Afinal, onde você mora: no mapa ou no território? Acha difícil essa resposta? Eu respondi tão espontaneamente que, só depois de algumas reflexões sobre minha própria resposta, fiquei assustada com tamanha espontaneidade. Seria essa reação um sinal de alienação?
É isso mesmo: moro em meu mapa. E, por que não seria assim? Ele é muito mais seguro do que o próprio território. Eu mesma tracejo cada linha com a espessura e cor que eu quero. Eu escolho o tipo de letra que vou usar. Eu defino a escala que desejo aplicar. E então? O que é mais confortável? A dura realidade do território ou a sensação de controle que a idealização do mapa nos dá?
Pra variar, foi a palestra de Viviane Mosé no Café Filosófico da TV Cultura (já mencionei esse vídeo mais de uma vez em meus textos) que me despertou para essas reflexões. Ela abordava algumas ideias de Nietzsche. O filósofo teria questionado a validade de nos abrigarmos nos idealismos para nos protegermos do realismo.
Devo alertar os meus amigos doutores em filosofia que este texto não tem a intenção de lançar discussões a respeito de Nietzsche. Até porque eu não tenho repertório que sustente tamanha proposição. A respeito desse grande pensador, eu o conheço por meio de Viviane Mosé e de Clóvis de Barros Filho. Portanto, coloco-me como uma livre pensadora (graças ao Confrariando, posso despir-me do rigor científico e lançar mão da liberdade para confrariar!)
Voltando às minhas reflexões, considere-se o seguinte: o território é o mundo em que nossos sentidos físicos se manifestam por meio das sensações. O mapa é o modelo de mundo que nós criamos em nossa mente. Esse tipo de perspectiva dualista surgiu há muito tempo, desde Sócrates e Platão. Uma das formas de compreendermos a vida é sob a perspectiva binária do “é ou não é”. Essa perspectiva nos leva a entender que o corpo se opõe à mente; o bem se opõe ao mal; o belo se opõe ao feio. Dentre os muitos sintomas de nossa forma dualista de ver o mundo, destaca-se a mania humana de classificar tudo: ou você é um materialista ou você é um mentalista; ou você é do bem ou é o do mal. Ou você mora no mapa ou mora no território. E, nessa toada, saímos por aí tentando nos relacionar de uma forma bipolar. Ou você é masculino ou feminino (veja, não me refiro ao gênero, mas ao papel social previamente determinado ao homem ou à mulher). Ou você é branco ou é preto. Ou você é de exatas ou de humanas. Ou você é contra ou é a favor.
Ao atribuirmos uma classificação bipolar ao outro, preconcebemos o tipo de relação que teremos (ou simplesmente definimos que não haverá relação). Ao mesmo tempo, quando não aceitamos ser classificados, podemos ser vistos como pessoas que simplesmente não se posicionam frente à vida. Que dureza, não? Ser ou não ser (rotulado)? Eis a questão…
Escolher um dos pólos pode nos trazer mais segurança. Só que, na verdade, eu transito incessantemente entre o território e meu mapa e isso causa-me um certo desconforto. Afinal, eu não posso ficar “no meio do caminho”, certo? Aprendi que precisamos nos definir na vida. Ou você é arquiteto ou é engenheiro! Ou é da área de biológicas ou é da área de humanas. Ou é casado ou é solteiro. Ou acredita em Deus ou é ateu. Estar no entremeio não é seguro.
Apesar desses ensinamentos do mundo dualista (alguns deles já ruindo, outros ainda persistindo), não temos como escolher uma das polaridades dentro de nós mesmos . Somos paradoxais, contraditórios, incoerentes. Somos o bem e o mal; o belo e o feio; a verdade e a hipocrisia.
Ao integrarmos nossos pólos interiores, retornamos à essência do que é neutro, àquilo que não é negativo nem positivo; àquilo que é inclassificável; àquilo que não se julga; àquilo que não se apalpa; àquilo que deixou de existir, pois abstraiu-se totalmente do que nos é alcançável.
Então, é por isso que a humanidade se agarra à dualidade: como daríamos conta da imensidão da vida, caso não a reduzíssemos a um código binário?
Se pudermos diferenciar a humanidade de qualquer outra espécie, seria por sua obsessão pelo controle do mundo que a cerca. E, você deve saber do que estou falando. Controlar fica mais fácil quando demarcamos aquilo que vamos controlar. E, ao polarizarmos, não corremos o risco de nos perder no continuum.
Estamos sempre querendo estar no controle. Até hoje, grande parte de nós adota o cientificismo para tal intento. Queremos controlar nosso corpo, nossa mente e dos outros também (aliás, talvez os dos outros em primeiro lugar).
Já que não temos controle sobre os pólos nascimento/morte, tentamos pelo menos controlar o que há entre eles. E, para isso, picotamos a vida em pequenas porções de continuum.
E, mesmo tentando ignorar o pólo incontrolável da morte, temos total consciência dele. Quando o horror dessa consciência bate, inventamos as mais incríveis rotas de fuga. A religião nos acalma com a promessa da vida eterna. A ciência nos consola com a ideia de que um dia, nem que seja para nossos descendentes, a humanidade descobrirá uma fórmula de perenidade. Só que, de uma forma ou de outra, o peso da consciência da morte nos persegue até o fatídico encontro.
Essa consciência nos faz gritar. O que traduz genuinamente nossos gritos humanos é a arte. A arte cria mecanismos para que a gente grite essa intensidade que é a consciência da própria vida – a vida como um intervalo entre o nascimento e a morte. Um breve intervalo que temos para nos manifestar, seja da forma que for, seja com as escolhas que nos forem possíveis, seja com as interpretações que adotarmos, seja com dor ou prazer. Com a sensação física ou com o sentimento que vem da alma. A arte está em tudo isso!
Ao final dessa minha louca viagem, concluo que não quero mais morar em meu mapa nem no território. Quero morar na arte. Lá, manifesto-me de corpo e alma (ou mente). Lá, brincam o belo e o feio. Lá, o bem e o mal são apenas um lindo jogo de luz e sombra.
E você? Onde quer morar?
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Foto by Marcos Lalli
Carlinha, agora sinto um "fio condutor" passando pelo seu texto de modo a fazer sentido a questão do território, mapa, os dualismos e o papel que você atribui - ou a "solução" que encontra na arte. Ainda dá um nó na cabeça, mas no bom sentido da palavra, já que nos tira da zona de conforto e nos faz refletir sobre nossa própria vida - e a incessante classificação muitas vezes maniqueísta que fazemos das coisas e pessoas, a necessidade de controle, e a consciência da incapacidade de controlar, quando nos deparamos com um fato indissociável da vida: a morte.