ATENÇÃO: o que segue é uma revisão detalhada e recheada de spoilers do filme Blade Runner 2049, bem como do filme Blade Runner, O Caçador de Androides, de 1982. Se você ainda não viu esses filmes, prossiga por sua conta e risco.
Não tenho como negar: morri de medo de a continuação de Blade Runner, o tal Blade Runner 2049 de Denis Villeneuve, ser uma grande porcaria. Com produção executiva do diretor do original de 1982, Ridley Scott, a perspectiva não era nada bacana. Scott recentemente se entregou à inglória tarefa de destruir o legado de um de seus principais filmes: Alien, o Oitavo passageiro, de 1979. Tudo o que o original da década de 70 tinha de fantástico, de assustador, de coerente, as continuações Prometheus e Alien: Covenant têm de ilógico, como se o programa espacial que levou aqueles astronautas ao espaço tivesse demandado que todos os escolhidos antes de embarcar passassem por uma cirurgia de amputação de cérebro. Uma pena.
Com essa perspectiva em mente, meu temor era enorme, uma vez que o Blade Runner original é um dos maiores clássicos da ficção científica de todos os tempos, e um dos meus filmes preferidos, entrando na minha exclusivíssima lista “Top-5”.
Que alívio. Blade Runner 2049 não só não desaponta como consegue algo que parecia impossível: está à altura do original. Denis Villeneuve, o diretor, conseguir recriar a atmosfera sombria e impressionante do primeiro filme, expandindo-a e nela construindo imagens ainda mais poderosas nas duas horas e 43 minutos desse novo filme. Já aviso: é longo e recheado de cenas feitas unicamente para serem contempladas, sem ação e sem diálogo. A remoção dessas cenas seria suficiente para trazer o filme para menos de 2 horas, o que destruiria completamente a obra. O tempo e as cenas grandiosas são fundamentais para a imersão a que o filme nos convida.
A história é centrada na figura do Blade Runner de nome KD6-3.7. “K”, como é chamado ao longo do filme é um caçador de replicantes autorizado pela polícia. Ocupa a mesma posição de Deckard, do filme original, com uma diferença bem óbvia: enquanto Deckard não sabia que era um replicante, só descobrindo isso na cena final do filme original, K tem consciência plena de sua natureza, não ligando a mínima para a hostilidade aberta que sofre de seus colegas. O ator Ryan Gosling foi a primeira e única escolha do diretor Denis Villeneuve para o papel de K, justamente porque tem essa característica de “distância” em sua atuação, algo levemente autista, levemente automático, que o aproxima das características robóticas, artificiais, que o papel exige.
Já nas cenas iniciais encontramos o primeiro easter egg: o encontro com o replicante Sapper Morton (e sua subsequente “aposentadoria”) foi uma cena criada para o filme original, de 1982, que o então diretor Ridley Scott descartou, optando por introduzir Deckard ao público de uma maneira mais prosaica: tomando chuva em uma rua de Los Angeles enquanto esperava por um prato de macarrão.
A cena inicial é um tanto violenta, e aprendemos que após cada encontro que possa ser traumático para K, ele deverá passar por um teste de averiguação. É a versão renovada do teste de Voight-Kampff, do primeiro filme, mas com objetivos diferentes. O teste é baseado em afirmações de um testador oculto e nas respostas de K. Aqui, outro fato peculiar: o que parecem ser frases sem sentido são, na verdade uma variação de um trecho do poema central do romance Fogo Pálido, de Vladimir Nabokov. É significativo que os três primeiros cantos (dos quatro que compõem o poema) encontrarem paralelos profundos na saga que K percorrerá ao longo do filme. Incidentalmente, é o livro que Joi, a namorada virtual de K pede para que eles leiam, algumas cenas mais tarde.
Após matar Morton, enquanto ainda está na propriedade do replicante, K encontra uma pequena flor depositada cuidadosamente no terreno infértil ao pé de uma árvore morta. Desconfiando da estranha homenagem, K demanda que seu drone analise a área, e o que encontra nas imagens é uma enorme caixa enterrada alguns metros abaixo da superfície.
