Altered Carbon, a nova série da Netflix estreou no dia 02 de fevereiro, e vem causando boas impressões entre os espectadores e críticos. Li o livro há alguns meses, depois que soube da estreia iminente, e para quem gosta de ficção científica no estilo cyberpunk, ambos são pratos cheios.
A série segue a viga mestra do livro de Richard Morgan, acompanhando os passos de Takeshi Kovacs em um futuro quando a Humanidade já conseguiu realizar dois sonhos distantes de nossa realidade: as viagens interestelares e a imortalidade. Altered Carbon se concentra nessa segunda fantasia: a imortalidade, suas vantagens e desvantagens, bem como suas consequências para a Humanidade em face de nossa psique tão selvagem, infantil e defeituosa.
A história se passa 500 anos no futuro, com Takeshi Kovacs, um ex-militar transformado em terrorista sendo acordado em um novo corpo, a pedido Laurens Bancroft — o homem mais rico e influente do planeta — para resolver um crime impossível: seu próprio assassinato.
O crime é impossível não porque não pode acontecer, mas porque o ato de matar uma “capa” de Bancroft (como os corpos são chamados) é inútil. O bilionário tem vários clones à disposição, e um backup de sua consciência é feito na nuvem a cada 48 horas, o que faz com que a perda acidental (ou provocada) de um corpo seja equivalente, no máximo, a um desmaio de dois dias, nada mais.
Para resolver o suposto crime (a polícia está convencida de que se trata de um suicídio), Kovacs é acordado depois de 250 anos de uma pena perpétua por atos de terrorismo. Aqui uma imagem interessante e um dos problemas da premissa criada por Richard Morgan em seu livro: imagine alguém acordando hoje, em nossa realidade, depois de ter ido dormir em algum momento lá em 1768. Imagine a dificuldade de entender um mundo brutalmente diferente do que o indivíduo conheceu quando sua consciência se apagou, ainda no reinado de Luís XV. Como um indivíduo que viveu antes da Inconfidência Mineira, da Revolução Francesa, da Independência dos EUA encararia o mundo atual? Com muita, muita dificuldade, certamente. E mais: à medida que a tecnologia evolui, duas coisas importantes ocorrem: ela nos aproxima, e ela acelera as transformações socioeconômicas ao nosso redor. As diferenças entre dois períodos separados por, digamos, 100 anos na Idade Média ou mesmo no século XVIII são pequenas quando comparadas às diferenças entre dois períodos separados pelo mesmo tempo, digamos entre o século XIX e XX. Quanto maior o grau de avanço tecnológico, mais rápidas as mudanças.
Em função disso, não é difícil imaginar que a sociedade 250 anos no futuro (se não nos explodirmos até lá) não se parecerá em nada com o que temos à nossa volta hoje. E não é o que vemos em Altered Carbon. O visual da série é no estilo “Blade Runner Classe Econômica”, para usar uma expressão destilada pelo confrade Sergio Kulpas, com noites perpétuas nas tomadas externas, chuva constante e vendedores de origem asiática oferecendo macarrão aos clientes, em banquinhas na beira da calçada. A opulência é registrada em prédios altíssimos que ultrapassam a linha das eternas nuvens de poluição, nas construções flutuantes, e nas amplas salas iluminadas e desinfetadas dos ricos. O contraste não poderia ser maior, e Kovacs — vivido pelo ator sueco Joel Kinnaman (o Robocop, na versão do brasileiro José Padilha) — não se faz de rogado e trafega com naturalidade por essa nova realidade. Kinnaman, aliás, faz um excelente papel na série, assim como Will Yun Lee, que faz o papel de Kovacs no meio militar e nos campos de treinamento em meio aos terroristas (ou guerrilheiros revolucionários, dependendo do ângulo sob o qual os enxerguemos). Guiado por seu preparo militar e pelas reminiscências de seu treinamento pela líder terrorista Quell, Kovacs navega com desenvoltura pelas situações que enfrenta, e aprende tanto sobre o crime contra Bancroft quanto sobre os efeitos da imortalidade sobre a Humanidade. O assassinato, em geral, passa a ser um crime sem sentido, uma vez que a pessoa morta pode voltar a ocupar outro corpo e simplesmente contar quem cometeu o ato. A possibilidade de extração da consciência e seu uploadem um ambiente virtual também abre possibilidades “divertidas” no que concerne à tortura: o torturado pode ser morto dezenas, centenas de vezes e agonia e sofrimento, para ser ressuscitadoalguns segundos depois e recomeçar o processo. Quem não confessaria qualquer coisa em uma situação dessas? A combinação da imortalidade com nossa condição imperfeita gera inúmeros caminhos que em nossa realidade não temos como trilhar.
