O sétimo episódio da primeira temporada de Westworld leva o nome de Trompe L’Oeil, uma expressão francesa que significa “engana o olho”. Trata-se de uma técnica de pintura que permite ao artista capacitado (e põe capacitado nisso) gerar a ilusão de tridimensionalidade aos quadros, que são, por natureza, bidimensionais. Por meio de técnicas de perspectiva e sombreamento, a obra ganha — ainda que temporária e ilusoriamente — a terceira dimensão. Os exemplos na arte desde o século XVI são inúmeros, como no caso deste quadro de Carl Hofverberg, aptamente intitulado Trompe l´oeil 1737 (ano de produção do quadro. O que o artista tinha de sobra em técnica, perdia na criatividade dos nomes de suas obras):
O título será espelhado em todo o episódio, pois podemos ver a “ilusão da tridimensionalidade” em vários momentos (e não apenas na cena final, como se poderia pensar em uma análise menos profunda).
Começamos com um sonho de Bernard com seu filho, e sua atitude ao acordar de agarrar a fotografia dele com o garoto me remeteu diretamente a Blade Runner, uma vez que os replicantes se agarravam às suas mais preciosas possessões: suas memórias e suas fotografias. Era um presságio interessante, que viria a se confirmar mais tarde, no mesmo episódio. No sonho, outro ponto interessante: Bernard lia Alice no País das Maravilhas para o filho, o livro que é uma preferência gritante no seriado (outra pista).
De volta ao laboratório, Bernard continua na tarefa de avaliar se os anfitriões estão sendo afetados pelos convidados, que citam exemplos de tecnologias inexistentes no velho-Oeste o tempo todo. No caso do anfitrião sendo avaliado, Hector (Rodrigo Santoro), os efeitos da interação com os convidados parecem ser nulos. É interessante observar que os termos anacrônicos (sob o ponto de vista dos anfitriões, claro) aparecem destacados na tela, um detalhe que mostra a obsessão dos produtores da série com as minúcias, uma preocupação que se reflete, obviamente, em Ford. O amo e senhor de Westworld demonstra o tempo todo que tem domínio absoluto sobre o que ocorre no parque, e neste episódio vemos mais um exemplo claro tanto da onisciência quanto da onipotência de Ford.
Bernard ainda não sabe o que ocorreu com Elsie, que supostamente “está em seu primeiro dia de licença”. Ele não a encontra no parque, e está visivelmente preocupado.
Theresa, a diretora, vai ao encontro de Charlotte (Tessa Thompson), que a recebe nua, segundos depois de interromper o coito com Hector. A atitude “estou pouco me lixando para o que você pensa” que Charlotte exibe é uma demonstração de poder muito mais eficiente que as bravatas de Theresa. Tanto que a diretora do setor de Controle de Qualidade fica parecendo um passarinho na presença de um gato durante toda a cena. É o Trompe l’Oeil da atitude de Theresa se desmanchando, mostrando-se apenas uma ilusão passageira. Descobrimos, também, que o que interessa ao grupo Delos — que administra Westworld — é o software, e não os anfitriões. Eles querem uma forma de copiar os dados do parque para não correrem o risco de Ford destruir tudo quando for destituído. Para tanto, Charlotte bola um plano que exigirá um “sacrifício de sangue”, um dos anfitriões que exiba um comportamento violento para com um humano. É importante observar que não é de se estranhar que o valioso do parque seja o software, e não os anfitriões. Os anfitriões podem ser produzidos por impressoras 3D, e no futuro (não no de Westworld, no nosso mesmo) não será diferente: hardware será barato, produzido por máquinas em qualquer lugar, software será caríssimo, pois é aí que se encontra a inteligência que dá vida ao hardware.
Corta para Maeve, que acorda, como todos os dias, mas agora plenamente consciente de sua situação. Ela caminha pela rua, sem prestar atenção até mesmo ao duelo que acontece a poucos passos de distância, com uma expressão de distanciamento que beira o tédio. A sensação de “já te vi várias vezes” é perceptível em seu semblante, e a impaciência se mostra na interrupção da música da pianola, que ela fecha sem cerimônia.
Clementine entra na cena, no momento de sempre, bocejando, e aqui outra observação interessante: Maeve não se furta a chamar-lhe a atenção, dizendo como sempre que só deveria abrir a boca tanto assim quando estivesse sendo paga para tanto. O clichê não lhe passa despercebido, e é visível como ela se aborrece de não o ter evitado. A inteligência e a lucidez de Maeve não se sobrepõem aos aspectos mais atávicos de sua programação. De repente, todos os anfitriões congelam. Isto é, todos menos Maeve. Por alguma razão — seja pelas modificações feitas por Felix e Sylvester, seja pelas modificações feitas pela terceira entidade ainda desconhecida — ela está imune ao sinal de congelamento. Por um instante pensa que os técnicos que entram no saloon estão lá por conta dela, mas rapidamente descobre que estão interessados em Clementine, que levam embora.