Dentro da caixa, ossos, e uma análise forense mostra que se tratava de uma mulher, com indícios cirúrgicos de que ela havia passado por um parto. Os ossos enterrados há 30 anos revelam um segredo potencialmente explosivo: quem deu à luz era uma replicante.
Os replicantes do primeiro filme foram criados para ajudar a humanidade a colonizar planetas hostis. Eram meros objetos, sem direitos, relegados a uma vida de trabalho escravo e perigoso nas colônias espaciais. Ainda assim, eram no mínimo tão inteligentes quanto os cientistas genéticos que os criaram, e muito mais fortes fisicamente. Tratados como meros escravos, não demoraram a se rebelar contra seus criadores — nós, seres humanos — e muitos conquistavam sua liberdade por meio de sangrentas revoltas no espaço. A única limitação era o tempo de vida: os replicantes viviam apenas 4 anos. Em Blade Runner 2049, que se passa 30 anos no futuro do filme original, os replicantes são novamente legalizados: foram recriados de forma a serem leais aos seres humanos, e com tempo de vida indefinido. O que os diferencia, o que ainda os define como seres supostamente inferiores é a incapacidade de reprodução. Para virem a existir, dependem dos cientistas genéticos, sendo criados em laboratório. Uma replicante com capacidade de dar à luz é, em si, uma ameaça ao status quo: os replicantes deixam de ser mercadorias artificiais e passam a ser indistinguíveis dos seres humanos. Deixam de ser objetos, propriedades, escravos, e é obrigatório que sejam encarados como gente, com direitos como qualquer um de nós. Aqui é importante observar que essa temática de “o que nos faz humanos” tem sido explorada em outros filme e séries. Em especial Battlestar Galactica e Westworld trilham este mesmo caminho: a busca pela resposta à questão fundamental “o que é ser humano?”.
A tarefa de K passa a ser outra a partir desse momento: encontrar e destruir as evidências do nascimento, inclusive o filho desconhecido, se ainda estiver vivo. “Isto quebra tudo” diz a tenente Joshi, representada pela belíssima atriz Robin Wright. Nas mãos de K está o equilíbrio da civilização como se encontra no ano de 2049. Para complicar ainda mais as coisas, K descobre que existem informações mais que contraditórias sobre esta criança: os registros mostram que são duas, uma menina e um menino, que de quebra partilham exatamente o mesmo DNA (o que é uma impossibilidade genética). A menina teria morrido, e o menino continua desaparecido.
Se o primeiro filme gerou uma discussão de décadas sobre se Deckard é ou não um replicante, Blade Runner 2049 gera outra questão, apesar de esta durar apenas até um pouco antes do final do filme: K descobre uma data próxima à raiz da árvore morta da propriedade de Sapper Morton que é a mesma de uma de suas memórias: está gravada no pé de um cavalo de madeira que ele se lembra de ter escondido no orfanato em que cresceu. A memória é supostamente artificial, criada e implantada nos replicantes para lhes dar estabilidade emocional, mas a coincidência é grande demais para ser ignorada. K passa a desconfiar que ele mesmo é a criança que procura.
Aqui outra característica marcante do filme: a trilha sonora de Hans Zimmer, que complementa as imagens grandiosas e cria momentos sonoros de “queda da ficha” que são um dos poucos elementos destoantes do filme, pois são exageradamente intensas, como se o diretor estivesse cutucando seu ombro e perguntando “Entendeu? Entendeu? Entendeu?”. Ainda assim, há uma harmonia perfeita entre os sons e as imagens, criando a atmosfera necessária à condução da história, e nos transportando para dentro do filme. Vangelis foi genial na trilha sonora do primeiro filme, mas não fez falta nesse.