Talvez esse seja o ponto mais importante da série: a possibilidade de sermos imortais não é, como esperam os otimistas e utópicos, um caminho para a liberdade, mas sim outro grilhão à disposição dos detentores do poder para controlar os 99,999% da população que continua pobre e sem a menor possibilidade de enriquecer. Os bilionários imortais de Altered Carbon— apelidados de “matusas”, em homenagem ao Matusalém bíblico — se assemelham aos ricaços da série Westworld, que frequentam o velho oeste cibernético em busca das emoções que apenas um mundo em que suas ações não geram consequências pode proporcionar. Este é o cerne da psique dos “matusas” de Altered Carbon: dinheiro mais poder mais imortalidade levam ao mítico “Faz o que tu queres pois é tudo da lei”, de Aleister Crowley e Raul Seixas. Assassinar violentamente uma prostituta — claro, com seu consentimento — é uma “aventura” possível, uma vez que se pode proporcionar um corpo novo para a moçoila logo em seguida. O resultado, obviamente, não é uma utopia, mas sim a ascensão de um rol de perversidades com o qual não podemos nem sonhar no mundo real.
Kovacs se vê cercado de comparsas, de inimigos e, obviamente, da polícia. Um comparsa inusitado e interessante é Poe, a Inteligência Artificial que na realidade é o hotel onde ele se hospeda, e que provê auxílio e alívio cômico. A situação de Kovacs é complexa, pois além de trazer a bagagem de ser um terrorista detestado ainda dois séculos e meio depois, ocupa o corpo de um tira “congelado” por ter sido acusado e condenado por corrupção.
O que nos leva a outra questão acerca de Altered Carbon: a trama é complexa, bem mais afeita às páginas do livro do que à tela. As linhas narrativas se multiplicam e se entrelaçam, sempre muito velozes, e nem sempre de maneira clara para o espectador.
Ainda assim, no geral Altered Carboné uma boa aventura, violenta, sensual (e não só implícita), que toca em questões filosóficas interessantes, mas que não deixa de ser uma boa história de detetive.
A moral da história: a imortalidade da mente — conseguida por meio da transferência das consciências para novos corpos — implica também na imortalidade dos cantos mais escuros e vis de nossa natureza.
Puxa, Ruy. Sua reflexão final está de tirar o chapéu! "a imortalidade dos cantos mais escuros e vis de nossa natureza." Será que nossa luz e sombra são faces de uma mesma moeda? Seria possível mantermos apenas uma delas em nossa natureza...?
Obrigado pela indagação, Carlinha. É, de fato, uma questão instigante. Eu, particularmente, acredito (sempre o otimista...) que a evolução a que estamos sujeitos, também implica na evolução da psique, se bem que de maneira bem mais lenta que qualquer outra trilha evolutiva pela qual tenhamos o potencial de passar. Um dia, num futuro muito distante, penso que vamos nos livrar desse lado sombrio. Mas que vai demorar para chegarmos lá, ah vai...
Ruy e Carla, vcs gostariam de viver num mundo de Dalai Lamas? Ok, ok, exagerei, mas vcs gostariam de viver no país mais feliz do mundo, a Dinamarca? Se todos nós virássemos Dinamarqueses ia ser bom? E na Finlândia? Aliás, a Ana Rosa Qintana não acha... “Estupenda la educación en Finlandia, y el frío, los suicidios y no poder sentarte en una terraza a tomarte unas cañas y unas tapas”
Puxa, eu adoraria viver em um mundo em que todos vivêssemos a fraternidade do Dalai Lama, com certeza, Jaylei. Ao invés de nos maldizermos, de nos invejarmos, de nos odiarmos, de nos desprezarmos, de nos sacanearmos, e tal, seria maravilhoso se nos amássemos de verdade. É isso que um dia espero que possamos fazer, ams tenho certeza de que não será em meu tempo de vida ou, sequer, nesse milênio. Quanto à Finlândia ou a Dinamarca, pelo que me consta, os progressos são visíveis, mas se já conseguiram domar 0,15% a mais do que nós seus instintos mais baixos e torpes, é muito: são crianças como nós, muito distantes ainda do ideal. E mais: livrarmo-nos de nossa selvageria não implica em abdicarmos da cerveja e dos quitutes, assim como não implica abraçarmos a depressão e o suicídio. Bom Carnaval procê.