Corta novamente para o laboratório, em que vemos Ford e Bernard chegando para a apresentação de Charlotte e Theresa. Vemos Clementine ser acordada por um dos técnicos e por ele ser atacada violentamente. Quando a cena é congelada, percebemos que o técnico também é um anfitrião, o que é um detalhe muito interessante. Uma de minhas teorias descartáveis é que todos os técnicos são anfitriões, lembram? Não é lá uma evidência muito grande neste sentido, mas é um indício, de qualquer forma. Em uma repetição da cena, o impensável acontece: ao invés de se deixar atacar, Clementine se defende, ataca o anfitrião se passando por humano, e o destrói.
A responsabilidade pelo suposto descuido é atribuída a Bernard, que é despedido na hora. Ele pensa em reagir, mas um rápido e sutil olhar de Ford faz com que ele se afaste sem se manifestar.
Do outro lado do parque — e, como parece cada vez mais provável — trinta e tanto anos antes, Dolores e William continuam no trem, junto com Lawrence e sua gangue, atravessando o território da “Nação Fantasma”, os índios de Westworld. As cabeças fincadas em estacas são um lembrete de que nem sempre os anfitriões são consertados pelos técnicos do parque, servindo de ‘adorno” para quem entra no território dos índios sem convite.
No trem, Dolores se declara a William que menciona “no mundo lá fora” tem uma noiva. Quando Dolores se afasta, constrangida pela rejeição, ele a segue e se entrega: ele não resistirá mais a Westworld. A cena de William mudando de vagão para chegar a Dolores é muito significativa. Uma mudança metafórica: sua vida antiga de fato fica para trás neste momento. William passa a viver para Westworld. Se William é, de fato, o Homem de Preto trinta anos antes, é neste momento que ele começa a se aproximar de seu futuro. Não será de se admirar se tudo o que fizer daí para frente, se todo o sucesso que conseguirá na vida, toda a fortuna, todas as conquistas, forem impulsionadas pela paixão que sente pelo parque. No episódio seis, ele se declarou o vilão de Westworld, mas nada garante que não seja o herói, ou que o vejamos como herói. Mais um exemplo de Trompe l’Oeil…
Depois de passarem a noite juntos, William acorda para ver Dolores pintando em um pano. Ela que sempre pintava as paisagens próximas a sua casa, usa de sua “imaginação” para criar uma paisagem que nunca viu. Ambos são interrompidos quando o trem para abruptamente, pois os trilhos estão obstruídos por pedras. São os confederados que chegam para roubar o trem. Lawrence envia alguém a cavalo com uma bandeira branca, mas não se trata de um covarde, como afirma o chefe dos confederados: trata-se do corpo que Lawrence entupiu de nitroglicerina. Lawrence atira no corpo quando este está suficientemente perto do bando inimigo, e todos fogem a cavalo enquanto os bandidos estão atordoados (os que não morreram, claro).Opa, peraí: um corpo que parece estar vivo, mas na verdade é apenas um chamariz para enganar o bando inimigo? Sim, mais um Trompe l’Oeil.
Os bandidos perseguem os fugitivos e, como era de se esperar, todos os “camisas vermelhas” (uma referência aos velhos episódios de Star Trek em que todos os coadjuvantes usavam camisas vermelhas, e sempre morriam nas cenas de ação) caem pelo caminho, derrubados pelas balas dos confederados. Quando tudo parece perdido, os índios da Nação Fantasma aparecem para salvar o dia: eles atacam os confederados, permitindo que Lawrence, William e Dolores escapem.
Depois de um tempo de cavalgada, Dolores grita para que William pare. Diante deles se descortina um belo vale, idêntico ao “imaginado” por Dolores. Perguntado sobre o que tem para aqueles lados, Lawrence responde que ninguém sabe, pois ninguém nunca retornou de lá. Nesse momento eles se separam, William e Dolores seguem para explorar o vale.
Na última parte da jornada da semana vemos algo de extraordinário, e o maior Trompe l’Oeil de todos. Bernard se aproxima de Theresa, confirma a ela que sabe das transmissões, mas que não se importa. Diz-se preocupado com Ford e com esta atitude ganha a confiança dela. Afirmando que tem algo a mostrar a ela, ele a leva para a casa no meio da floresta em que Ford mantém a família de anfitriões que simboliza sua família na infância, como vimos no episódio 6. Quando Theresa afirma que a casa não está em nenhum mapa do parque, Bernard afirma que é porque os anfitriões são usados para fazer o mapeamento, e eles são programados para não enxergar o lugar. Esta frase arma a situação para algo de extraordinário que ocorre logo em seguida. Theresa pergunta o que tem atrás da porta e Bernard pergunta “Que porta?”. O efeito visual da porta literalmente aparecendo na parede é a revelação do que muita gente já desconfiava: de que Bernard é um anfitrião. Veja a cena, primeiro como Bernard a enxerga, depois como passa a enxergar depois da pergunta de Theresa:
Quem neste momento não percebeu o óbvio, que Bernard é um anfitrião, não está prestando lá muita atenção à série. Por trás da porta há uma escada que leva a um porão. No porão vemos um laboratório com cara de pouco usado, e um tanto mais rústico que os laboratórios novíssimos e esterilizados do complexo principal. Vemos também uma impressora 3D calmamente criando um anfitrião. Theresa descobre alguns papéis com esquemas de anfitriões — incluindo Dolores — e qual não é sua surpresa quando percebe que um deles é o próprio Bernard. Quando Bernard se mostra incapaz de se reconhecer no óbvio esquema de si mesmo, Ford aparece e afirma que os anfitriões não conseguem enxergar aquilo que lhes causaria ansiedade. Cai o último Trompe l’Oeil do episódio: Bernard é um anfitrião, e não um ser humano.