De qualquer forma, a possibilidade impensável de K ser a criança perdida remove o androide de sua zona de conforto e o lança em um pesadelo potencial de consequências imprevisíveis. Temos, então, mais uma brincadeira de Hampton Fancher e Michael Green, os roteiristas do filme: Joi, a namorada virtual de K (um programa autônomo capaz de criar uma holografia de uma mulher, no caso representada pela atriz cubana Ana de Armas) sugere que se ele é humano, deveria ter um nome para substituir seu código pessoal: ao invés de KD6-3.7 ele poderia adotar o nome de “Joe”. Joe é o apelido inglês para o nome “Joseph”, e se unimos esse nome com o apelido “K”, não há como dissociar o resultado do personagem Joseph K. da obra O Processo, de Franz Kafka, em que um funcionário público é lançado em um pesadelo, sendo acusado de um crime e judicialmente processado sem saber que crime é esse. Ainda nessa questão de paralelos com outras histórias, é interessante observar que toda vez que o programa de Joi é iniciado, ouvimos os acordes iniciais de Pedro e o Lobo, a obra musical infantil de Sergey Prokofiev em que cada personagem é representado por um instrumento e por uma melodia. Esta obra de Prokifiev é, de fato, uma excelente analogia para Blade Runner 2049, em que os personagens principais são representados por diversas formas de tecnologia.
O fato é que K passa a questionar sua própria existência, seu propósito, seu papel no conflito entre humanos e replicantes. Aliás, em um contexto em que replicantes se reproduzem, esta distinção tem algum significado?
Para tentar descobrir se as memórias sobre o brinquedo, a data e o orfanato são reais, K desvia de seu caminho e visita a Dra. Ana Stelline, a criadora de memórias para os replicantes, reclusa em função de um defeito genético que exige seu isolamento. A cientista cria memórias e as vende para a empresa de Wallace, e as cenas em que aparece são diáfanas, como se ocorressem em uma dimensão mais bela, mais leve, mais etérea. Os olhos formados pelas folhas das árvores contra o céu da simulação em que a encontramos são o símbolo perfeito para um criador observando seu paraíso. Ao analisar a memória de K ela é taxativa: esta memória é real, foi vivida, não criada artificialmente. O resultado é visível nas ações de K: ele se transtorna e se enfurece, uma vez que a implicação lhe é clara como os dias não são em seu universo sombrio.
O foco da busca de K passa a ser encontrar a criança, mesmo com todos os indícios apontando para ser ele próprio essa criança. Para tanto, ele é levado a buscar pelo pai (seu pai?). Ocorre que este pai é o mesmo Deckard, de 30 anos antes, com Rachel, a replicante fugitiva tendo sido a mãe. Aqui há um problema potencial com o enredo do filme, magistralmente resolvido pelos roteiristas. Se Deckard era mesmo um replicante e estes tinham apenas 4 anos de vida, como pode estar vivo nos dias de hoje, velho, como aparece no filme? Quem responde esta questão (mas não por enquanto) é outro personagem brutalmente marcante: Wallace, o gênio bilionário, interpretado por Jared Leto. Aqui é fundamental observar que o personagem foi escrito especificamente para ser interpretado por David Bowie, que infelizmente faleceu antes das gravações. Wallace, o industrial cego é o responsável pela nova geração de replicantes, e busca incessantemente por possibilitar-lhes a reprodução, uma vez que apenas por processos naturais pode criar a força de trabalho escravo de que necessita para colonizar mais planetas, estendendo, assim, seu poder. Wallace, apesar de cego está longe de ser inválido. A seu serviço tem o melhor que o dinheiro pode comprar em termos de tecnologia, e um exército de replicantes a seu soldo. Capitaneando este time está Luv, interpretada por Sylvia Hoecks, que a exemplo de Rutger Hauer no primeiro filme, é holandesa. É no mínimo uma coincidência interessante que os dois principais replicantes antagonistas de ambos os filmes sejam atores dos Países Baixos.
Aqui, cabe um aparte: os nomes e as personagens de Joi (felicidade), a namorada de K, e Luv (amor), sua principal oponente, comportam inúmeras interpretações psicanalíticas. O fato de Luv ser a destruidora final de Joi, quando ambas se encontram, não deixa de ser triste e poeticamente significativo.
