As novas tecnologias sobre as mais variadas dimensões da existência, como a disseminação da Internet, os sistemas digitalizados, além do advento tanto da bio como da nanotecnologia, proporcionaram a “reconfiguração” de nossas práticas e percepções, principalmente durante os anos 1990. O jornalista e pesquisador Laymert Garcia dos Santos produziu ensaios que trouxeram algumas reflexões sobre o tema, organizados sob forma de coletânea. Na obra Politizar as novas tecnologias – O impacto sociotécnico da informação digital e genética (São Paulo: Ed. 34, 2013), ele trata do que denomina como “sociologia da tecnologia”, para discutir a realidade virtual. Ao tratar dos impactos da informação digital e genética em suas interações com o meio ambiente, a sociedade, a arte e o futuro do humano, as reflexões de Laymert visam estabelecer uma crítica radical que toma a tecnologia como elemento fundamental para a sobrevivência da política. Chamam a atenção dois desses ensaios, de que tratarei a seguir.
No primeiro ensaio, organizado como capítulo 5 – Considerações sobre a realidade virtual – o pesquisador tenta responder ao que, para ele parece ser a questão fundamental: como a realidade virtual irrompe a realidade compartilhada, dita factual, deslocando horizontes? Para tanto, Santos estabelece algumas premissas para definir a realidade virtual, como um resultado da interação entre homem e máquina, ou ainda, como a criação de um mundo no qual o usuário pode habitar, seja primariamente pela idealização ou pela visualização, mas que almeja realizar uma imersão de todos os sentidos. Isso possibilitaria criar não uma, mas várias realidades e – consequentes personas – virtuais. Essas personas – os ditos avatares – reencarnações, metamorfoses ou ainda fantasmas que possibilitam vislumbrar as potências dessas realidades.
Nesse sentido, ele recorre ao contexto da ficção científica – por conseguinte, da literatura fantástica – para determinar uma característica que ambas compartilham com a realidade virtual: o deslocamento conceitual, que seria o desvio do mundo fictício em relação ao mundo “compartilhado” para emular acontecimentos que não ocorreriam ali. Isso provocaria nos leitores, segundo ele, um choque de “desreconhecimento”. A realidade virtual, assim como a ficção científica, necessita de uma entrega da percepção ao deslocamento conceitual. Ao se tornar um vislumbre de realidades possíveis, a ficção científica e a realidade virtual compartilham outra característica: tornam-se uma literatura de antecipação. Mas isso já é algo comentado efetivamente por alguns teóricos da literatura (vide TODOROV, T. Cap. 5 – A narrativa fantástica. In: As estruturas narrativas. 5ª ed. 2ª reimpr. São Paulo: Perspectiva, 2013). Ali, utilizando-se da classificação proposta por Todorov, a aceitação do deslocamento conceitual seria ligada à esfera do fantástico estranho, em que o deslocamento e o “desrreconhecimento” ainda seriam justificados por explicações racionais.
Santos explica que, se a realidade já foi posta abaixo pela intervenção de outros mundos fictícios geradores de fantasmagorias (ou seja, que remetem a um registro de existente, mas sempre ressuscitado a cada exibição, como o cinema, a TV, o rádio, o vídeo), ela já seria um fruto do cruzamento, da contaminação de imagens, de interpretações, de reconstruções proporcionadas pela mídia. Se, por um lado, somos ascendidos à realidade virtual, por outro lado sua infiltração na realidade compartilhada a solapa.
Minha preocupação, contudo, foi em relação à segunda parte deste capítulo, em que Santos se propõe a discutir a aplicação atual e intensa da realidade virtual no contexto econômico, por meio do uso dos derivativos e da securidade, como geração de singularidades financeiras futuros, como forma de alterar a realidade do mercado financeiro em vigência (ou ao menos, no presente da realidade factual, isto é, a nossa realidade compartilhada, percebida pelos sentidos). Esse raciocínio está bem alinhado, inclusive, ao pensamento de Fredric Jameson, como o filósofo norte-americano expõe em sua palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento:
http://vimeo.com/30799273
Nessa palestra, Jameson comenta mais extensivamente o uso militar da realidade virtual, em que práticas intervencionistas de vigilância e de manipulação nessa realidade já ocorrem e podem se estender inclusive ao âmbito financeiro. A antecipação de realidades possíveis também desqualifica constantemente o desejo em vigência. Assim, a coleta de dados, de amostras, de espécimes, para a formação de repositórios sem uma aplicação imediata, é justificada pelo potencial futuro de aplicação, algo também comentado por Jameson, que pode ser acessado pela síntese proposta pela curadoria do evento.
