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Homepage > Categorias > Ciência > Os Outros
25/02/2021  |  By Ruy Flávio de Oliveira In Ciência, Cinema, Cultura, Literatura

Os Outros

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Não é segredo para ninguém: um dos principais temas da ficção científica são os alienígenas. Durante mais de um século os autores do gênero vêm teorizando sobre como seriam seres advindos de outros planetas, e suas especulações seriam suficientes para preencher algumas enciclopédias sobre o assunto.

A vasta maioria dos alienígenas representados pela ficção científica — boa ou ruim, aliás — têm algo em comum: diferem do ser humano basicamente por terem nascido em outro planeta e pela aparência (que, no mais das vezes preserva o antropomorfismo de seres bípedes com dois membros superiores e as mesmas cavidades faciais de um ser humano). A língua difere? Sim, como as mais de sete mil que temos em nosso próprio planeta. A cultura difere? Sim, mas pode ser identificada como cultura, e não é mais alienígena do que podemos ver em vários rincões aqui mesmo. Organização social, política, economia: tudo nos “alienígenas” é uma variação do que vemos “aqui em casa”. Um episódio qualquer de Jornada nas Estrelas, de Gene Roddenberry não difere essencialmente em nada de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, ou dos relatos das viagens de Marco Polo.

Ou seja: na maioria dos casos, ser alienígena equivale a ser estrangeiro. Tudo bem que alguns desses alienígenas representados nas páginas dos livros de sci-fi são estrangeiros no sentido de que Genghis Khan, Átila o Uno e Hitler são “Estrangeiros”, mas ainda assim, seus traços determinantes podem ser encontrados em abundância na natureza humana.

Um autor que conseguiu sistematizar os graus de diferenças entre alienígenas foi Orson Scott Card, autor da saga de Ender. Uma curiosidade: sendo mórmon, ele escolheu o Brasil para seu período de pregação, fala português e em vários de seus livros o Brasil é apontado como uma potência no futuro. Tadinho. Fecha parênteses.

Card criou quatro graus para sua “hierarquia de estrangeiridade” (Hierarchy of Foreigness):

  1. Utlänning – Um humano nascido na Terra;
  2. Främling – Um humano nascido em outro planeta;
  3. Ramen – Um alienígena inteligente e consciente com quem conseguimos nos comunicar e a quem conseguimos compreender, o que o torna um humano de outra espécie;
  4. Varelse – Um alienígena “de fato”, ou seja, um ser que não sabemos nem se é consciente ou não, com quem é impossível se comunicar e a quem é impossível compreender.

É bem fácil de perceber que para todos os efeitos práticos, não há diferenças entre as três primeiras categorias: preservam o que é essencial para que alguma capacidade de convivência seja preservada. Se posso me meter a complementar o trabalho de um autor renomado, eu adicionaria duas categorias entre 3 e 4:

3-a. Näravild – (aproveitando que todos os termos de Card são em sueco, vamos manter a tradição) – Selvagem local, vírus, microorganismos, fungos, plantas e animais não racionais que habitam nosso planeta. Nossa comunicação é bem restrita, claro, mas seus ciclos de vida e seu comportamento são compreensíveis para nós. Apesar de serem selvagens, há um ar “doméstico” em sua existência.

3-b. Avslägsenvild – Selvagem distante, seres não racionais de outros planetas, que certamente nos apresentarão ainda mais obstáculos à compreensão, mas que também podem ter seus ciclos de vida e comportamentos mapeados, por serem compreensíveis eventualmente. Essa possibilidade também lhes empresta um ar “doméstico”.

Efetivamente alienígena, só a categoria Varelse; só esses são alienígenas no sentido mais profundo da palavra. Só com os seres dessa categoria não conseguiríamos conviver.

Nesse sentido, os seres representados nos filmes da série Predador não seriam Varelse, pois compreendemos sua cultura, o fato de que são caçadores por natureza. Não é difícil postular que em um futuro distante, depois de muito estudo, de muitas tentativas diplomáticas ou bélicas, conseguiríamos conviver com aquela espécie, pois entendemos o que é a natureza do caçador.