Enquanto K procura por Deckard, é observado de perto e de longe por Luv, apesar de ambos terem motivos bem diferentes: K tem ordens de destruir os vestígios do nascimento natural de um replicante, e Luv quer dar ao seu mestre o poder desta reprodução. Na cena mais violenta do filme, Wallace exibe toda sua ira. Após testemunharmos o “nascimento” de uma replicante adulta, por vias de um imenso canal vaginal transparente e patentemente artificial, vemos Wallace analisar a recém-nata por meio de seus drones sensores e de um chip acoplado a seu cérebro. Identificando mais uma falha em seus esforços por criar uma replicante capaz de se reproduzir, o magnata não hesita em rasgar-lhe o ventre, de um lado a outro, com um bisturi. Algumas críticas a este novo filme vêm de representantes do movimento feminista. De fato, Joi é subserviente, quase que uma esposa da década de 50; de fato a tenente Joshi é inescrupulosa, usando K como uma ferramenta descartável e desumana; de fato o papel de Rachel não foi além da reprodução, tendo morrido no parto; de fato, Luv é uma máquina assassina e subserviente ao seu mestre, interessada apenas em afirmar-se como o melhor cão de guarda da matilha. De fato: as mulheres em Blade Runner 2049 são muito aquém do que o gênero demanda. Mas esse não é o ponto do filme, e as interpretações acima são um recorte entre vários possíveis. Rachel foi a primeira replicante efetivamente humana; Joi raciocina, sente, exibe coragem, vive, apesar de ser um programa de computador; Joshi é a chefe de polícia, a maior autoridade que vemos no filme; Luv é a representação máxima de vigor, do poder físico e do empoderamento. Faz tanto sentido analisar Blade Runner 2049 sob o ponto de vista do feminismo, quanto faria analisar 2001, Uma Odisseia no Espaço sob o ponto de vista do movimento sindicalista, afirmando que os trabalhadores que implementaram toda aquela tecnologia não são representados no filme.
Noves fora, as fichas na busca da almejada reprodução dos replicantes são depositadas por Wallace em Luv e em sua monitoração dos esforços de K.
A busca pela criança e por Deckard não é simples para K. Esta busca o leva a explorar a gigantesca favela urbana de “San Angeles”, formada ao sul por San Diego e mais ao norte por Los Angeles. Somos levados a sobrevoar o triste universo de Blade Runner, dessa vez à luz do dia: uma névoa densa e amarela envolve todos os ambientes, e a miséria dos barracos se espalha pelo horizonte como uma doença de pele, salpicada aqui e ali por prédios tristemente majestosos em meio ao desespero dos que só podem admirá-los de longe. Ao sul, K chega a um depósito de lixo do tamanho de uma metrópole, e lá, no orfanato de suas memórias, encontra o pequeno cavalo de madeira com a data esculpida na árvore morta. A memória é de fato, real.
Mas não é lá que K encontra Deckard.
Para encontrar o velho Blade Runner, K deve se deslocar às ruínas de Las Vegas, e aqui somos apresentados a mais impactos visuais criados pelo genial Roger Deakins. Aliás, se este diretor de fotografia não ganhar o Oscar pela obra-prima visual que criou em Blade Runner 2049, a Academia toda merece um tapa na orelha. As ruínas de Las Vegas lembram os delírios visuais de Stanley Kubrick. Gigantescas estátuas femininas em posições sensuais lembram a Leiteria Korova, de Laranja Mecânica, se esta tivesse sido um estabelecimento para gigantes libidinosos e viciados em jogos de azar. Outro cineasta que brincou com imagens semelhantes foi Steven Spielberg, em Inteligência Artificial, dando vida a mais imagens e sonhos de Stanley Kubrick, que morreu antes de ver concretizado seu filme. Inteligência Artificial, aliás, é outro filme que lida com a questão de o que é ser humano, em nada dessemelhante a Blade Runner 2049. Um ponto peculiar é que em meio ao deserto estéril e enevoado que cerca as ruínas de Las Vegas, encontramos um dos mais universais símbolos de fertilidade que conhecemos: abelhas. Hoje vivemos um problema sério com o colapso das colmeias, cuja causa ainda é desconhecida. Encontrar abelhas no ambiente hostil, poluído e estéril como o deserto de Las Vegas adiciona ao surrealismo da cena com mais eficiência que se fossem as girafas em chamas de Dalí. Uma interpretação interessante para sua presença é marcar subliminarmente a presença de fertilidade — no caso, de Deckard — a ser encontrada à frente.
