Na tradição Antropológica o Relativismo Cultural ou Culturalismo ganhou força nas palavras do teuto-americano Franz Boas (1858-1942). Essa corrente se contrapunha às ideias evolucionistas, as quais compreendiam as culturas não europeias como inferiores. Entre as teorias evolucionistas destaca-se a obra de Lewis Morgan (1818-1881) e sua noção sobre os estágios evolutivos pelos quais os agrupamentos humanos foram passando ao longo do processo evolutivo, a saber: selvageria, barbárie e civilização.
Já para a escola culturalista de antropologia, essa corrente de pensamento propunha a necessidade de se estudar cada cultura singularmente, ou seja, cada sociedade tem sua dinâmica própria, construída historicamente dentro do seu contexto específico e único. Essa corrente defendia a especificidade e a validade de qualquer sociedade e sua cultura.
O grande desafio é propor a relativização de uma determinada cultura na tensão com os princípios e valores universais. Tal desafio impacta o debate em torno da diversidade cultural e impulsiona o desenvolvimento de propostas educacionais que se dizem críticas ao arbitrário cultural dominante.
Apesar disso, como uma proposta de educação multicultural deveria utilizar pesquisas de campo para descortinar certos padrões culturais, ela também pode incorrer no erro de esquecer a tensão entre os aspectos particulares da cultura e os valores universais e acabar, contraditoriamente, utilizando argumentos inversamente etnocêntricos para justificar a adesão ao universo cultural selecionado. São essas discussões que repercutirão nos debates atuais acerca do multiculturalismo.
As políticas multiculturais, como emergiram das lutas sociais e identitárias do século XX, geralmente têm por finalidade reparar a exclusão através do processo de inclusão dos grupos subalternos, retirando-os do estado de estagnação, de carência ou invalidação social (PEREIRA & NASCIMENTO, 2006). A exclusão designa alguns estados que geralmente atingem os marginalizados: imobilidade, privações, carência e invalidação social. Este último estado é próprio do sentimento de exclusão.
A dialética entre Inclusão x Exclusão pode ser constatada, como fazem os autores na obra organizada por Pereira & Nascimento (2006), através dos múltiplos contornos da educação no Brasil, tais como: a necessidade de formulação da EJA – Educação de Jovens e Adultos – (interpretado como um programa de ação afirmativa); os problemas que derivam de como a escola trata o tema da diversidade, a invisibilidade de alguns sujeitos sociais e casos explícitos de hostilidade e rejeição; e, por fim, o caso do acesso às creches por parte da classe trabalhadora e a violência simbólica do próprio ambiente escolar em relação à diversidade. Os autores apontam que na escola brasileira muito mais perverso que a exclusão, é a “inclusão” marginalmente, pela oferta de ensino com baixa qualidade e em condições precárias.
Resgatando a história do multiculturalismo, retratamos mais a luta dos oprimidos e marginalizados na sociedade capitalista. Gonçalves & Gonçalves e Silva (2006), afirmam que o multiculturalismo tem se transformado em “uma espécie de ideologia escolar” ou teoria crítica do currículo. Na perspectiva dos autores deve-se ressaltar que, ao falar de multiculturalismo, fala-se também sobre o jogo das diferenças e, portanto, as regras do jogo assim como elas estão definidas nas lutas sociais.
No campo social, o autor e a autora do estudo ressaltam que o multiculturalismo é um tipo de consciência para a qual o agir humano se oporia a toda forma de etnocentrismo, de classificação arbitrária e hierarquização das culturas. Seu ponto de partida é a pluralidade das experiências culturais que modelam a interação social como um todo.
No campo político, para Gonçalves & Gonçalves e Silva (2006) o multiculturalismo é apenas uma, dentre outras propostas de política cultural, que têm o objetivo de valorizar a cultura e a identidade dos grupos marginalizados.
No entanto, a realidade do cenário político não está completamente aberta às discussões. Políticas culturais muitas vezes são obrigadas a coexistirem com outros projetos que colocam em questão a diversidade cultural. Às vezes, as políticas culturais têm de dividir espaço com políticas fundamentalistas e etnocêntricas que barram a perspectiva de uma educação multicultural e libertária, como é o caso da proposta conduzida por extratos conservadores e fundamentalistas da política contemporânea no Brasil com o Projeto de Lei nº 193/2016, chamado de “Escola Sem Partido”. Tal projeto questiona concepções científicas na análise das questões de gênero e de sexualidade, principalmente porque o que se pretende é o controle dos corpos e não uma postura crítica frente à padronização de comportamentos culturais impostos arbitrariamente.
Para os opositores, o multiculturalismo é considerado uma proposta ingênua, porque partiria de uma falsa consciência acerca dos problemas culturais e, em caso extremo, levaria à desintegração nacional, muitas vezes ligadas à tentativa de vincular as lutas sociais a discursos étnicos que supostamente fragmentariam a unidade nacional.
