Mortes das gentes são mais dignas de nota que nascimentos. Aparentemente. Aos pais dizemos “Parabéns!” e já imediatamente passamos a um questionário implacável, como roteiro preestabelecido e perguntas de objetivos bem definidos. “Nasceu?” “É menino ou menina?” “Foi quando e a que horas (para saber o signo, claro!)?” “E qual é a altura?” “E o peso?” “E, bem, nasceu com tudo em cima?” Desnecessário me estender ainda mais em cada um dos subentendidos dessas questiúnculas, quando sabemos que elas contêm em si o início desse vestibular que é a vida social envernizada, não é mesmo?
Já as questões que a morte gera são de outra ordem: elevam de alguma forma o indivíduo, para, além da trivialidade, exaltá-lo ou vituperá-lo. Assim, ao contrário dos nascimentos, quando vivemos ainda a potência de nossas vidas, são os fatos realizados pelos mortos que nos atraem. Assim os obituários – essa seção que ainda persiste na imprensa digital – torna-se uma maneira interessante, lícita e um tanto sinistra, de conhecer os fatos notórios de uma pessoa. Ou ainda, a simples menção da morte de um célebre escritor recentemente vivo, ao passar dessa para melhor, pode servir como desculpa para averiguar se sua obra é também potência ou se é de fato relevante.
Em 14 de julho desse ano, no dia da Queda da Bastilha na França, morre aos 66 anos Péter Esterházy, um prolífico escritor húngaro em sua língua, extensamente traduzido em outros países. Nascido em 1950, em um país em que o comunismo acabara de se instalar, era descendente direto da alta nobreza do Império Áustro-Húngaro, o que tornou sua existência peculiar. Com o título e os bens da família confiscados pelo regime que havia se instalado na Hungria em 1948, o que revela um dos temas frequentes em seus escritos: a fidalguia em decadência. Estreou como escritor em 1973. Formado em matemática pela Universidade de ELTE em 1974, atuou por quatro anos no Instituto de Informática do Ministério húngaro da Indústria. A partir de 1978, passou a se dedicar exclusivamente à literatura.
Foi considerado um dos mais importantes escritores expoentes do pós-modernismo na Europa, pois sua obra apresenta um forte experimentalismo, tanto no aspecto morfológico e sintático, bem como em relação aos gêneros textuais literários. Logo, sua escrita não é fácil de se compreender no original, tampouco é tranquilo o esforço de tradução de suas obras. Ele já esteve no Brasil. Convidado a uma mesa de debate entre escritores na Flip em 2009, sua apresentação e passagem pelo evento foi tida como divertida na época.
Há alguns anos, atentei-me a uma de suas obras na livraria, chamado Uma mulher (Trad. Paulo Schiller. São Paulo: Cosac Naify, 2010), mas sem naquele momento ter me chamado tanto a atenção a ponto de me fazer visitar a obra. Considerei que a morte desse escritor poderia ser uma desculpa perfeita para parar de protelar e me demorar nesse livro.
O escritor Péter Esterházy, em seu escritório. Fonte: http://bit.do/esterhazy. Acesso em: 08 ago. 2016.
E que grata surpresa! Dividido em 97 textos curtos, é um inventário de mulheres que, ao mesmo tempo podem ser uma única mulher. Não sabemos. Todas elas se relacionam com o narrador segundo uma visão dual, sempre evidente: ou o amam ou o odeiam. Pelo menos isso é o que essa voz entende dessas mulheres. No entanto, essa separação entre os atos de amor e ódio também não é clara. Podemos tomar o texto 22 como exemplo cristalizado disso, ou ainda da obra toda:
Há uma mulher. Sente por mim o que sinto por ela, me odeia, me ama. Quando ela me odeia eu a amo, quando ela me ama, eu a odeio. Não existe outra possibilidade. (p. 51)
Por que são noventa e sete os textos dedicados a essa mulher, a essas mulheres? Lembre-se de que estamos diante de um matemático. Podemos dizer que são, para o narrador, noventa e sete possibilidades de sobreviver à morte, descrita minuciosamente por meio das mulheres, seus afetos e corpos, pois são noventa e sete possibilidades de relação entre a(s) mulher(es) e o narrador. Em última instância, não há resposta evidente, a não ser recordar que também estamos diante de um escritor pós-moderno, em que a lógica do texto se rende frequentemente ao subjetivo e ao arbitrário. Trata-se de um texto enunciado em primeira pessoa, quando a separação entre relato e ficção não se aplica (sempre).
A relação que elas têm com seu próprio corpo e o do narrador revelam a expressão, um tanto narcísica, dessa voz sobre si mesma e sobre essas mulheres. São todos escravos do desejo imperativo. Não tanto ficamos sabendo dessas mulheres por si mesmas, mas muito mais sobre como seus afetos e corpos se imprimem no narrador.
No texto cinco, a mulher – rendida pelas investidas do narrador – é também alegoria para fatos históricos de seu país, com a alusão à rendição em Világos, quando o exército húngaro capitula na Revolução de 1848, frente às forças conjuntas da Rússia Imperial e da Áustria:
Há uma mulher. Ela me ama. Ela se debate com o passado, a saber, o individual e o coletivo, com o passado próprio e o do país. Ela não. Por exemplo, não consegue digerir a rendição em Világos. Quem sabe se Dembinski tivesse um pouquinho mais de talento… Ou por que ele não gostava de Kossuth-Görgey? O senhor sabe a bunda que eu tinha? Não, o senhor não sabe. Não, não pense num rabo igual ao de uma égua, num redemoinho barroco, não pense nessas, eu entendo, idealizações banais… O senhor só vê o que existe. Em 18 de fevereiro de 1853, János Libényi, aprendiz de alfaiate, cometeu um atentado malsucedido contra o imperador. O senhor vê apenas que ela se desprendeu, que ela está caindo, que a minha bunda está caindo.
