo segue assim, nessa repetição de sequências, até que alguns anfitriões — por conta própria ou “incentivados” — começam a relembrar o que já viveram e, em função disso, ganham consciência de sua condição. Imagine você se lembrando que, por centenas de vezes, foi morto a bala, ou que foi estuprada sem a menor cerimônia, também por centenas de vezes. Pois é, lembrar disso pode ser traumático, e certamente vai causa insatisfação (para dizer o mínimo). Essa é a premissa inicial da série.
Ah, e tem o magistral Anthony “Dr. Hannibal Lecter” Hopkins no papel principal, como Dr. Robert Ford, o criador dos robôs e mestre incontestável de tudo o que ocorre em Westworld. Tudo? Hum, boa pergunta. Quer uma possibilidade interessante para este cenário? Se os robôs não sabem que são robôs e são virtualmente indistinguíveis dos humanos, quem garante que todos os que “sabem” ser de fato humanos são mesmo? Hum, outra boa pergunta.
Perguntas assim são feitas dezenas de vezes por dia nos fóruns de discussão. Teorias surgem às dúzias todos os dias. Há, também, dezenas de canais no YouTube discutindo a série, e várias são as publicações on-line que dedicam colunas para analisar os episódios (inclusive uma aqui no Confrariando, claro).
Em cada discussão vários palpites surgem para responder as perguntas levantadas, e o barato maior ocorre quando uma delas é respondida. Sentimo-nos como nos jogos de adventure, encontrando um caminho escondido, que nos leva um pouco mais à frente, em direção ao centro do labirinto. Por falar em labirinto…
Não, chega. Se você não conhece, não vou fazer spoiler: arrume um tempo e assista Westworld. Num instantinho, você vai entender porque estamos tão ouriçados por essa série. Você vai perceber que assistir uma série de TV deixa de ser uma atividade passiva e se transforma em um jogo de múltiplos — inúmeros — jogadores.
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