O consenso dos defensores do multiculturalismo é quase impossível de determinar. Para alguns, o multiculturalismo deve ser entendido como estratégia política para a integração social (admitindo a necessidade de se conservar “um núcleo de valores comuns”). Para outros, os valores comuns devem ser contra-atacados por considerá-los centrados em algum tipo de cultura que se julga superior a outras. Nesse contexto, o multiculturalismo seria um antídoto ao eurocentrismo e o imperialismo cultural estadunidense.
No campo científico o multiculturalismo é, para Gonçalves & Gonçalves e Silva (2006), uma espécie de corpo teórico que poderia auxiliar ou orientar a produção de conhecimento. Assim sendo, parte-se de uma visão crítica do próprio conhecimento transmitido pelas instituições organizadoras da cultura (porque o modelo que se tem é de uma educação bancária e eurocêntrica). O multiculturalismo científico se caracterizaria por descolonizar os olhares sobre a diversidade, a história e a cultura.
Ainda é interessante acrescentar que, no campo multiculturalista, misturam-se atores de “variadas colorações ideológicas”, como situam os autores do estudo que serve como base para essa análise. Apesar do sistema escolar ser o campo de atuação privilegiado dos multiculturalistas, sua origem não está na escola e suas raízes são mais profundas que qualquer reformulação curricular dos conteúdos escolares.
Primeiramente é fundamental explicitar que o multiculturalismo não tem os mesmos significados entre as nações europeias, na América anglo-saxônica e nos países latino-americanos.
Na América Latina os grupos que reivindicam o reconhecimento são os mesmos que construíram as nações nas quais vivem. Essa situação é diferente daquela de grupos que por um motivo ou outro tiveram que imigrar (na grande maioria dos casos por melhores condições de emprego) para os países europeus e Estados Unidos da América, tendo de acomodar-se ou adaptar-se em países onde se sentem estrangeiros. Essa contextualização histórica se faz necessária para demonstrar os distintos significados do multiculturalismo.
O multiculturalismo desponta como norteador das políticas culturais. A observação dessas políticas demonstra que elas têm visado interferir nas relações de poder, construindo a ponte entre as demandas sociais e as políticas públicas institucionalizadas pelo Estado. Entretanto, de início o multiculturalismo se desenvolveu em países nos quais a diversidade cultural era vista como um problema para a unidade nacional. Nessa origem, o multiculturalismo aparece como um princípio ético que orienta a ação dos grupos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito de preservarem suas características culturais e identitárias. Esse foi um fator que favoreceu a emergência dos movimentos culturalistas. Inicialmente esses movimentos expressavam as reivindicações dos grupos étnicos. A partir da segunda metade do século XX passaram a abarcar um universo cultural mais amplo: as questões de gênero, sexualidade, tolerância religiosa, entre outros.
Embora não se possa atribuir, exclusivamente, às teorias culturalistas a mudança de paradigma provocada pelo multiculturalismo na década de 1970, pode-se afirmar que elas conceitualmente embasaram e prepararam movimentos de protestos contra os modelos de dominação cultural (Gonçalves & Gonçalves e Silva; 2006, 24).
Foi a partir daí que negros, índios, algumas minorias étnicas, mulheres e homossexuais começam a detonar os critérios das classificações binárias: branco/negro; masculino/feminino; ativo/passivo. Esses movimentos inspiram as mulheres contra a suposta supremacia natural dos homens. Inspiram também os homossexuais que passam a produzir novas imagens de si mesmos e a combaterem preconceitos em relação ao seu comportamento sexual.
Aos poucos, o caráter étnico do multiculturalismo vai cedendo espaços para o enfrentamento de outros aspectos da dominação cultural, tal como o preconceito de classe. Por meio de amplas redes de comunicação, tendo como suporte a mídia e todo o sistema informacional, o multiculturalismo gera identidades que extrapolam as fronteiras nacionais e constrói identidades híbridas.
Os primeiros e os mais antigos defensores do multiculturalismo foram os afrodescendentes tanto no Brasil, como nos EUA, ainda na primeira metade do século XX. Em ambos os casos, o movimento foi liderado por aqueles que conseguiram atingir certo nível de escolaridade, apesar do preconceito sofrido em tempos de segregação e integração.
Nos EUA, o movimento aumentou o nível de escolaridade dos jovens negros, como também levou ao fim do sistema de segregação, em 1968. No Brasil, o referido movimento não teve adesão efetiva das universidades ainda na primeira metade do século XX, como foi o caso dos EUA. Talvez isso possa ser explicado pelo fato de que, embora os negros no Brasil não sejam minoritários em nossa sociedade, são nitidamente minoritários nas universidades.
Em 1960, nos EUA, aparece no movimento negro desse país uma tendência separatista que opunha-se a outras correntes dos movimentos que envolveram amplos setores liberais na defesa dos direitos civis. O movimento negro brasileiro nunca desenvolveu um projeto separatista.