E a criatura de Alien? Nos filmes não fica claro qual o grau de consciência daqueles seres, mas seu ciclo de vida e seu comportamento não têm nada de alienígena. Não acredita? Procure “tarântula falcão” ou “marimbondo caçador” no Google. Trata-se de uma vespa que caça tarântulas, as paralisa com seu veneno, cava um buraco e enterra a tarântula, mas não antes de botar ovos nas costas da aranha. Os ovos eclodem e se alimentam da aranha até crescerem e poderem se virar sozinhos. O ciclo de vida e o comportamento do alienígena de Alien não é muito diferente disso. Ou seja: conseguimos compreender aquele ser (apesar de isso não o deixar menos apavorante). Não é nada com que não consigamos lidar de forma racional. É um ser alienígena e bastante selvagem, claro, mas é de alguma forma “doméstico” (apesar de ser indomesticável, pelo que os filmes mostram).

Em que pese a maioria dos alienígenas dos livros e filmes se classificar nas três primeiras categorias de Orson Scott Card (e mais ainda se somarmos minhas duas tentativas de classificar os irracionais), há, claro, exemplos da categoria 4, que não podemos classificar nem como “humanos” nem como “domésticos”. São, efetivamente, os outros.

Três exemplos são bem característicos, penso.

O primeiro deles é encontrado na obra Picnic de Beira de Estrada, dos irmãos russos Arkady e Boris Strugatsky, publicada em 1972. O livro descreve o período que se segue a um evento chamado “Visitação”, em que seis locais do planeta foram “visitados” por extraterrestres sem que muito se saiba sobre esse ocorrido. O que sabemos, segundo o livro, é contado apenas pelos resquícios da visita deixados nesses seis locais: estranhos campos energéticos, objetos com propriedades físicas que desafiam o conhecimento que temos atualmente, estranhos efeitos psíquicos causados em quem visita os locais da “Visitação”, e por aí vai.

O título do livro vem de uma teoria sobre o acontecimento: quando fazemos um picnic na beira da estrada, colocamos uma lona no chão e nos esbaldamos nos “comes e bebes”. Terminado o evento, pegamos nossas coisas e vamos embora, deixando restos de comida, embalagens, tocos de cigarro e que tais no local. Os pequenos animais e insetos que passam por ali logo depois vão ficar bem confusos com o entranho cenário que deixamos para trás. O livro é fabuloso por vários fatores, mas a meu ver o maior deles é a sensação de que são tão alienígenas que não conseguimos entender, pelos restos que deixam, suas intenções, seus propósitos, ou nada sobre sua natureza. Isso, penso, é ser alienígena. Picnic de Beira de Estrada, aliás, foi a base para uma das obras primas de Andrei Tarkovsky: Stalker, que foca em um dos aspectos do livro, os aventureiros que entram nas regiões proibidas em busca de objetos para vender no mercado negro.

Uma das mensagens do livro é bem intensa: somos tão insignificantes que os alienígenas não se preocuparam nem em esconder sua visita, nem em ficar por aqui, desprezando completamente o planeta e seus habitantes depois de concluir seja lá o que vieram aqui para fazer. Fizeram o picnic, juntaram os pratos e as toalhas, todo mundo fez xixi, e foram embora, sem pensar sobre o grotão que deixaram para trás.

O segundo é a trilogia “Southern Reach”, de Jeff VanderMeer, composta pelos livros Annihilation, Authority e Acceptance. As três obras foram amalgamadas no filme Annihilation de Alex Garland, de 2018, estrelando Natalie Portman. Um meteorito cai em uma praia, e os elementos que este corpo estelar abriga começam a modificar o local atingido: fauna, flora, energia, psique, tudo passa a ser modificado por o que quer que seja que caiu na Terra.