Em um cassino abandonado K encontra Deckard, em meio a um show em que um holograma de Elvis canta “Suspicious Minds”, bem a propósito do encontro do velho e do jovem replicante. Muito sutilmente, é o momento menos sério e introspectivo do filme. Ambos obviamente se suspeitam, e a renúncia de K à violência contra Deckard lhe rende vários socos na cara. Quando Deckard se cansa de bater, sugere que ambos dividam uma garrafa de whisky. Incidentalmente, durante a filmagem dessa cena, Harrison Ford de fato acertou um soco no rosto de Ryan Gosling e, ato contínuo, sugeriu que ambos dividissem uma garrafa de whisky, como forma de se desculpar.
O encontro é interrompido por Luv com alguns replicantes, que deixam K agonizando e raptam Deckard. Levado à presença de Wallace, Deckard vê revelado seu propósito de vida: diferentemente do que nos foi apresentado no filme original, Deckard não foi criado com o propósito de caçar androides renegados, mas sim com o objetivo explícito de conhecer e se apaixonar por Rachel. O encontro dos dois, de fato, havia sido providenciado por Tyrell, e a caçada aos quatro replicantes renegados foi apenas um desvio de percurso para Deckard. Como Tyrell foi morto por Roy Batty, Deckard e Rachel puderam fugir, tirando o almejado processo de reprodução das mãos de qualquer um que o pudesse controlar para propósitos próprios.
Rachel faz uma breve aparição, belíssima como na primeira cena em que aparece no filme original. Com um misto de atuação real e computação gráfica, Villeneuve consegue nos transportar para 35 anos no passado (30 no universo do filme): Rachel encontra-se maravilhosamente jovem como no momento inicial que a vimos. Obviamente que se trata de uma “tentação” de Wallace, não surtindo o efeito desejado, termina em violência fatal contra a replicante. Wallace decide recorrer à tortura — a ser perpetrada em uma colônia fora da Terra — para obter informações sobre onde se encontra a criança.
K é recolhido por um grupo de replicantes renegados que, somos informados, o vinha acompanhando de perto. Eles são os protetores do segredo da reprodução, sabendo que a criança é a chave para a revolução que irá libertar todos os replicantes. Freysa, a líder do grupo, conta a K que a criança é, na verdade, uma menina, e se compadece quando percebe que ele acreditava ser ele mesmo a criança. Ao final de O Processo, de Kafka, vemos Joseph K. derrotado, concluindo que estava sendo executado “como um cão”, toda sua saga, seu sofrimento tendo sido fúteis, vãos. Naquele momento, diante de Freysa, a mesma ficha caía para K: de fato ele era apenas o chamariz, a distração para evitar que quem viesse procurar encontrasse a verdadeira criança. Ele se compreende apenas uma peça do quebra-cabeças que, apesar de ter sua importância, é apenas um coadjuvante. Ainda assim, tem um papel a desempenhar: a proteção ao segredo, à criança, é o dever moral maior de todo replicante.
No caminho até a nave que levará Deckard para fora do planeta, o comboio liderado por Luv é atacado por K, e ambos terminam às margens de uma praia artificial que percebemos ser uma gigantesca parede de contenção contra o avanço do mar. Mais uma fabulosa construção visual, desta vez com a fúria de uma tempestade marítima emprestando mais energia à cena, já carregada até onde é possível. É ali que K e Luv terão seu embate final, do qual o Blade Runner sairá finalmente vitorioso.
