Quando pensamos na vida, é comum pensarmos também no fim, seja por meio de trivialidades — que têm sentidos não lógicos, intrínsecos ao indivíduo que lhe confere — seja pelas crises, agentes de transformação. Esse é o prólogo do novo romance de Michel Laub, O tribunal da quinta-feira (São Paulo: Cia. Das Letras, 2016, 184 p.). Na esteira do sucesso de seu romance anterior Diário da Queda, o escritor e jornalista gaúcho radicado em São Paulo toma a crise de meia-idade de um publicitário para expor o momento atual do país, doente, pelos “sintomas”.
Como em um movimento de anamnese, o protagonista José Victor narra o que vive no momento: separado há meses, ele tem a sua vida devassada pela ex, que encontra a senha de seu e-mail e expõe os e-mails trocados entre ele e seu melhor amigo, Walter, na internet. A narrativa, que conta os momentos entre a divulgação das mensagens — um domingo — e o dia em que deverá lidar com as consequências disso — quinta-feira, aludida pelo título —, é entrecortada por elementos ajudam o leitor a entender a constituição do próprio romance.
Um dos mais evidentes aspectos é a composição do romance em textos curtos, registros rápidos, como uma troca de e-mails, uma lista de comentários de uma página na web ou uma rápida anotação em um caderno de trabalho. Cada capítulo ainda mantém sua coerência interna e ainda se relaciona com essa série de vozes a que recorre o narrador para dar conta dos fatos e expor sua versão ao tribunal. O júri, nesse caso, somos nós, os leitores, que acompanhamos José Victor em sua jornada durante esses dias de crise. O que é em princípio uma aparente facilitação se revela um dos aspectos mais exaustivamente trabalhados pelo escritor, em que notamos a cada linha o registro de discursos que falam por si. Ou seja, cada frase é familiar e, ao mesmo tempo, não, pois, remete-se à verborragia dos discursos conflituosos tão comuns na internet.
O amigo confidente é Walter, colega dos tempos de faculdade, homossexual, que lida com o fantasma da AIDS, que paira sobre a trama. Aqui, Laub recorre ao peso da carga histórica da epidemia nos anos 1980, quando a doença era sinônimo de discriminação e inscrição, em um registro religioso, como pecado e penitência. Assim as referências da cultura popular e do contexto social e político do Brasil daqueles anos servem como um ponto inicial para acompanhar as transformações do Brasil nos últimos trinta anos. Por meio da retomada da história do amigo gay, narra-se também a mudança de perspectivas e de abertura que a sociedade sinaliza com o passar das décadas, sem deixar de registrar em um interessante subtexto simultâneo que percorre toda a obra: o preconceito ainda perdura e se manifesta violentamente de outras formas, ainda mais sutis. É uma leitura pertinente e alinhada aos acontecimentos recentes, quando passamos por um período de forte dissensão e revisionismo histórico.
A partir dessas experiências a que é submetido seu melhor amigo, o narrador também compartilha sobre seus hábitos e aventuras sexuais antes e depois do casamento. Assim, outro sintoma estudado pelo romance é o adultério, como manifestação da falência de um projeto de vida da classe média brasileira, normatizada pelos discursos de bom senso, da correção política e de uma cultura elitizada – que segrega, portanto. A partir da relação do protagonista com a estagiária da agência de publicidade onde é diretor, a narrativa traz outra nuança interessante, que são os conflitos de classe social e de raça em outra chave, agora aclimatados ao mundo corporativo.
A ex-esposa, aqui retratada pelo narrador como uma pessoa sem senso de humor, norteada por uma forte consciência de seu lugar na sociedade – ou seja, alinhada aos discursos relacionados ao gênero, às demandas sociais – que não foi capaz de detectar a relação intrínseca ao discurso de dois amigos íntimos, que por vezes incluem piadas, sarcasmo e escatologia. A respeito da problemática do humor na obra, recomendo a leitura do excelente texto de Camila Von Holdefer, no Blog do Instituto Moreira Salles.
Com a divulgação dos melhores trechos dos e-mails trocados entre ele e Walter, o discurso da antiga companheira torce esses mesmos discursos para revelar seus próprios ressentimentos, ira, ciúme, vingança, mesquinhez, crueldade e indiferença. Nisso reside a força do texto de Laub: é dessa ambiguidade, que vai da proteção incondicional dos direitos individuais ao agravo escancarado e impiedoso das redes sociais, que pode tornar o texto, em uma leitura rasa e descuidada, misógino e feminista ao mesmo tempo. Nada no romance, no entanto, é impensado ou gratuito.
O romance de Laub nos fala também do contexto do Brasil nos anos recentes, quando se nota uma quebra dos valores e dos costumes, mas também indica a contrarreação mais recente a esse movimento de abertura. Notadamente, outros romances lançados no mesmo ano, como Simpatia pelo demônio e Reprodução, de Bernardo Carvalho, Meia-noite e vinte, de Daniel Galera, a crise de meia-idade é componente importante, senão central, dessas narrativas. A crise também funciona como uma alegoria da humanidade da virada do milênio, atravessada pelo pós-feminismo, pela revolução tecnológica, pela iminência de outro grande conflito mundial, pela perda de direitos conquistados. Um lugar enfermo e craquelado em que, como o protagonista, ainda se mantém a esperança de redenção.
Artigo excelente Guilherme!! Parabens!!
Cara Beatriz, fico muito feliz de ver você lendo nossos textos. Obrigado! Continue acompanhando! Abraço!