Comento aqui três fatos relacionados à literatura e à vida que, sendo tão importantes e recentes, merecem nossa nota de comentário.
O primeiro é o cancelamento da escolha do Prêmio Nobel de Literatura desse ano. Isso não se vê todo o dia, embora isso já tenha acontecido no passado da premiação. Para resumir o caso, o fotógrafo e dramaturgo francês Jean-Claude Arnault – casado com a poetisa, escritora e membro da Academia, a sueca Katarina Frostenson – é acusado formalmente por 18 mulheres de cometer agressão sexual. Como ele dirigia uma fundação que servia como braço cultural da Academia Sueca, com relevância na cena cultural de Estocolmo, e alguns dos casos de agressão relatados ocorreram nas dependências da própria Academia, houve uma polêmica votação para excluir Frostenson de participar futuramente da gestão da entidade; ou seja, ela foi isolada do contato com a entidade, pois sua nomeação é vitalícia, e os membros não podem ser expulsos. De qualquer forma, Frostenson também renunciou, junto com a secretária permanente do órgão, Sara Danius. A polêmica da votação não para por aí: em uma votação acirrada, cerca de metade dos acadêmicos se posicionaram contra o isolamento da colega e, em seguida, renunciaram às suas atividades na entidade. O rei da Suécia Carlos Gustavo 16 (e, naquele país, dirigente da entidade) decidiu intervir e sinalizou que realizará uma reformulação nos estatutos da entidade, para regulamentar as renúncias, as expulsões e a eleição para futuros membros. A Academia Sueca anunciou oficialmente que a concurso do prêmio de Literatura será adiado para 2019.
Somam-se a isso as polêmicas das nomeações mais recentes, que geraram uma imagem controversa e indesejável para a premiação, como o comportamento do cantor Bob Dylan. Nesse caso, na perspectiva da entidade, o prêmio foi esnobado por ele. Mas, se observarmos com calma a trajetória do cantor-poeta dos EUA, é inevitável atestar que rotulações – como um Prêmio Nobel – é justamente o que ele não quis e não quer na vida. Não bastasse esses coquetéis molotov na reputação da casa dos imortais suecos, também foram amplamente questionadas as nomeações de autores estrangeiros relativamente desconhecidos, ou ainda a não nomeação de outros, consensualmente aceitos pela crítica literária contemporânea como mais relevantes para receber a nomeação.
Um desses nomes lamentavelmente preteridos foi, até pouco tempo, o escritor norte-americano Phillip Roth, falecido no último dia 22 de maio de 2018. Destacamos esse fato, pois sua morte encerrou um ciclo da história e da literatura estadunidense da segunda metade do século XX, bem como impossibilitou que o escritor fosse ainda reconhecido em vida com o que era conhecido há pouco tempo como o prêmio maior da área da literatura. Filho de pais judeus imigrantes da Europa Oriental, nascido em 1933 na cidade de Newark (no estado de Nova Jersey), sua ficção e vazão criativa se voltaram para tratar dos grandes temas da condição humana – como o amor, o sexo, a velhice e a morte – a partir de contextos menores e bem típicos da vida contemporânea: as relações entre pais, mães e filhos; o ambiente de trabalho; a vida escolar e universitária; a emergência da problemática das questões étnico-raciais nos EUA. Assim, seus protagonistas (alguns dos quais lhe serviam de alter ego: predominantemente homens, brancos caucasianos, pertencentes à classe média, trabalhadores intelectuais). Iniciando sua carreira com a publicação da coletânea de contos Adeus, Columbus (1959), o reconhecimento vem somente com a publicação da novela O complexo de Portnoy (1969) e da famosa Trilogia Americana – composta pelos romances Pastoral Americana (1997), Casei com um comunista (1998) e A marca humana (2000).
