A literatura é, também, uma exploração do que é ser humano. Personagens e situações vividas na miríade de livros de ficção publicados ao longo da história nos descortinam mais sobre nós mesmos — sobre nossa natureza — do que sobre os personagens em si. Isso não é novidade, o Dr. Fausto de Goethe, o Othello de Shakespeare, o Riobaldo de Guimarães Rosa e a miríade de outros personagens, de outros autores, falam sobre o que somos, como somos, porque somos. Boas histórias são medidas não somente pelas ações ou “aventuras” vividas, mas também pelas características dos personagens e pelas transformações pelas quais esses personagens passam ao longo dessas aventuras.
No início do século XIX, passamos a observar a natureza humana pela lente fantástica daqueles que não são humanos. Mary Shelley deu início a essa seara quando nos fez enfrentar as naturezas selvagens — e ainda assim tão humanas — do Dr. Victor Von Frankenstein e de seu monstro. Se, na teoria literária estruturalista uma maneira simples (e pueril) de identificar o vilão é olhar para aquele personagem que não se transforma ao longo da história, então Frankenstein não tem vilões, pois ambos criador e criatura são fundamentalmente transformados pela saga que vivem. E como são humanas essas transformações. Como enxergamos a natureza humana na impetuosidade impulsiva de Victor Von Frankenstein, transformada em desespero e ódio , como nos vemos na necessidade de compreender a nós mesmos, transformada em rejeição e — também! — em ódio nas palavras e ações do monstro.
Shelley abriu uma porta pela qual passaram inúmeros autores desde então, Bram Stoker, H. P. Lovecraft, Robert Louis Stevenson e H. G. Wells foram alguns dos que exploraram a natureza humana por meio de personagens fantásticos, e muitos foram os que vieram e continuam vindo depois deles.
A literatura fantástica contemporânea conta com nomes de peso, como autores do calibre de China Mièville e Neil Gaiman produzindo há algumas décadas obras majestosas em criatividade e relevância para os tempos em que vivemos.
Claire North, pseudônimo da autora britânica Catherine Webb, é um exemplo da nova safra de autores fantásticos, e sua obra é um estudo meticulosamente detalhado e preciso da natureza humana, sempre visto sob a óptica de criaturas fantásticas, mas quase humanas.
Os personagens de North são quase humanos, mas por um acidente da Natureza, possuem alguma característica que os separa para sempre de nossa espécie. O protagonista do livro The First Fifteen Lives of Harry August (As Primeiras Quinze Vidas de Harry August) é um ser eterno, mas sua eternidade se dá de forma bastante peculiar: ele nasce em 1919, vive uma vida plena e morre no fim do século 20, para imediatamente nascer novamente em 1919, ganhando consciência de suas vidas passadas logo depois da primeira infância. Vive o mesmo período, mas como tem consciência das vidas anteriores, pode tomar decisões diferentes, e suas vidas são sempre ricas em aventura, riqueza e conhecimento. Isso quando não terminam em dor, assassinato, desespero. Mas, fazer o quê? É a vida. Ou melhor: são as vidas.
Pelos olhos de Harry August entendemos o que é a mortalidade, e o que é viver uma época. Nós o invejamos, claro, pois de certa forma ele é imortal. Mas será que leva uma vida invejável, mesmo? Será que gostaríamos de reviver os mesmos momentos pelos quais passamos de novo, e de novo, e de novo? Quantas vezes toparíamos ver nosso maior desafeto político sendo eleito, sem nada que possamos fazer para mudar esse fato? Até poderíamos mudar as coisas, mas há regras rígidas sobre os limites de ação de um Ouroboreano (de “ouroboros”, a serpente que morde o próprio rabo, símbolo da natureza cíclica, que tem origem na mitologia Egípcia).
No livro Touch (Toque), somos apresentados a Kepler, um indivíduo que se vê espancado até a morte em um beco escuro, mas antes de morrer, ele passa sua consciência para o corpo de seu assassino. Passa a viver assim, a partir de então, movendo-se de corpo em corpo. Enquanto habita alguém, a consciência desse alguém fica desacordada, só retornando quando ele se vai. Ele pode passar anos no corpo de uma pessoa, vivendo sua vida e, efetivamente, roubando-lhe o tempo em que passa em seu corpo. É, não é difícil perceber ali um tipo bastante peculiar de vampirismo, e contemplamos o que é a identidade de uma pessoa pelos olhos — ou melhor, pela consciência — de Kepler. Não nos perguntamos de vez em quando como seria viver a vida de Fulano ou de Sicrano? Pois Kepler pode fazer exatamente isso — e, no mais das vezes, faz.
Já no livro The Sudden Appearance of Hope (a aparição repentina de Hope), a adolescente Hope Arden começa a ser gradativamente esquecida por todos à sua volta. Colegas de escola, amigos e, finalmente, seus pais se esquecem-se de sua existência, e passam a conhecê-la pela primeira vez quando a encontram. Qualquer um que deixe de ter contato visual ou auditivo com ela por mais de três minutos, a esquece completamente. A mente dessa pessoa tece uma história fictícia que exclui Hope completamente. A jovem rapidamente se vê absolutamente só e impossibilitada de desenvolver relacionamentos, quaisquer que sejam. Também descobre que, em sua condição, pode se tornar uma ladra de reputação internacional, sem jamais ser presa. Invejável essa condição? Mesmo? Trocaríamos a possibilidade de desenvolvermos relacionamentos para nos tornarmos efetivamente invisíveis? A solidão de Hope dói na alma.
Claire North tem outras obras, igualmente bem escritas, e igualmente explorando a natureza humana pelos olhos dos que deixaram a Humanidade para serem fundamentalmente diferentes. Carregam em si, contudo, as características que definem nossa essência, e são, no fim das contas, exilados em seus países de origem.
E não é assim que todos nós nos sentimos de vez em quando (ou de vez em sempre)?
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