Nos EUA, o multiculturalismo se institucionaliza após os primeiros manifestos dos anos de 1960 e espalha-se posteriormente para o resto do país. No Brasil, como a integração do negro, do índio e o mestiço se faz por mediação de um Estado altamente interventor e o racismo é dissimulado pelo mito da democracia racial, o multiculturalismo não se institucionaliza neste período.
O mito da democracia racial foi, provavelmente, um poderoso mecanismo de dominação já produzido e criou uma situação no mínimo paradoxal:
- O orgulho nacional não abre mão da pluralidade racial;
- Negros, povos indígenas e mestiços vivem uma brutal discriminação;
O embrião do multiculturalismo no Brasil nasce das organizações civis negras já em 1920, que eram lideradas por um pequeno número de militantes com certo nível de escolarização. As primeiras iniciativas dos negros brasileiros começam a aparecer em 1940.
A aproximação dos militantes negros brasileiros com os ativistas dos movimentos antirracistas nos EUA, no continente africano e na América Central, ampliaram as trocas culturais e políticas entre esses atores sociais.
As pesquisas financiadas pela UNESCO, nos fins de 1940, revelaram a dura realidade dos afro-brasileiros e o mito que se havia instalado em nosso imaginário. A partir de 1950, os militantes negros passam a desenvolver reações para se opor aos imperativos da suposta identidade nacional.
A desmistificação do mito da democracia racial e as mudanças na conjuntura nacional prepararam um caminho mais sólido para o desenvolvimento das ideias multiculturalistas. Por exemplo, o TEN – Teatro Experimental do Negro em 1940; a CNNB – Convenção Nacional do Negro Brasileiro em 1946.
Essas experiências dão suporte para que, na década de 1970, o teatro, na nossa sociedade passasse a ter a função de conscientizar a população negra. Surgem, neste período, vários fóruns de discussão como o FECONEZU – Festival da Comunidade Negra Zumbi e o MNU – Movimento Negro Unificado.
Daí por diante, aumentam os protestos e surgem projetos sociais de intersecção cultural e política. A partir de 1988, o racismo torna-se crime inafiançável. Entre 1990 e 1995, observa-se um clima propício para a produção de uma legislação que implementa programas de ações afirmativas e projetos culturais, sobretudo no campo da educação.
Eventos emblemáticos para a temática do multiculturalismo:
- 1990 – Marcha Zumbi contra o Racismo e a discriminação;
- 1996 – MEC promove seminário com o foco em políticas voltadas para os grupos discriminados racialmente;
- 2001 – III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias correlatas;
- 2002 – Programa Diversidade na Universidade;
- 2003 – criação da SEPPIR – Secretaria de Políticas Públicas para a Igualdade Racial, da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, da SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão e a promulgação da Lei nº 10.639;
- 2004 – Início da adoção de modalidades de políticas de Cotas em universidades estaduais e federais para alunos(as) oriundos do ensino público, negros, indígenas e pessoas com deficiência;
- 2008 – Promulgação da Lei nº 11.645;
- 2015 – Criação do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos;
A primeira década do século XXI é emblemática na adoção de políticas culturais. Como exemplo pode-se destacar as leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 (BRASIL, 2008), que alteram a LDB nº 9394/96 e estabelece a obrigatoriedade do ensino das histórias Africanas, Afrobrasileira e a Cultura Indígena.
Na tensão entre as particularidades culturais destes agrupamentos populacionais e os valores universais, está claro para os estudiosos que a aprovação da lei nº 11.645/08 não se fundamenta na perspectiva da hierarquização das culturas, ou melhor, não pressupõe de um caráter etnocêntrico, pois seu fundamento está alicerçado na possibilidade de criar um olhar humanizador sobre a história dos negros e indígenas em território brasileiro.
Ainda é cedo para avaliar os resultados, entretanto, é preciso reconhecer que o alicerce está posto e a construção efetiva de uma sociedade multicultural continuará dependendo da ação dos movimentos sociais. A partir do histórico exposto, gostaria de demonstrar que o multiculturalismo é mais do que uma preocupação de educadores pós-modernos, bem comportados, que se bastam em análises estruturalistas e pós-estruturalistas da sociedade.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Lei nº 11.465, de 10 de março de 2008 que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília – DF: Diário Oficial da União, 10 mar. 2008.
GONÇALVES, L. A. O. & GONÇALVES e SILVA, P. B. G. O Jogo das Diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
PEREIRA, B. R. e NASCIMENTO, M. L. B. P.(org.) Inclusão e Exclusão: múltiplos contornos da educação brasileira. São Paulo: Expressão e Arte, 2006.
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Foto de Luciara Bruno. Festa Bumba-Boi maranhense. São Paulo, 2002.
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