Destaco aqui esse último romance, cujo enredo trata da queda de Coleman Silk, professor universitário acusado de racismo e de abuso sexual, cujo cerne envolve a alteração do sentido do campo semântico que ele utiliza em suas aulas e para se dirigir aos colegas, tipificadas no momento de seu julgamento público como agressivas e censuráveis. E o são, se considerar essa queda como uma “tomada de consciência” (sinto pelo clichê). Dessa inadequação ele extrai o tema para outro excelente romance, O animal agonizante (2001), em que o protagonista, o professor universitário sessentão David Kepesh, aproveita sua posição de estrela da instituição para seduzir alunas calouras, mas se vê seduzido por Consuela Castillo, a personificação da morte, ao mesmo tempo figura-síntese da evanescência e crueza de suas personagens femininas, simultânea e literalmente reveladas na carne da personagem. Por esse mesmo motivo, sua literatura é frequente e levianamente entendida como misógina, segundo uma leitura moderna. Pelo contrário, considero que ele revela o que há de mais contraditório e idiossincrático na vida contemporânea. Ambos os romances foram adaptados para o cinema, com uma qualidade considerável, com grandes atores – como Anthony Hopkins e Ben Kinsley – assumindo esses papéis respectivamente desses personagens singulares. Considerado por muitos o grande nome da ficção norte-americana dos últimos anos, ele anunciou sua aposentadoria em 2012, quando publicou seu último romance, Nêmesis.
Por fim, destaco o último, porém não menos importante, fato de caráter literário ocorrido nos últimos dias: a morte do escritor-jornalista Tom Wolfe (1930-2018), na semana passada. Incensado como um dos fundadores da tendência jornalística e literária chamada de Novo Jornalismo, com seu estilo histriônico, sarcástico e ferino, seus textos ficaram conhecidos por apresentar um embaralhamento de discursos e de gêneros, pincelando os jornais com elementos caros à narrativa curta (o conto e a novela, principalmente). Nesse sentido, Wolfe, juntamente com outros escritores-jornalistas de destaque – como Norman Mailer, Truman Capote, Gay Talese, John Hersey, entre outros – possibilitaram ao grande público-leitor dos jornais sair um pouco das estruturas engessadas do padrão editorial norte-americano e adensar sua perspectiva sobre os acontecimentos (tanto os de grande relevância histórica como os fatos do cotidiano). Ele escreveu o romance A fogueira das vaidades (1998), adaptado para o cinema em seguida, que trazia um conjunto pleno de seu etilo em funcionamento.
No Brasil, a produção jornalística e ficcional de Wolfe e dos demais adeptos do Novo Jornalismo floresceu e influenciou uma gama de grandes escritores-jornalistas brasileiros (como Joel Silveira, Nelson Rodrigues, Antonio Callado, José Hamilton Ribeiro, Rubem Braga, Lúcio Cardoso, para ficar em alguns nomes), que aclimataram as inovações dessa tendência ao contexto jornalístico brasileiro. Evidentemente que os grandes temas da condição humana ganham importância em face da construção da notícia de ordem mais factual: um casamento da filha de uma autônoma vira uma baita crítica social à aristocracia paulista, no ótimo conto-reportagem “Milésima segunda noite na Avenida Paulista” (2003), de Joel Silveira; a busca pela expedição Fawcett se torna uma quase-ficção, na ótima novela-reportagem O esqueleto na lagoa verde, de Callado; a tragédia familiar alçada à ficção em alta-voltagem, como no romance Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, e da peça Beijo no Asfalto (1960), de Nelson Rodrigues.
Se consideramos esses fatos, e se for possível aceitar uma análise comparada, acho que todos estão correlacionados por alguns denominadores comuns: um recrudescimento das liberdades individuais, que foi o cenário em que essa geração de escritores atuava e lutava para manter, colocada em xeque sob diversas motivações, com mérito ou não; a tomada de consciência dos dramas de nosso tempo, a partir da banalização da violência, acompanhada pela visibilidade que esse mesmo contexto passou a ter (a violência contra a mulher, contra a comunidade LGBTQ, contra a criança; a problemática do sexo nessa era decorrente desse cenário; os conflitos geracionais, étnicos, religiosos e sociais, tão caros a essa geração; evitar a guerra e a aniquilação global). Se consideramos o contexto atual, do Brasil e do mundo, parece que, com a morte dessas figuras, perdemos aos poucos e cada vez mais os membros silenciosos dessas lutas silenciosas: nossos princípios, nossa liberdade, nossa real segurança. Todos estão sob ameaça.
Considero também que poderíamos aprender um pouco com a posição humilde que se colocava Roth perante sua atuação: para ele a escrita era pugilato, uma luta com as palavras, de maneira semelhante a que Drummond tão bem sintetiza em seu “O Lutador” (Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã.). Roth, em uma de suas últimas entrevistas, parafraseia o boxeador Joe Louis: “Fiz o melhor que pude com o que eu tinha”. Que coisa, não?
Essa luta deve agora, penso eu, encontrar novos lutadores, novas luvas, nesse mesmo ringue – a vida. É hora de saraivar golpes.
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