O filme termina em uma sequência singela, triste e feliz ao mesmo tempo. K entende, finalmente que, ao levar sua memória para a análise da Dra. Ana Stelline, na verdade estava apresentando à criadora de memórias um momento que ela própria havia vivido: ela é a criança perdida, a replicante filha natural de Deckard e Rachel. Ela havia escondido o cavalo de brinquedo. Enquanto Deckard entra para ver a filha, acompanhamos K em seus momentos finais. O momento “lágrimas na chuva”, de Roy Batty (em um monólogo, é bom lembrar, que foi improvisado pelo próprio Rutger Hauer, ali, durante a filmagem), é espelhado nos momentos finais de K, com a neve substituindo a chuva. K não tem palavras finais, e apenas se deita sobre os degraus da escada, frisando ainda mais o fim sofrido de uma vida sofrida e de uma odisseia mais sofrida ainda. O frio é quase perceptível pela plateia e intensifica mais ainda a solidão de K. Se no filme original Roy Batty salvou Deckard porque seu amor à vida era maior que qualquer desejo de revolta ou vingança, K salvou Deckard e, em última instância, Ana, por entender a importância da vida desses dois replicantes para todo o seu “povo”. Morre em paz, tendo cumprido seu papel. Em sua morte se dissocia de Joseph K., o personagem de Kafka, pois nada mais significativo e profundo do que seu sacrifício.
Enquanto isso, vemos que a necessidade de isolamento de Ana era mais um engodo: quando Deckard finalmente encontra a filha, ela está aproveitando a queda da neve por uma abertura no telhado, mostrando-nos que seu suposto “defeito genético”não existe. A neve fria que simbolizou o fim para K, aqui é branca, leve e bela, simbolizando um novo começo para todos os replicantes.
No fim das contas, Blade Runner 2049 não é um filme perfeito, mas se aproxima disso como poucos, e consegue realizar a visão do diretor à perfeição. É uma obra que deve resistir ao tempo como seu antecessor, apesar de — também como seu antecessor — estar em dúvida a capacidade de o filme ser um sucesso comercial. O original, em que pese genial, se estrumbicou nas bilheterias, e este novo, mesmo tendo sido o maior faturamento do fim de semana de lançamento, ficou bem aquém das expectativas de arrecadação. É um filme que exige a presença, exige a mente, exige a alma do expectador. Te convida a enxergar o futuro distópico de 2049 pelos olhos, pelo cérebro e pelo coração de seres que questionamos se são humanos, mas que nos espelham a cada ação. É muito pedir para que o expectador se entregue a esta experiência? Talvez seja (ainda que eu não pense assim).
Quem gostou do primeiro e se der essa chance, não vai se arrepender, aposto.
Em primeiro lugar, gostaria de parabenizá-lo pelo texto. Resolveu algumas perguntas que o filme tinha deixado. Inegavelmente, essa nova versão é uma peça para ficar na história, embora sofra de alguns males. Parece que esses males são recorrentes. Blade Runner 2049 de longe tem tratamento áudio-visual monumentais -no topo de minha escala e olha que tenho uma métrica muito exigente. São de uma densidade e extensão física grandiosas, que ficarão gravados em minha memória por um bom tempo. Entretanto, padece de uma falta roteiro bem amarrado, um roteiro com pontuação adequada, que permita ao expectador deixar a sala de cinema sentindo completo. Essa é o mal da qual muitos filmes atuais padecem: decidir-se entre a imagem ou roteiro. Blade Runner 2049 cai nessa armadilha. Entretanto, honestamente, esse roteiro não fez falta – eu não estava esperando ver um filme do Tarkovski – e falo sem medo, que saí da sala de cinema de queixo caído, extático. Não creio ser válida qualquer comparação com o original. Eram outros tempos, outras realidades e recursos muito mais limitados que exigiam soluções diferentes. Blade Runner 2049, é um filme do nosso tempo, e preencheu completamente o que se espera ver em um filme sobre um futuro distópico. (para qual nos encaminhamos?) PS1- Tive a sorte ou o azar de assistir versão 3D, apesar de avançar bastante, com recursos disponíveis, ainda não conseguiram resolver o problema da relação profundidade campo das lentes e a percepção stereoscópica. PS2- Teria preferido que usassem um holograma do Bowie, a ter que aturar a cara do Jared Leto.
