“Acaso, ó Criador, pedi que do barro me moldasses homem? Porventura pedi que das trevas me erguesses?” John Milton, Paraíso Perdido.
Já dizia Rousseau que a única virtude natural humana, reguladora do instinto de sobrevivência, é a piedade, caracterizada como “uma repugnância inata diante do sofrimento do semelhante”. Identificamo-nos, por nossa humanidade, com o sofrimento alheio. Ainda que o objeto de nossa pena seja uma criatura monstruosa, julgada como desumana, sem alma. É o sentimento que temos ao ler Frankenstein, romance gótico que nasceu do desafio de Lord Byron à jovem aristocrata Mary Shelley, de 19 anos.
O monstro, que inspira nossa piedade, criado pelo cientista Victor Frankenstein, é fruto da ânsia por conhecimento dos mistérios de produção da vida, tal qual Fausto, cuja ambição pela sabedoria e imortalidade o fez vender a alma e perder o verdadeiro amor de sua vida. O roubo do fogo sagrado por Prometeu, a cobiça do fruto proibido e a queda de Adão e Eva, que lhes custou a perda do paraíso, mostra seus laços com a obra romântica fantástica. O que parecia o progresso do espírito humano, o ápice do empreendimento para o qual o doutor dedicara toda sua energia, deu início à avalanche de desgraças que selou para sempre seu destino.
Muitos anos antes de Shelley sequer sonhar em escrever sua obra prima, Montaigne, em pensamentos, já prenunciava seu protagonista quando disse “somos todos feitos de retalhos, entretecidos tão disformemente que cada elemento e cada momento age por conta própria”. Essa máxima se cumpriu em Frankenstein. A horrenda criatura, feita com pedaços de cadáveres em putrefação, pelos misteriosos conhecimentos da filosofia natural e da química, sequer recebeu nome. Mas o leitor se encarregou da tarefa e roubou o nome do criador, atribuindo-o à criatura.
A três vozes
Em sua obra epistolar, são três as vozes que Mary Shelley utiliza para nos contar sua história. A primeira voz da odisseia de horror é a de Robert Walton, destemido líder de uma expedição aos mares gelados do Polo Norte, que enviava cartas a sua irmã relatando suas aventuras e desventuras. Semelhantemente a Victor, Walton também era movido por uma paixão, cuja ambição o cegava frente aos perigos que pudesse correr e envolver os seus tripulantes: descobrir o mistério supostamente existente no Norte que faz com que a agulha da bússola sempre aponte para aquela direção. O destemido comandante encontrara Victor vagando em um pedaço de gelo que se quebrara quando o médico estava perseguindo o monstro pelas montanhas e mares gelados do Norte. Victor, depois de se recuperar parcialmente de sua convalescença, passou a contar-lhe os flashbacks de sua tragédia pessoal, fazendo-o prometer, caso tivesse oportunidade, de liquidar o hediondo ser que criara.
A segunda voz é do próprio Victor que descreve a si mesmo, seu espírito investigativo, curioso e seu desejo de realizar algo notável, que o destacaria de todos os outros seres humanos. Trata de toda a preparação acadêmica, teórica e depois prática para a manipulação dos elementos capazes de gerar a vida, culminando no “nascimento” da criatura que para sempre seria renegada por seu criador, causa do mais terrível sentimento de remorso e impotência deste. Ao levar sua ambição até as últimas conseqüências, Victor sela o destino das pessoas que mais ama. Seu irmão mais novo, William, era alvo do cuidado, carinho e dedicação extremos de toda a família. Justine, de índole serena e cheia de virtudes, não sabia como retribuir a gratidão de ter sido resgatada pela mãe de Victor, aos 12 anos, de um lar onde era desprezada pela própria mãe. Elizabeth, a quem chama de prima, órfã adotada pelos pais de Victor, amada como filha e irmã; é bela, adorável figura, e futura esposa deste, pois a mãe de Frankenstein fizera-os jurar, em seu leito de morte, que os dois se casariam. Henry Clerval era seu dileto, fiel e amado amigo, companheiro desde a infância. Seu pai, homem de todas as virtudes, incapaz de deixar de estender a mão a um necessitado, cuja trajetória era marcada por atos de bondade, que lhe foram retribuídos com sua própria esposa e sua filha adotiva Elizabeth. Queria Shelley nos mostrar, aos 19 anos, os horrores a que pode chegar a obsessão pelo conhecimento? Toda a família de Victor era formada de pessoas boas, de espírito nobre e gentil. Todos, sem exceção, foram destruídos indiretamente por aquele que ousou penetrar no âmago da centelha da vida. Foram vítimas do desgraçado ser que Victor criara e abandonara à sua própria sorte, tal o terror que se apoderou do médico ao antecipar as nefastas conseqüências que uma criatura, desprovida de alma, ou um “demônio”, um ser “abominável” como Victor se referia à sua criação, poderia trazer à humanidade.