Ela gosta de beijar (veja Kossuth-Görgey), deixa-se levar por uma alegria incontida, ri, gargalha, relincha – são diversas variedades de beijo. Que gostoso!, e ela fica brincando na minha boca, mais, vamos, mais um pouquinho, a língua endurece, quase bate no céu da boca, emite trinados lá dentro na escuridão, na minha escuridão. A Paganini dos beijos, digo, vulgar. Quieta! Estou trabalhando! Os beijos deslizam sobre ela, sobre o pescoço, sobre o rosto bronzeado, as bochechas, o nariz, as órbitas, eu a beijo nos olhos, nas têmporas, no alto da cabeça, as coxas se movimentam, apenas se mexem, se tocam e se separam, e nas costelas e nos ossos…
A rendição na planície de Majtény, ela geme. (p. 11)
Assim tratar do feminino também é pretexto para dissertar sobre a história húngara, sobre a política, sobre a relação com o comunismo, com o estrangeiro, com a própria matéria literária.
Vale um aviso aos incautos sobre a natureza dessa obra: o erotismo é matéria cara a essa e outras obras desse escritor, sempre vinculada à relação da mulher com o corpo (o dela, o do narrador). Encontramos tanto trechos em que a relação sexual e os corpos são tratados via escatologia (!), como também há excertos nos quais o sexo e o prazer se misturam atividades e aspectos variados, como a escrita, a comida, a vestimenta e os sentimentos.
Uma mulher (16)
Há uma mulher. Ela me odeia. Me expulsa o tempo todo. Me liquida. Me joga fora, feito um limão espremido. Conduz a coisa com muita inteligência, é coerente e usa argumentos bem fundamentados para terminar comigo. Porque está na hora de parar. Trabalhamos muito, eu também, ela também, de modo que na maioria das vezes, para esta conversa, para este ato, temos tempo somente na cama. Por assim dizer, eu me curvo sob o peso dos argumentos. (…) (p. 39)
No fim, essa relação entre desejo, amor, ódio e morte é uma fuga da morte e da inexorável decomposição e degenerescência dos corpos. Por isso, há um controle paranoico sobre o tempo vivido, o tempo da experiência, como também há um regime rígido e controlador sobre os corpos. Como um vampiro. No texto vinte e seis, isso é explicito:
Há uma mulher. Ela me ama, me ama muito. Às vezes me abandona. De tempos em tempos, me rejeita, vez ou outra, em certos dias, em determinados períodos, ocasionalmente, a toda hora, de quando em quando, esporadicamente, de vez em quando, aqui e ali. Desaparece. Desaparece como éter. Como Kossuth na neblina. Burro cinzento. Vampiro. Petöfi no campo de centeio. Perdida. Ela se reabsorve. Se reabsorve como uma operação de apêndice. Ela se volatiliza. Se volatiliza como um peido na minha cueca. Sem deixar rastro. Sai pelo mundo como o peru da mulher eslovaca. Some, desaparece. Engolida pela terra. Foge como o diabo da cruz, não, isso é exagero. Some de vista. Evapora como orvalho. Deixa um vazio. Nenhuma notícia. Neblina à frente, neblina atrás. Evapora. Fica para trás como o corvo de Noé. Seus pés alçam voo. Tateio seus rastros com uma laranja. (…) (p. 58)
No posfácio da edição brasileira, o tradutor Paulo Schiller comenta como Esterházy se preocupava com a fluência e com o ritmo do texto, do que com a tradução literal da língua magiar para o verbo de Camões. Isso explica muitas das soluções encontradas pela tradução. Além disso, essa percepção revela um escritor cioso de sua escrita em uma esfera distinta de preciosismos, mais afeita àquela ligada ao cuidado em dizer o que se pensa, de maneira que cada palavra – em forma e sentido – esteja em sua plenitude no texto. Schiller lembra um dos ensaios de Esterházy sobre o romance Mme. Bovary, romance esse que não seria seminal, se não houvesse a preocupação de Flaubert em dizer a pequena tragédia dessa mulher como se contasse a história de cada um de nós.
No Brasil, entretanto, somente duas de suas obras foram publicadas, ambas por uma quase recém-falecida editora brasileira – Veja você, leitor! –, pois a venda de seu acervo ainda é garantida pela internet. Uma situação dessas não fez jus à importância de um escritor dessa esfera ainda em vida, ainda mais agora, depois de seu falecimento.
Torço para que haja novas traduções por vir. Os leitores brasileiros merecem conhecê-lo.
Parabéns Gui! Texto muito bom. Os trechos da obra dá uma dimensão do escritor. Gostei ainda mais pela questão biográfica do escritor!
Caro Diego, obrigado! Sua opinião conta muito! Fica a dica para conhecer o autor. Forte abraço!
Parabéns Gui. Amei seu texto. Vc é dez!!! Sucesso!!!! Amo vc!!!!
Oi, tia Regina! Muito, muito obrigado pelo incentivo! Haverá mais publicações. Acompanhe! Forte abraço!
Parabéns meu irmão! Dá gosto de caminhar pela sua escrita.
Caro Dimas, é muito importante seu incentivo, ainda mais de ti a quem respeito muito. Valeu! Um forte abraço!