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30/04/2020  |  By Guilherme Nicesio In Arte, Cinema, Crônica, Literatura

Diante da janela

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Nesses tempos de quarentena, resistimos como podemos, desiguais, desinfelizes. Trabalha-se, muito, a despeito da falta de emprego. Se não são as mãos ocupadas com algo, é a mente, a imaginar cenários e mundos diferentes, futuros. Esse é o efeito de se ter o espaço confinado: sobra-se na gestão do tempo. Um quintal, um privilégio para alguns. Uma sacada, um lenitivo para outro. A soleira da porta, nem isso para muitos. Assim, todos ficam matutando seu plano de fuga, o plano B. Nessas circunstâncias, ler um livro, assistir ao um filme, cuidar de um jardim ou uma horta, consertar algo ou simplesmente olhar a janela devem ser coisas bem valorizadas e tornam-se uma maneira interessante de promover essa escapada, em meio à satisfação das necessidades básicas da existência, cuja importância foi imperiosamente resgatada nesse momento.

Uma das leituras que nos cai em mãos a trazer essa perspectiva é a obra Pequenas alegrias (1977), livro póstumo do escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962), em uma tradução já antiga de Lya Luft. Ele tomará a contemplação como a ação motora de sua escrita, como alguém que mira o horizonte, belo ou feio, transcendendo-o sobretudo. No texto que abre essa coletânea de textos curtos, mas precisos, ele recomenda o amor às coisas e aos prazeres simples e a uma vida de comedimento. Ele reconhece a forte influência da vida moderna e o peso que isso nos traz, em que mesmo os momentos de lazer são aproveitados como um trabalho e, segundo ele, “(…) resulta sempre mais diversão e menos alegria”. Contra a pressa e a urgência pela fruição do tempo como “O máximo rendimento possível, com a maior rapidez possível”, ele recomenda “um remédio particular, antigo, infelizmente bem retrógado: prazer comedido é prazer dobrado. E não ignorem as pequenas alegrias”.

Viver assim, segundo ele, seria evitar acompanhar as tendências e novidades de nosso tempo com avidez e fome. Evitar o último lançamento de livro, a última estreia no teatro, a galeria de arte com os quadros mais comentados. Ao invés disso, Hesse propõe que nos dediquemos aos prazeres pequenos, mas bem mais satisfatórios e duradouros: o contato com a natureza, a frugalidade de se aproveitar uma leitura com o devido tempo, e não engolida pelo regime de leitura em série. Em outras palavras, equivalentes aos dias de hoje, nada de “maratonar” séries. Para tanto, ele estipula um rigoroso exercício de abrir os olhos. Aparentemente ligado a esses temas ditos pequenos, em uma literatura tida como regional, acaba por tratar de grandes temas:

“Um pedaço de céu, um muro de jardim coberto por ramos verdes, um cavalo vigoroso, um bonito cão, um grupo de crianças, uma bela cabeça de mulher – tudo isso não nos pode ser roubado. Quem começou, pode ver coisas preciosas numa caminhada, sem perder um minuto de tempo. E essa contemplação absolutamente não cansa, mas fortifica e repousa, e não só aos olhos. Todas as coisas têm um lado expressivo e outros desinteressantes ou feios; basta querer ver. E, com a visão, vem a alegria, o amor, a poesia.”

Assim, ele nos convida, nessa pequena reunião de textos de várias épocas de sua vida, que consistem em crônicas, relatos de viagens, registros de diário e cartas (aliás, era um exímio missivista: sua correspondência, trocada com quem quer que fosse – jovens entusiastas de seus textos, escritores iniciantes e veteranos, parentes e amigos – a exercitar o olhar. Uma caminhada pelas montanhas e charnecas. Um dia à beira da janela de sua casa, descrevendo o movimento da praça central do vilarejo. Um dia defronte a um único quadro, durante uma visita a um museu. O trabalho árduo sobre um jardim bem cuidado, no início da primavera. A passagem da paisagem pela janela de um trem em movimento.

Nascido no vilarejo de Calw, em uma família de missionários pietistas que o preparavam para a vida dedicada à religião, Hesse, com uma sólida formação inicial que incluía o latim e o grego, por exemplo, abandona o cristianismo e a universidade, para se dedicar exclusivamente à escrita literária. Essa inadequação faz com passe por sessões de psicanálise, permeada com crises de depressão e tentativas de suicídio. Para sobreviver, trabalha como padeiro, operário e livreiro. Exercendo essa profissão, escreve seu primeiro romance, Peter Camenzind (1903), que faz sucesso.