A terceira voz é a do monstro, que ao encontrar-se com seu criador, passa a relatar o que lhe ocorrera desde o momento em que abrira os olhos, dando-se conta de sua miserável existência. É o momento em que nós, leitores, notamos que de monstro, a criatura só tinha a aparência, tal a capacidade de sentimentos nobres e atos de bondade e compaixão que ele demonstrava. Não era apenas forte e resistente à fome e às intempéries do clima. Tinha também uma inteligência extraordinária. Sozinho no mundo, perdido em montanhas frias e florestas, aprendeu a conhecer e admirar a natureza. Por meio da observação de uma família que morava em uma cabana na floresta, aprendeu a falar, ler, amar, sentir ternura e compaixão. Esses traços de humanidade remetem a algo caracteristicamente romântico: o caráter valoroso do herói. No entanto, nosso monstro-herói nada de semelhante tem com os príncipes encantados que povoavam os sonhos das mocinhas. Sua total ausência de beleza física parecia ser compensada pela nobreza de caráter. É o encontro e coexistência do grotesco e do sublime, como filosofou Victor Hugo: “tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime”.
Sua aparência grotesca e nauseante o impediam de relacionar-se com alguém; ele nunca fora amado, pelo contrário, suas boas ações foram retribuídas com o desprezo e incompreensão das poucas pessoas com as quais teve contato, especialmente daqueles a quem ajudou. Foram acesos sentimentos brutais e incontroláveis de vingança e ódio em seu coração e a criatura resolveu ir ao encalço de seu criador em Genebra. Sua primeira vítima foi a criança por todos adorada, William; a segunda, a jovem Justine, acusada injustamente de ter assassinado o garoto.
Encontro inevitável
Quando pela primeira vez, criador e criatura se encontraram face a face, o monstro pediu-lhe algo que julgava justo, já que sabia que jamais seria aceito ou amado por alguém: uma companheira à sua imagem e semelhança. Victor, em princípio, despreza essa possibilidade abominável, e depois de obter a promessa de que o monstro e sua companheira deixariam a Europa, aceitou a terrível tarefa. O monstro, pacientemente, em vão esperou pelo cumprimento da promessa. Victor, para manter a família longe de empreendimento tão macabro, viajou à Inglaterra em companhia de seu fiel amigo Clerval para lá construir a prometida criatura. No meio do processo de criação da parceira para o monstro, Victor desistiu. Foi flagrado nesse momento pela criatura, que o vinha seguindo desde que ele deixara Genebra. Mais um inocente, então, conhece a ira alimentada pela vingança: Clerval é estrangulado pelo monstro. Restam-lhe, agora, sua amada Elizabeth, e o pai.
Victor volta para sua terra natal e em meio a tantas desgraças e infelicidade, na esperança de restituir um pouco da alegria de seu pai e de recomeçar sua vida, resolve cumprir a promessa que fizera a sua mãe de casar-se com Elizabeth. O monstro, porém, iria se encarregar de que essa possibilidade de felicidade e prazer não se concretizassem. Prometeu a Victor que o encontraria na noite de núpcias.
O golpe final não era sequer imaginado por Victor, que pensava que ele era o alvo de sua criatura. Antes que pudessem consumar o casamento, Elizabeth foi estrangulada pelo monstro, enquanto Victor vigiava os aposentos da hospedaria em que passariam a noite. Foi também o golpe fatal para o pai de Victor adoecer e morrer de desgosto. A partir daí, Frankenstein é movido pela vingança, e matar o monstro para livrar o mundo de tão abominável criatura torna-se sua única motivação para continuar a viver. Ei-lo, então, acorrentado, impotente, diante da superioridade da criatura que lhe consome a vida, sem sequer tocá-lo.
Criador e criatura tête-à-tête
Nas páginas finais do romance, retoma-se o caráter epistolar, onde Walson, finalmente, conta o desfecho da história de Victor – não resistiu à febre e morreu – e sua criatura, que, tomado pelo remorso, e não vendo mais sentido na vida, visto que seu criador já não existia, resignou-se também a morrer. Walson, que ganhara e perdera tão rapidamente um amigo, refletiu sobre sua própria história e resolveu abandonar sua ambição, depois de testemunhar a tragédia pessoal iniciada pela busca inconsequente de conhecimento de Victor Frankenstein. O desfecho traz a morte como solução para os problemas insolúveis. Ela é também, ao mesmo tempo, solução e sublimação, não um julgamento, mas quase que uma espécie de redenção, já que os próprios “heróis” do romance decidem pela morte, condizendo com o tom macabro característico de muitas das narrativas românticas.
Excelente artigo, Claudia! É uma visão muito necessária sobre essa obra, que foi totalmente deformada pela cultura pop. Quem vê o monstro interpretado por Boris Karloff não imagina a densidade do romance escrito por uma moça de 19 anos. Não existe adaptação de boa qualidade do livro para o cinema -- assim como não existe adaptação aceitável de "O Retrato de Dorian Gray", do Wilde, que trata de temas semelhantes.
Olá, Sérgio! Obrigada por sua leitura e comentário. Apesar de nossa jovem escritora ter escrito outras novelas que fizeram sucesso na época, tal como Valperga (1823), The Fortunes of Perkin Warbeck (1830), The Last Man (1826), Lodore (1835) e Falkner (1837), com certeza, a que a imortalizou, foi Frankenstein, qessa, escrita já no fim de sua vida.
Olá, Sérgio! Obrigada por sua leitura e comentário. Apesar de nossa jovem escritora ter escrito outras novelas que fizeram sucesso na época, tal como Valperga (1823), The Fortunes of Perkin Warbeck (1830), The Last Man (1826), Lodore (1835) e Falkner (1837), com certeza, a que a imortalizou, foi Frankenstein, que ainda encanta pessoas de todas as idades. Como você bem observou, ainda está para surgir uma adaptação da obra para o cinema que faça jus à grandeza da criatividade da "menina" Mary Shelley.