O canal Discovery em 2017 lançou Manhunt: Unabomber, minissérie baseada em fatos reais que descortina um dos eventos mais singulares de nossa história recente: um estudioso que virou terrorista, e que se tornou ativista (ou é entendido como tal, por alguns). Na mesma época em que foi lançado a série Mindhunter (que, assim como Manhunt, também está disponível no Netflix, e sobre a qual já comentamos aqui no site), o enredo retrata as circunstâncias durante a procura, a prisão e o julgamento de uma das figuras mais controversas da história recente dos EUA.
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Em 1995, Ted Kaczynski, mais conhecido como Unabomber, foi preso pelo FBI. Porém, antes disso, sua identidade é toda recheada de contradições, de lugares sem saída, para ele próprio e para os que foram envolvidos por suas ações. Nascido em 1942, na cidade de Chicago, Theodore Kaczynski era um menino prodígio, que foi incentivado pelos pais a adiantar algumas séries escolares, devido à sua habilidade com a matemática. Ao entrar na Universidade de Harvard, participou durante três anos de maneira voluntária nos experimentos psicológicos relacionados ao MK-Ultra, o projeto clandestino da CIA criado para desenvolver técnicas de interrogatório e tortura por meio de manipulação da mente e de uso de drogas alucinógenas, em resposta a programas semelhantes desenvolvidos pelos soviéticos durante a Guerra Fria. Essa experiência acabou por afetar irreversivelmente a psique do estudante.
Apesar disso, era um aluno brilhante na época, tendo-se formado e, logo depois, concluído seu doutorado pela Universidade de Michigan em 1962. Em 1967, tornou-se professor da Universidade da Califórnia, mas dois anos depois, abandonou a carreira docente e de pesquisador, isolando-se do mundo em uma cabana construída por ele e pelo irmão em uma propriedade em Lincoln, no estado de Montana. Vivia de uma maneira autossuficiente, à maneira como propunham alguns naturalistas e primitivistas célebres como Thoreau e Tolstoi, por meio da caça e do plantio de sua horta, sem eletricidade ou contato com meios de comunicação. Durante esse tempo, manteve um contato pontual com o irmão por meio de cartas até que este se casou.
Em 1978, decidiu se isolar por completo. Foi nesse mesmo ano quando bombas começaram a chegar pelos correios, dirigidas a pessoas ligadas a universidades (principalmente estudiosos e professores eminentes ligados à área do desenvolvimento de tecnologias da informação, da genética, da robótica, entre outros) e a companhias aéreas. Ao todo, três pessoas perderam suas vidas, e vinte e nove pessoas ficaram feridas nas explosões de suas bombas, enviadas ao longo dos anos. Aviões foram quase derrubados em pleno voo, o que teria aumentado essa lista. Desses alvos surgiu seu apelido, a partir do acrônimo UNABOMB (do inglês UNiversity and Airline BOMBing), criado pelo FBI para designar o caso.
A série retrata o período da chegada do agente especial do FBI James Fitzgerald (vivido na série por Sam Worthington) à força-tarefa que o órgão de investigações criou especialmente para acompanhar e solucionar os atentados. Esse evento seria a virada na sucessão extensa de fracassos que a equipe acumulava. Mas a mudança de perspectiva não foi tranquila. Especializado em traçar perfis psicológicos de criminosos e vítimas, Fitzgerald chega às investigações desconstruindo as imagens estereotipadas que haviam sido traçadas por seus antecessores e superiores no caso. Os episódios se propõem a contar os obstáculos enfrentados pelo agente dentro da própria organização do bureau de investigação. É importante ressaltar que, como estamos tratando de personagens verídicos, o próprio Fitzgerald participa como produtor da minissérie. Segundo ele, seu personagem representa a reunião de alguns perfis de investigadores envolvidos tanto no caso Unabomber como em outros casos semelhantes.
O mais interessante da série é o uso da linguística forense, um ramo da linguística que foi criado pelo próprio Fitzgerald para analisar o famoso manifesto Unabomber, uma declaração de princípios escrita por Kaczynski (interpretado pelo ótimo Paul Bettany na minissérie). Em síntese, Ted defende nesse texto que as novas tecnologias, da maneira como evoluíram durante o século XX, poderiam derivar no desenvolvimento da inteligência artificial e na ameaça cada vez mais crescente de sua influência no cotidiano de pessoas, lugares, governos e continentes. Interpretado por muitos ativistas anarquistas e ambientalistas como um documento relevante sob o aspecto da argumentação que o tema suscita, esses mesmos leitores expõem sua forte reserva aos métodos praticados pelo matemático, para chamar atenção à sua causa. Dada à qualidade do texto, não é à toa que a figura de Kaczynski continua até os dias de hoje bastante controversa, considerado por uns um monstro e, por outros, um ativista extremado mal compreendido.