Muito obrigado pelo carinho e pelas palavras, Magirus. Realmente é um filme visualmente maravilhoso,e que mexe com questões psicológicas e filosóficas de grande monta. Puxa, é verdade: o Bowie teria dado outra dimensão ao papel do Wallace. Bom fim de semana!
Esqueci de mencionar algo importante e valioso: não tem a narrativa em primeira pessoa do protagonista. Isso fez toda a diferença. Valeu e bom final de semana.
Então, Magirus, mas a versão original do filme, aquela que o Ridley Scott queria lançar (e que vários anos depois lançou como versão do diretor) não tinha a narração, e tinha uma cena adicional: do Deckard sonhando com um unicórnio, que unida à cena de ele encontrando o unicórnio no fim do filme deixa claro o que o Ridley Scott afirmou com todas as letras: o Deckard é um replicante. Bom fim de semana!
Oi Ruy. Boa crítica e considerações, mas eu gostaria de saber qual filme vc chamaria de perfeito. Abs.
Oi Jaylei, este é bem próximo, viu pelo menos para mim). Tirando o "entendeu? Entendeu? Entendeu?" musical dos momentos de "caiu a ficha" e a repetição de cenas cruciais para REALMENTE garantir que todo mundo estava entendendo (desnecessárias, a meu ver) é um filme perfeito. O irmão mais velho dele, o Blade Runner de 1982 (Final Cut, lançado em 2007) é perfeito, irretocável, a meu ver. Mas esse chega bem perto. Talvez, como diz meu amigo Cleido, o que falte para ele ser perfeito é só o tempo. Alguns meses ou anos, para que a gente (eu, em especial) me acostume com o que agora chamo de "pequenas imperfeições". Até porque essas pequenas imperfeições são absolutamente irrelevantes diante da grandiosidade que é esse filme. Você, pelo visto, gostou muito, né? Que bom: bem-vindo ao time. Um excelente fim de semana procê.
kkkkkk Não Ruy, nem ia ver e só vou ver pela tua crítica. E só perguntei porque a lendo fiquei pensando com o filme pode ser tão bom e o Ruy ainda ter a cara de pau de criticar coisinhas que ele "acha" "imperfeitas"? Abs.
Adorei o texto,me fez entender melhor o filme!Obrigada!
Puxa, Cristina, eu que agradeço pela consideração! Achei o filme maravilhoso, cheio de nuances e detalhes que precisam ser apreciados. O texto foi um jeito de me ajudar a entender também, aliás. Muito obrigado pelo incentivo!
Pingback:A velharia, o bom e a porcaria | Confrariando
[…] falei bastante sobre Blade Runner 2049 em minha resenha, e nós do Confrariando já falamos mais ainda em prosa escrita e em prosa falada, não cabendo, […]
Parabéns Ruy, excelente crítica. Só assisti agora o filme por isso estou escrevendo. Após lê-la percebo que tenho que rever o filme por conta de alguns detalhes. Brilhante sua comparação com outras obras e personagens.....
Puxa, Sidney, muito obrigado! Olha que coincidência: esse fim de semana revi o filme, depois de quase 3 meses. Continua genial, penso, e cada vez mais, até. Até percebi outras coisas que não tinha visto das primeiras vezes, quando fiz essa resenha. Espero que demorem mais 35 anos para fazer o próximo, e quem sabe assim fica bom como esse e como o primeiro.
Pingback:Jogador número 1 – Confrariando
[…] “melhora” o livro, penso eu, para aqueles espectadores que acharam Blade Runner 2049 (que já resenheiaqui no Confrariando) um filme lento, longo, com pouca ação. Jogador número 1, o filme, é […]
Eu sinto o mesmo, achei que seria uma história muito ruim, nada a ver com o original, mas foi exatamente o oposto. A história estava em linha com Blade Runner. Quando vi o Blade runner 2049 trailer , soube que seria uma excelente sequência do filme original de Ridley Scott. Adorei está história, por que além das cenas cheias de drama e efeitos especiais, realmente teve um roteiro decente, elemento que nem todos os filmes deste gênero tem. O filme tem uma direção incrível, narrado de uma forma bem humorada e divertida.