Há uma lei empírica na Internet — a “Lei de Godwin” — que taxa: à medida que uma discussão online se estende, a probabilidade de surgir alguma comparação com Adolf Hitler aumenta. No momento em que o nazista for mencionado, a discussão termina, e quem o mencionou perdeu a parada. Isso porque qualquer comparação com Hitler ou com o nazismo será uma clara demonstração de que quem a realiza não entende nada de História, não tem senso de proporção, no mais das vezes apenas buscando agredir seu oponente. Mencionou Hitler? Perdeu, playboy.
A comparação irreal da Lei de Godwin me inspira a pensar que não é a única, e que outras podem soar igualmente absurdas, denotando a falta de seriedade de quem as propõe. Não é fácil encontrá-las, até porque ninguém sai por aí acusado “Fulano é mais fraterno que Jesus Cristo”, e também porque raras são as unanimidades nesse mundo, no calibre (e, claro, nunca na intenção) de Adolf Hitler.
Pois bem, achei um desses despautérios e vou cometê-lo desavergonhadamente nesse momento: o seriado Godless, produzido este ano para a Netflix, é um western com paralelos claros com a obra maior de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Pronto, está cunhada a “Lei de Ruy”: quem compara qualquer coisa com Grande Sertão: Veredas demonstra sem sombra de dúvida que não entende nada sobre assunto nenhum e, portanto, deve ter sua opinião descartada daí para frente, e seus textos anteriores escrutinizados com rigor, dada a possibilidade de que a doideira tenha se iniciado antes.
Mas é isso mesmo: à medida que a ação em Godless se desenvolve, vamos entendendo que o sertão — um dos principais, senão o principal, personagem em Grande Sertão: Veredas — também está no coração do velho-oeste dos EUA, no tempo das diligências.
A série em si conta a história da construção de um confronto. De um lado, uma pequena cidade no Novo México, no ano de 1884, chamada La Belle. A cidade tem uma peculiaridade: todos os 83 homens adultos, trabalhadores da mina de prata localizada nas cercanias, morrem em um acidente, deixando para trás as mulheres, um punhado de velhos e de crianças como os responsáveis por manterem as coisas em andamento. Do outro lado, o bando de Frank Griffin (interpretado magistralmente por Jeff Daniels), formado por trinta e tantos homens pesadamente armados, que deixam morte e desolação por onde passam.
Essas duas realidades, diferentes e incompatíveis, estão em rumo de colisão porque um dos componentes do bando, Roy Goode (interpretado pelo ator inglês Jack O’Connell), roubou o fruto de um dos assaltos e fugiu, na esperança de atrair para si a ira do bando e evitar que Griffin devastasse uma cidade inteira. Escondido em um rancho, em La Belle, Goode age como o ímã que atrai Frank Griffin para esta cidade onde o que não falta é sofrimento.
É Frank Griffin e seu bando que me remetem a Grande Sertão: Veredas. Tendo testemunhado o assassinato de sua família quando ainda muito jovem, Frank Griffin tem o “diabo no couro”, infligindo dor por onde passa, demonstrando que por mais que cite a Bíblia e use colarinho de pastor (frequentemente sendo confundido com um pastor, aliás), não crê no Deus que supostamente o amaldiçoou e o esqueceu. Esse lado de Griffin nos leva diretamente a Hermógenes, o chefe do bando inimigo na obra de Guimarães Rosa. Griffin/Hermógenes é um homem perturbado e violento, levando ao mundo o que este o obrigou a ser. Em mais de uma ocasião vemos Griffin como “o diabo na rua, no meio do redemunho”, o centro da destruição e da dor que seu bando espalha sob suas ordens.
Ainda assim, há outro lado para esse complexo personagem. Em vários outros momentos, ele age não como Hermógenes, mas sim como Joca Ramiro, a personificação da benevolência e da magnanimidade na visão de Riobaldo, o herói e narrador de Grande Sertão: Veredas. Griffin encarna esse lado em várias ocasiões, e principalmente no trato com seu bando. São, para ele, uma família, em quem confia e de quem recebe lealdade cega. Foi Griffin quem adotou Roy Goode ainda menino, órfão e abandonado pelo irmão mais velho. Griffin recebe Roy como filho, cercando-o do cuidado que não teve para si. Essa natureza gentil e superprotetora do bandoleiro o torna imprevisível, complexo, mortal. Um vilão de primeira categoria, trazido à vida com perfeição pelo bonachão (e excelente) Jeff Daniels.
Roy Goode, por sua vez, também remete o espectador/leitor a Riobaldo. Enquanto o jagunço debate com o leitor — e consigo mesmo — se abriu as portas de seu foro íntimo para o diabo, o pistoleiro americano nos proporciona a história de Godless porque busca, a cada instante, se livrar dessa presença em suas ações. Apaixonado pelos cavalos do rancho em que se esconde, mantém o capiroto à distância entregando-se ao trabalho. Vive o quanto pode e nos lembra o tempo todo a máxima de Riobaldo “Quem móis no aspro não fantaseia.”
Em meio à história vemos vários habitantes do imaginário faroeste criados por Hollywood: o jornalista inescrupuloso, que não hesita em por uma cidade inteira em risco para assim vender mais jornais e ganhar mais fama; a empresa de rapina, pronta para se beneficiar da tragédia da mina de prata em La Belle; o homem da lei solitário, que vaga pelo estado em paciente busca pelos bandidos; o jovem pistoleiro, assistente do xerife, com mais confiança em suas habilidades com uma arma do que juízo. Esses e vários outros compõem o universo da série, criada e produzida por Scott Frank e por Steven Soderbergh (escrita e dirigida pelo próprio Frank, aliás). Soderbergh só costuma se associar a boas produções, e Godless mantém essa tradição, com certeza. Nos das de hoje não é comum termos séries de faroeste sendo produzidas, e menos ainda séries com essa qualidade.
A comparação com Guimarães Rosa pode ser exagerada (não muito, insisto), mas demonstra mais uma vez que Grande Sertão: Veredas é obra universal. Sim, Riobaldo sempre teve e sempre terá razão: “O sertão está em toda parte”.
Apesar de ainda não ter lido o livro e nem de ter assistido o filme adorei seu artigo, parabéns e espero continuar a lê-lo.
Obrigado, Archanjo! A série é muito boa, e o livro é uma das melhores obras da literatura universal. Recomendo muito ambos. Uma excelente semana a você!