As mudanças parecem ser aleatórias: plantas com diversos tipos de flores e folhas, arbustos que naturalmente crescem para tomar a forma externa humana, animais com características genotípicas de animais de outro filo, e por aí vai. Isso sem falar nos brutais distúrbios psíquicos que a presença no local afetado gera sobre quem se aventura a ir ver com os próprios olhos.

Tanto nos livros quanto no filme uma sensação de inevitabilidade permeia toda a ação, a certeza de que mesmo não conseguindo compreender o que está acontecendo — e talvez justamente por isso — esses acontecimentos são inevitáveis. Somos incapazes de compreender, totalmente passivos diante da invasão em curso, totalmente à mercê de seus efeitos.

Esse é o alienígena. Esse é o invasor que devemos temer. O invasor que nos faz sentir como amebas em uma placa de petri, chafurdando na gelatina, enquanto um ser absolutamente incompreensível e incomensuravelmente poderoso insere elementos que mudam o nosso entorno só para nos ver reagir.

O terceiro exemplo encontrei outro dia na Amazon Prime, canal de streaming que a família resolveu assinar. A série chama-se Tales From The Loop, e descreve a vida e as aventuras de algumas pessoas que vivem na cidade fictícia de Mercer, no estado de Ohio, onde um laboratório — The Loop — estuda fenômenos físicos sobre os quais pouco sabemos. Há um meteoro no laboratório, composto de inúmeros pequenos blocos pouco maiores que um punho fechado, mas não sabemos a origem ou mesmo quais são as propriedades do objeto. O que sabemos é que no entorno da comunidade várias peças de tecnologia estão descartadas, com propriedades que vão do prosaico (por exemplo, uma câmara de eco que aponta quanto tempo de vida a pessoa que fala tem pela frente) ao perigoso (como no caso de uma esfera que troca as consciências de quem nela adentra).

A série foca nas histórias de pessoas que convivem com essa tecnologia como se tudo fosse natural, esperado. As histórias são belas e tristes, e seu foco são os habitantes da cidade, e não a tecnologia. A vibe é semelhante à de Picnic de Beira de Estrada, como se os objetos tivessem sido abandonados por alguma cultura muito mais avançada e muito diferente da nossa. Nem seu propósito nem sua origem são explicados. Na verdade, não sabemos nem se foram trazidos de fora do planeta ou criados aqui mesmo. A sensação de que estamos lidando com alienígenas advém do fato de que nada daquilo tem coerência.

E talvez seja esse o tema subjacente das histórias de alienígenas no sentido mais profundo do termo: aquilo que não é conhecido e que não temos condição de vir a conhecer; aquilo que está permanentemente distante de nossa compreensão. O restante é sociologia, etologia, biologia ou uma mistura dos três.

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Article by Ruy Flávio de Oliveira

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Comments: 4 replies added

  1. Paulo Sakanaka 25/02/2021 Responder

    E tem gente que acredita que a Terra nunca foi visitada por extraterrestres... Vocês, humanos, são tão engraçados... :-0

    • Ruy Flávio de Oliveira 26/02/2021 Responder

      Sou da opinião de que extraterrestres inteligentes não perderiam seu tempo conosco. Se já vieram por aqui, devem ter levando amostras de DNA e nos largaram aqui, como nós passamos ao largo de formigueiros o tempo todo, sem nos preocuparmos em parar e interagir com as formigas, dado que isso seria absolutamente inútil. Obrigado pelo comentário, Saka.

  2. Jaylei 25/02/2021 Responder

    Fala Ruy! Gosto muito da série Loop, exatamente por esse caráter distópico. Não segue sempre uma relação linear entre os acontecimentos e surpreende com a simplicidade do que apresenta. Um abraço!

    • Ruy Flávio de Oliveira 26/02/2021 Responder

      Adorei "Tales Form The Loop", Jaylei. Um conjunto de poesias tristes com tempero de sci-fi. As atuações, a ambientação, os problemas e defeitos patentes nas personagens, as idiossincrasias das relações interpessoais e com a tecnologia. Tudo muito bem feito. Uma das melhores séries que vi recentemente. Obrigado pela leitura e pelo comentário!

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