No final de 2017, o consumo de maconha está deixando de ser estigmatizado em várias partes do mundo, depois de quase um século de intensa repressão. A Europa foi pioneira em iniciativas de descriminalização, e hoje países tão díspares como os Estados Unidos e o Uruguai estão na vanguarda da liberalização do uso da canabis, tanto para fins medicinais como recreativos.
Já escrevi aqui no Confrariando a respeito de “Prohibition”, um documentário excelente da PBS a respeito da Lei Seca nos Estados Unidos. Meu tema hoje é a comédia “Disjointed” (“Desenrolados”, em português), cuja primeira temporada está disponível no Netflix.
Chuck Lorre (criador dos mega-hits da TV tradicional “Two And a Half Men” e “The Big Bang Theory”) produziu para a plataforma Netflix uma sitcom com um tema muito interessante, em vários aspectos.
“Dijsointed” é estrelada pela excelente atriz Kathy Bates, ganhadora do Oscar de melhor atriz em 1991 por “Misery” (“Louca Obsessão”). É o primeiro papel de Bates para televisão. Ela interpreta Ruth Whitefeather Feldman, que é dona de uma loja de “marijuana medicinal” em um centro comercial em Los Angeles.
O cenário da loja funciona como um microcosmo da sociedade americana em um grande centro urbano, e também como uma metáfora social e política mais ampla. A personagem de Kathy Bates é uma hippie septuagenária, com um filho negro que é seu sócio na loja. Os outros personagens são caricaturais e esquemáticos: o cultivador que foi criado em uma comunidade “alternativa” fechada, o segurança que é um veterano da guerra do Iraque com síndrome pós-traumática, a asiática que abandonou o curso de medicina para trabalhar na loja, e o casal de maconheiros hardcore que posta vídeos no YouTube e tem centenas de milhares de seguidores online.
Os críticos de TV dos Estados Unidos malharam essa comédia de modo impiedoso. As piadas sobre cocô e tamanho de pênis, os estereótipos raciais e o próprio tema da série irritaram profundamente os ditos especialistas em televisão.
Tudo bem, a série não é nenhuma obra-prima e muitas das piadas e gags são primárias, até infantis. Mas a crítica parece não ter entendido o que há de realmente novo em “Disjointed”: é a primeira série de TV a “normalizar” o hábito de fumar marijuana, como uma atividade legalizada. Depois de décadas de filmes e séries onde a maconha é apresentada como um delito ou como um hábito censurável, esse programa mostra o cotidiano de um estabelecimento comercial genuíno, que paga impostos e emite nota fiscal. Não por acaso (mas sem perceber as implicações mais profundas) um crítico comparou a comédia a “Cheers”, uma série de grande sucesso nos anos 1980 e 90 que era ambientada em um bar. Em “Disjointed”, os relacionamentos entre os funcionários e frequentadores dão a tônica da narrativa, como naquela série clássica.
Mas “Disjointed” tem outros aspectos inéditos. A comédia é engraçada para o público “normal”, mas é certamente hilariante para os usuários de canabis. De fato, assistir a série sob o efeito de maconha deve ser uma experiência muito diversa do que vê-la “careta”. Há várias animações psicodélicas que dão indicações dessa intenção por parte dos criadores, e as piadas mais simplórias podem causar acessos incontroláveis de riso nos espectadores.
Um lado sério da produção é que ela revela o “limbo” jurídico que o comércio de marijuana vive nos Estados Unidos. Apesar de muitos estados já terem aprovado a regularização da venda de canabis (seja para fins medicinais ou recreativos), os comerciantes esbarram em uma legislação federal que continua considerando a maconha como entorpecente, com uma agência do governo dedicada a combater a produção e o consumo (a Drug Enforcement Agency foi criada em 1973 e conta com orçamento anual superior a US$ 1 bilhão). As lojas de marijuana penam para operar dentro de um sistema que considera seu faturamento como “lavagem de dinheiro”, dificultando a abertura de contas bancárias e a manutenção de registros fiscais tradicionais. Mesmo um estabelecimento perfeitamente legalizado em algum estado americano pode sofrer uma blitz federal, com poder de confiscar toda a mercadoria e o dinheiro. Essa política federal dos EUA é tão ampla que até o comércio de maconha em outros países pode ser prejudicado, como é o caso do Uruguai – as lojas uruguaias de canabis estão sendo boicotadas pelas filiais locais de bancos americanos, e até mesmo pelo brasileiro Itaú.
De qualquer modo, é saudável o lançamento que uma série de TV sobre esse tema, com produção caprichada e pelo menos uma grande estrela de Hollywood no elenco. Foi criada para a Netflix (poderia estar na Amazon, Hulu ou outro serviço de streaming), indicando que o alvo é o público mais jovem, que já não assiste nem a TV aberta nem os canais a cabo tradicionais.
Uma segunda temporada já está em produção, e seria interessante ver mais opiniões sobre essa comédia.
Oi Carla. Sabe, sou a favor da liberação de tudo. Cheirem, fumem, bebam, apliquem-se, porém, sejam responsabilizados pelos seus atos. Afinal, pode-se entrar em coma alcoólica, só não se pode ser pego na Lei Seca, aliás, até pode-se: carteira cassada, multa etc. Agora, por que essa picuinha com essas drogas, por enquanto, ilícitas, não? Bom, a gente sabe, né? Lucro alto de poucos. Mais. Tratar drogado como vagabundo é outro problema, pra mim, mais sério do que a liberação, porém drogado, mendigo, miserável não da ibope. São os invisíveis.
Sérgio, que texto bacana. Um "sitcom" com essa temática pôde proporcionar uma confusão de sentidos e de recepção, de que boas obras normalmente são tomadas. Se a série foi descontinuada tão rapidamente, seu subtexto dessa ocorrência pode indicar que a adesão plena e irrestrita à descriminalização do uso e comércio de entorpecentes ainda é tema controverso, já que vem colada de maneira leiga pelos detratores da iniciativa à problemática endêmica de entorpecentes considerados mais agressivos e danosos (como as injetáveis, por exemplo). No Brasil, como passamos por um momento de revisão embaralhada de valores (políticos, morais, cívicos, éticos etc.), então pode parecer quase inimaginável pensar em um comércio legalizado de maconha desvinculada de uma visão criminalizada (e glamourizada até). Com a intensificação das discussões, a ficção se torna um parâmetro interessante. A conferir.
Guilherme, não entendi essa questão de que o comércio de maconha teria uma visão glamourizada? Por qual motivo tu achas que a maconha não pode ser tratada como uma droga licita normal? Seria somente a "a ligação" com o crime? Não entendo também o "drogas mais agressivas e danosas", afinal, o cigarro e, principalmente, o álcool são agressivos e danosos e pode-se consumi-los até a exaustão. Ok, o crack e a heroína são mais agressivos? Bem, mas qual a diferença de um alcoólatra que destrói a sua vida, da família, de outros?
Sérgio, me desculpe pelo "Oi Carla".