Existe um forte paralelo do matemático com outra figura bastante controversa, tanto nas ideias como na trajetória de vida: Osama Bin Laden, que apresentava um perfil semelhante ao de Ted Kaczynski, dadas as circunstâncias. O príncipe saudita também era um prodígio, que sucumbiu à dependência química, recuperando-se pela via o engajamento religioso na jihad dos mujahedins afegãos. Treinado pela CIA, voltou-se contra o governo americano anos depois, ao criar a Al-Qaeda e planejar os atentados contra as Torres Gêmeas em Nova York, no 11 de setembro de 2001. Interessante lembrar também o caso de Timothy McVeigh, o autor do atentado em Oklahoma City que foi julgado e executado nos anos 1990. O caso de McVeigh, soldado condecorado na 1ª Guerra do Golfo, é tão ou mais controverso que o de Kaczynski, porque o ato terrorista em Oklahoma foi justificado por McVeigh como uma “vingança” contra a ação do FBI no caso da invasão do complexo de Waco, da seita Branch Davidians. O ataque a Waco em 1993 causou mais de 80 mortes, incluindo o fundador da seita Devid Koresh e várias crianças. O atentado ao prédio federal em Oklahoma City matou 186 pessoas – foi o maior ato terrorista no território dos EUA antes de 11/9. McVeigh se correspondeu por anos com o famoso escritor Gore Vidal, que escreveu um artigo fabuloso em sua defesa – o que rendeu um dilúvio de críticas a Vidal.
Em maio de 1995, o Unabomber exige por meio de carta ao The New York Times que seu manifesto seja publicado tanto ali como no The Washington Post. Em setembro daquele mesmo ano, o FBI permitiu que somente o jornal da capital americana publicasse o texto, sob a alegação de que poderiam prender algum suspeito em pontos específicos de compra desse jornal na costa oeste do país. Além disso, na ótica do agente Fitzgerald, havia um motivo maior: ao publicar o texto do Unabomber em um jornal de alta circulação no país, ele esperava que a prosódia, o léxico, as expressões idiomáticas, os jargões e os erros ortográficos do manifesto pudessem ser identificados por algum leitor que reconheceria o estilo. Isso andava em consonância com o perfil do Unabomber redefinido por “Fitz”: de um criminoso comum, marginalizado e radicalizado, para o de uma pessoa muito inteligente, altamente instruída e capacitada.
O irmão de Kaczynski, David, juntamente com sua esposa, reconheceram o estilo de texto, a partir das cartas enviadas por Ted, e comunicaram o fato ao FBI. Os policiais organizaram uma emboscada bem-sucedida para capturá-lo vivo. Em seguida, o esforço maior dos investigadores foi respaldar a acusação, já que o mandado de busca e apreensão na cabana de Ted (que encontrou inclusive mais um artefato explosivo pronto para ser enviado) se baseava somente na análise linguística de Fitz sobre os textos enviados por Kaczynski, o que juridicamente foi considerado frágil, porém suficiente, para levar o julgamento adiante e condená-lo a quatro sentenças de prisão perpétua pelos crimes cometidos.
Seguindo a trilha de sucesso da Netflix, os canais abertos e pagos, tanto no Brasil como no exterior, organizam-se cada vez mais para se aproximar do mesmo formato e, assim, viabilizar-se financeiramente e sair da crise em que se encontram, já que o número de telespectadores nessas mídias cai vertiginosamente, enquanto que o número de espectadores nas mídias via streaming aumenta. É o caso da Discovery, nesse exemplo, que recorre ao apelo midiático de eventos históricos (remotos e recentes – como é o caso exposto), concedendo pinceladas dramáticas e sensacionalismo. Isso por si só já é um grande drama.
A série retrata também o drama de Fitz, que teve sua vida devastada pelo forte impacto das ações e do pensamento de Kaczynski. Por outro lado, ele se transformou: tornou-se um supervisor e instrutor respeitado dentro do FBI e, agora aposentado, investe tanto carreira de professor, na área da linguística forense, recém-criada por ele, como também na de escritor de roteiros para séries de investigação, como Criminal Minds e Sleepy Hollow. Uma celebridade, rodeada de controvérsias, assim como o próprio Kaczynski. Com os adventos da tecnologia de informação, Fitzgerald também ajudou a consolidar o sistema de análise de dados do FBI, baseado na tecnologia do machine learning, desenvolvido para realizar o mesmo tipo de análise linguística que ele realizou manualmente no caso Unabomber, o que justifica em parte o horror de Ted, se essa tecnologia for utilizada de maneira abusiva e sem fiscalização.
Nada poderia ser mais próximo da realidade do que isso.
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