Você se lembra do filme O Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1988)? É aquele filme em que Bill Murray faz papel de um repórter que fica preso no tempo, revivendo o mesmo dia até que — anos mais tarde, presume-se — “aprende” o que a vida queria lhe ensinar e pode, finalmente, dar sequência à sua vida (e se você vai me acusar de dar spoilerpara um filme que tem mais de 3 décadas, favor enviar sua reclamação já previamente rasgada, no sentido de facilitar meu trabalho).
Pois é, corta para 2019 e vemos uma variação fantástica dessa premissa: Russian Doll (Boneca Russa, 2019), a nova série — ou seria uma minissérie? — da Netflix, que estreou agora em Fevereiro.
O que quero dizer por “uma variação fantástica”? Simples: imagine O Feitiço do Tempo se passasse na Nova York dos dias de hoje, tivesse um roteiro do Charlie Kaufman (aquele do filme Quero ser John Malkvich) e fosse estrelado pela Dercy Gonçalves quando ela tinha 36 anos.
Veja o trailer:
Nadia, a personagem principal (vivida por Natasha Lyonne, que também produz e dirige a série) começa se olhando no espelho da casa onde sua festa de aniversário está acontecendo. Sem querer estragar a coisa, ela morre daí algumas horas, para se ver novamente diante do mesmo espelho, revivendo os mesmos momentos, mas com livre-arbítrio suficiente para mudar seu comportamento e, consequentemente, as interações que tem com os outros.
É muito difícil falar de Russian Doll além disso sem estragar a experiência e, portanto, não vou fazê-lo. É uma série muito bem escrita, com detalhes importantes saindo pelo ladrão, que demanda uma atenção enorme em um ambiente bem esquizofrênico.
A série lida com temas muito importantes: desequilíbrio mental, vício, remorso, trauma, entre outros, mas com humor e sarcasmo. Nadia tenta navegar em sua nova realidade, aprendendo sobre si mesma e sobre os que a cercam, e não há como não ligar esse tipo de roteiro com um assunto nem sempre palatável: reencarnação.
Séries como Russian Doll e filmes como O Feitiço do Tempo são metáforas para a reencarnação, no sentido Espírita do termo: reencarnamos quantas vezes forem necessárias para aprendermos, para crescermos ética, intelectual e moralmente. O Feitiço do Tempoé mais direto nessa analogia, enquanto Russian Doll é mais convoluta, mais complexa, mais dolorosamente triste e real, apesar de tão engraçada quanto seu par de três décadas atrás.
No fim, uma surpresa que nos deixa com a pergunta que lancei lá em cima, e cuja resposta nos deixará com coceira ou com ponderações para muitas décadas à frente (e ambas as respostas são igualmente possíveis, penso): a história termina ali, no oitavo episódio, ou terá continuação? Sem uma confirmação da autora/produtora/diretora, e sem um pronunciamento da Netflix no sentido da continuidade, estou tentado (e querendo, aliás) que seja uma minissérie. As implicações seriam fantásticas. Mas como espectador, adoraria ver para onde segue esse comboio em uma sequência. A história é boa demais para me deixar apenas com questões intelectuais como legado. A ver.
Noves fora, se você — como eu — passou boa parte de Fevereiro ignorando Russian Doll toda vez que aparecia no seu menu na Netflix, é hora de deixar a dúvida de lado e separar 4 horas bem medidas (são 8 episódios de 30 minutos cada) para assistir, de cabo a rabo, porque vai ser impossível largar depois de começar.
É isso e só! Não tem que ter continuação, Ruy! Muito boa série, excelente atriz e roteiro e música. Sobre o seu comentário "ambiente bem esquizofrênico", o que é esquizofrênico? Uma realidade que foge da "normalidade" ou a realidade considerada "normal"? Abs e ótima dica! Vi tudo hoje, direto! :)
Pô Flavio, vc faz uma descrição que dá vontade de ir assistir correndo !! Vou me segurar, vou deixar para o carnaval. Gostaria que você em algum momento comentasse sobre a série catalã Merli, caso tenha assistido.
Opsss...deletei o nome Ruy sem querer, caríssimo Ruy Flávio, sorry.
Excelente dica Ruy Flávio, corroborando com o comentário do amigo Jaylei, creio que seria uma normalidade em consonância com os fatos reais, outorgado pelos que deveriam refutar. Saudações e saudades ... Abraços !