Já o capítulo 6 da obra de Santos – Consumindo o futuro – descortina um contexto ainda mais sombrio, em que o modelo capitalista atual cria um modo de consumo predatório, altamente poluente, discriminatório e baseado na ostentação da posse. Santos cita a carta redigida pela escritora sul-africana Nadine Gordimer, dirigida ao plenário da Unesco, na qual denuncia o desequilíbrio crônico da distribuição das riquezas no mundo. Devido à contraposição entre a miséria material dos pobres e a miséria libidinal dos ricos, instaura-se a lógica da sobrevivência, em que a discriminação se estabelece pelo acesso à tecnologia, pelo melhoramento genético e pela virtualização. Assim, o texto de Santos é bastante elucidativo, a meu ver, pois recorre ao desejo como força motriz e como ferramenta de mobilização do consumo. Decorre dessa premissa algumas considerações importantes, como a equivalência entre o exercício da cidadania com o exercício do consumo, e a exclusão derivada disso, além do direito à existência estar circunstanciado ao potencial de consumo.
Intrigou-me a maneira pela qual Santos trata de expor uma solução, ou um indício disso, para a consequente redução do consumidor à mercadoria virtual, fidelizado a determinados padrões previstos pelas projeções futuras de desejos de consumo; nas palavras dele, o consumidor como uma mercadoria virtual que consome mercadorias. Santos indica que, para escapar a isso, é preciso descobrir como essa nova configuração de mundo pode ser desregulada. Sua proposta, fugir à norma e à regulação, não deixa de ser um abandono das formas usuais de vivência e de sobrevivência. Se algo ainda pode ser realizado, já que os recursos naturais estão por se tornar cada vez mais insuficientes, seria a evasão de uma realidade para outra(s).
Interessante notar que a literatura já começa a tratar disso. Há o exemplo do escritor inglês Tom Rachman, para quem uma solução seria uma fuga para um contexto pré-digital, uma evasão para mundo analógico, vide seu texto em ocasião do lançamento de seu romance distópico Os Imperfeccionistas (Tradução de Flávia Carneiro Anderson. Record, 2012). Nesse romance, Rachman denomina esses dissidentes de offliners (que pode ser traduzido como “desconectados”). Tal como ocorria nos anos 1960 e 1970, com os movimentos estudantis, os movimentos feministas e de afirmação étnica característicos daquele período, em um ato político de mobilização, os adeptos à autoexclusão digital anunciariam sua desconexão permanente – e contraditória, pois o recurso para esse anúncio seriam as redes sociais – e passariam ao modo de viver anterior à era digital o quanto possível. Aqui a analogia com outro romance distópico, o célebre Fahrenheit 451 (de 1953), de Ray Bradbury, é inevitável. Os protagonistas de ambos os romances se dirigem a uma evasão para um locus amoenus rural e um tempo regrado pela velocidade da tecnologia analógica. No entanto, há uma distinção importante. No livro de Bradbury, muito bem captado pela adaptação cinematográfica de François Truffaut, a vida do protagonista Montag se encaminha para um epílogo de exclusão e marginalidade no campo, que o leva a uma vida semelhante à ascese dos personagens e do estilo de vida semelhante aos romances de Tolstói.
Já no romance de Rachman, cujos temas também são comentados em artigo do próprio autor publicado pelo blog Link do Estadão, trata da problemática do futuro olhar contemporâneo sobre o passado analógico, em que os costumes e as ações relacionadas ao uso dessas antigas tecnologias são retomados como tendência de comportamento, tal como a cultura hipster atual realiza ao fixar padrões de consumo que tomam a nostalgia das décadas de 1920 até 1980 como mote, cada uma com seus segmentos geracionais de consumo muito bem estabelecidos pela análise de Big Data. Segundo ele:
A ironia do romantismo offline está no fato de que ele será promulgado na rede, sendo impossível conceber os movimentos do futuro desprovidos de um intermediário digital. Seus opositores citarão essa história da sua origem (bem como o irritante nome atribuído a esses nostálgicos offliners) para caçoar deles, caracterizando-os como elitistas, reacionários, sonhadores.
Esta última acusação será aquela que mais os incomodará. Afinal, olhando para a sociedade como fizeram os românticos do século 19, os offliners saberão que a disputa já terá chegado ao fim. Em 2021, os sonhos não serão mais a respeito do futuro da tecnologia; os sonhos evocarão um modo de vida anterior, mais lento, mais desajeitado e cada vez mais difícil de ser lembrado.
É um porvir do qual podemos somente projetar as parcas sombras de nosso passado de reminiscências que, ao mesmo tempo, também descortina uma potência ainda desconhecida.
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