Nesse meio tempo, também realiza viagens, pelo Império Austro-Húngaro, pela Itália e pela Suíça, para onde se muda em definitivo em 1912, e se naturaliza em 1923. Em 1911, realiza também uma viagem marcante para a Índia, a fim de encontrar a terra onde seus pais foram missionários, mas ali encontra o budismo e as religiões orientais. Essa experiência rendeu muitos frutos, entre os quais o romance Sidarta (1922), baseado em sua viagem em meio a passagens da vida de Buda. Esta viagem e a Primeira Guerra Mundial iriam marcar os temas de suas obras. Sua leitura do budismo, além de uma aproximação das teorias de Nietzsche, e da psicanálise de Carl Jung, vão influenciar a abordagem dos temas de seu tempo: o fim do Império Prussiano e a República de Weimar, períodos durante os quais a juventude de língua alemã vai se reconhecer em seus livros como se fossem o retrato panorâmico de uma crise de valores, bem descrita no livro O lobo da estepe (1927):

Acima, você pode conferir a leitura de um trecho em português do romance O lobo da estepe, no projeto Toda Poesia.

Hesse tornou-se muito lido entre seus pares, pois traduzia os sentidos e sentimentos do momento conturbado da história daquela região e da Europa. Apesar de seus personagens serem um alter ego bem alinhado com os seus próprios conflitos pessoais (emocionais, afetivos e conjugais), na forma de um homem de meia-idade em crise, sua literatura é apreciada, sobretudo, pelos jovens adolescentes.

Já durante a ascensão do Hitlerismo, ele se tornou um ardoroso crítico dos nazistas, o que fazia à distância, na Suíça. Mesmo sendo o medalhão da literatura de língua alemã à época, com seus livros entre os mais vendidos, essa abordagem transcendente e seu ativismo contra o regime totalitário lhe renderam antipatia interna e externa como um escritor popularesco. No entanto, isso o identificou como escritor de resistência, também incentivador da abertura da literatura contemporânea mundial para traduções em alemão logo depois da Segunda Guerra Mundial. O reconhecimento dessas ações ocorre quando foi laureado em 1946 tanto com o Prêmio Goethe como com o Nobel de Literatura. Nos anos que se seguem, ele deixa de ser um autor de referência.

Nos anos 1960 e 1970, Hesse foi resgatado por autores beatniks e hippies, com várias traduções em inglês nos EUA. Daí, para sua chegada em terras brasileiras, foi um pulo. Um dos seus romances mais importantes, O lobo da estepe, foi adaptado para o cinema, e influenciou canções e até nome de banda de rock.

Acima, o filme O lobo da estepe, filme de 1974, com direção de Fred Haines e estrelado por Max von Sidow.

Leitor contumaz de Goethe, seu estilo literário pode ser explicado por meio de um trecho retirado, de um de seus textos, sobre a observação das borboletas: “Todas as coisas visíveis expressam algo, toda a natureza é imagem, é linguagem e uma colorida escrita hieroglífica”. A literatura é novamente usada como meio de superação e cura para os males da alma e do tempo. Também é voltada à luta contra as ameaças à economia predatória, ao trabalho precarizado no contexto tecnológico, à ciência e ao gosto pelo saber; sobretudo, contra o autoritarismo.

Relendo o trecho pouco antes de publicar esse texto, percebo que parece ando falando de novo sobre as mesmas coisas. Mas certos assuntos não têm com se contornar, não é mesmo? Por isso, essa leitura veio muito a calhar para os tempos atuais.

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Comments: 1 reply added

  1. Ruy Flávio de Oliveira 30/04/2020 Responder

    Texto belo e oportuno, O conselho para observarmos as coisas pequenas, para buscarmos as pequenas alegrias, me lembra de uma passagem de outro escritor brilhante do século XX: Kurt Vonnegut. Em um dos discursos como paraninfo de formatura, o autor sugere aos formandos para que não deixassem de enxergar (e mesmo para que fizessem um esforço para perceber) a felicidade nas pequenas coisas. O exemplo era singelo: quando eles se vissem sentados à varanda em uma tarde quente de sábado com um copo de limonada na mão, não deixassem de perceber a beleza, a alegria, a felicidade do momento. Que ali, fizessem para si mesmos: "Puxa, isso bom, esse é um momento feliz", ou algo nessa linha.

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