O monólogo de Ford que se segue à revelação é impressionante e aterrador ao mesmo tempo: ele compara a inteligência humana às penas de um pavão: todas as nossas conquistas e insights são apenas uma forma de impressionar o(a) parceiro(a) para o ritual de reprodução. Mas o pavão mal consegue voar, e ainda vive na terra, comendo insetos que bica da lama. Na mosca. Theresa, com toda sua pompa, toda sua arrogância, toda sua agressividade de executiva de sucesso foi arrebatada por uma força que é ordens de grandeza mais poderosa que ela. É aí que temos uma vaga ideia do poder de Ford: quando ele menciona que será necessário um “sacrifício de sangue”, descobrimos que o plano secreto de Charlotte e Theresa de secreto não tem nada.
Um ponto potencialmente explosivo mostrado neste episódio é o laboratório escondido sob a casa. Eu já havia comentado no episódio 4 que as conversas de Bernard com Dolores são mais íntimas e civilizadas que as conversas “em outras partes do laboratório”. Olha só o laboratório do papo de Dolores com Bernard é este, e não o laboratório principal. Como este é um laboratório em desuso nos dias de hoje (com Ford velho), podemos fazer uma especulação interessante: e se naquela conversa com Dolores, quem estivesse falando não fosse Bernard, mas sim Arnold? A conversa pode ter ocorrido décadas atrás, e estamos achando que ocorreu há pouco tempo.
O fato de Bernard não conseguir enxergar o que lhe causa dor é uma pista de que é possível que ele seja mais que um simples anfitrião. Esta pista se materializa mais uma vez na cena da foto antiga que Bernard vê de Ford e Arnold:
À esquerda temos Ford, à direita temos (ou achávamos que tínhamos) Arnold. Isso porque é o que Bernard enxerga, que aliás o levou a perguntar ao anfitrião na casa na floresta se era Arnold. Ocorre que ou esta foto está muito mal enquadrada, ou então tem alguma coisa nela que Bernard não consegue ver. Se não for um caso de mal enquadramento, o que ele não consegue ver é a si mesmo. A teoria que salta aos olhos é simples e poderosa: Bernard é um anfitrião feito à imagem e semelhança de Arnold depois que sócio de Ford morreu, e a figura ao lado de Ford é o anfitrião que Arnold acabara de criar e lhe dar de presente. Na foto estão os três, mas Bernard não consegue se enxergar (ou, mais corretamente, não consegue enxergar Arnold).
Para fechar o ciclo da análise de poder que começamos lá em cima, é interessante contrapor a agressividade imposta por Theresa, o desdém de Charlotte que exala “não estou nem aí para você, ser insignificante, por isso não me importo de aparecer nua em sua frente”, e o silêncio de Ford. Neste quesito, ele é oTrompe l’Oeil ao contrário: se os quadros feitos com a técnica francesa aparentam ser mais do que são na verdade, Ford mostra apenas frações de seu inimaginável poder.
Música da semana na pianola: trata-se do tema usado quando o trem chega na cidade, ou seja, nada de muito especial. Tanto que Maeve se aborrece e interrompe a música. No quesito musical, porém, temos que a sequência musical do sonho de Bernard, no início do episódio, é Rêverie, L. 68, de François Joël Thiollier, uma música para lá de bela, e de uma delicadeza ímpar, absolutamente congruente com a cena em que é usada. O termo rêverie, inclusive, é o equivalente francês de reveries, os “devaneios” que Ford insere na programação dos anfitriões para que pareçam mais humanos. Exatamente, aliás, como ele fez com as memórias de Bernard, e com o mesmíssimo propósito.
Teoria descartável da semana: uma possibilidade que me intriga bastante é um dos anfitriões guardar em si a consciência de Arnold, ao invés de esta consciência estar “espalhada” pelos servidores que dão sustentação ao parque. Antes de morrer Arnold teria criado este anfitrião especial como se fosse apenas mais um dos milhares que povoam Westworld, aguardando pelo momento correto para se revelar.
Comments: no replies