Faz tempo que não escrevo e não quero falar de política. Então vou falar do que fiz nas férias. Assisti à segunda temporada da série francesa A very special service (ou, em francês, Au service de lá France).
Esteja preparado. É uma mistura de John Lé Carré, Jean-Pierre Melville, Mad Men e Brooklin 99. Em francês. Paciência, caro leitor, cara leitora.
É John Lé Carré, porque o clima de intriga paira sobre a trama desde o início do primeiro episódio, no qual somos apresentados ao protagonista, interpretado pelo ator Hugo Becker (Gossip Girl). Conta-se a história de André Merlaux, rapaz vindo da Argélia para a França que começa como estagiário e agente em formação no Serviço Secreto Francês. No primeiro episódio, nota-se que a ambiguidade estará presente ao longo das duas temporadas: Merlaux está amarrado, de cueca, e seu capuz é removido. O que aparentemente começa como uma sessão de tortura é, na verdade, uma entrevista de seleção de trainee, realizada pelo diretor adjunto Moïse (Christophe Kourotchkine) e pelo diretor geral, o coronel veterano da Segunda Guerra, Maurice Mercaillon (Wilfred Benaïche). Assim, o tom de comédia, em situações e temas sérios, acompanhará a trama principal, bem como as histórias dos demais personagens. Em certos momentos, nota-se sutilmente uma modulação da narrativa, em que não sabemos se os personagens falam a sério ou se o ator se atém à piada. Nada é o que parece e ainda é divertido.
É Jean-Pierre Melville, pois temos em Becker como ator principal à semelhança de Alain Dellon e Jean-Paul Belmondo. Dessa forma, a herança cinematográfica dos filmes de espionagem e ação, realizados sob a influência da nouvelle vague, está garantida. Ainda assim, lembre-se de que estamos falando de comédia. Outro aspecto bem interessante da série é o pastiche com os fatos históricos (para horror dos historiadores mais rígidos). A independência de países africanos francófonos são consequência de acidentes e descuidos, fruto das trapalhadas dos agentes.
Em sua primeira missão, Merlaux trabalha com se esperaria de um agente eficiente: auxilia a comitiva de representante de uma colônia africana a se emancipar. Só que, um a um, apesar de seus esforços, os membros da comitiva morrem em situações misteriosas. Por fim, o último representante concorda em desistir de encaminhar a negociação da emancipação e volta para África. Em uma conversa com um colega de curso de sua namorada Sophie (Mathilde Warnier), vindo desse mesmo país, e discutindo justamente sobre a emancipação dos territórios africanos, somente pode dizer, sorrindo amarelo, que aquilo “É engraçado!”, o que modula imediatamente a narrativa ao drama contido naqueles acontecimentos.
É Mad Man, pois os colegas agentes estão mais preocupados em se autopromover do que com a estabilidade (ou não) da França ou dos países que monitoram. A trajetória dos agentes na estrutura do trabalho revela como o trabalho era nada glamouroso: os meandros da burocracia estatal, o que já é por si motivo para várias piadas, com o excesso de protocolos e papelada. Não importa se estamos falando de informações falsas, assassinatos, monitoramento, escutas e tocaias: se estiver acompanhado de nota fiscal e recibos, tudo está permitido.
Baseando-se ainda na história, machismo e chauvinismo estão sempre presentes. As mulheres são tema de conversa curiosas entre os agentes, mas aludem a diálogos impensáveis nos dias de hoje:
Em contrapartida, as mulheres veem na atuação como agentes a sua possibilidade de emancipação. Na segunda temporada, é ótimo descobrimos na tímida estenógrafa Marie-Jo Cotin (Marie-Julie Baup) o protótipo de super-agente. Uma Bond girl.
Ou ainda um outro exemplo interessante: Moïse, mesmo sendo um excelente chefe de agentes, é chantageado pelo diretor Mercaillon por sua homossexualidade, que vivencia em clubes reservados (já que, nos anos 1950 e 1960, ser gay é crime). O coronel lhe entrega um par de sapatos femininos vermelhos. No entanto, isso não impede que o próprio Moïse, na intimidade do lar, experimente-os. Mesmo que seja a evidência do ato torpe, da chantagem que sofre, experimentar os sapatos e se permitir, no fim dos créditos do episódio, concede à narrativa uma quebra de sentidos tão cara ao melodrama. O espectador nota ali um cuidado: há um posicionamento do roteiro em explicitar como a relação complicadíssima com as questões históricas de fundo podem ser tratadas com a leveza suficiente para ser objeto de riso.
É também Brooklin 99. Situações em que seria complicado rir são motivo de gags, mas sempre pontuadas por um momento de resgate da importância do fato histórico. Um exemplo hilário disso se encontra na segunda temporada, quando o agente Moulinier (Bruno Paviot) está em uma loja de artigos em Moscou em plena Guerra Fria e reorganiza os pares de sapato expostos na prateleira. As autoridades soviéticas, ao mesmo tempo em que perseguem os agentes, veem no ato uma ameaça de grandes proporções ao Plano Quinquenal, e decidem fechar o bloco do leste europeu e, claro, levantar o Muro de Berlim.
Hilário também é o episódio em que Jacquard (Karim Barras), Calot (Jean-Édouard Bodziak) e Moulinier decidem entrar em greve:
Um grande destaque da série, que atesta ainda mais a sua qualidade, é a trilha sonora, composta por Nicolas Gudin, do duo eletrônico Air. Ao se basear em samples do período, no uso de sintetizadores e em teclados eletrônicos, além da influência da bossa nova, Gudin demonstra uma ótima sintonia com a memória musical do período dos anos 1960:
Como vivemos em um período complicado, talvez seja por isso que a série tenha feito sucesso na plataforma Netflix e tenha sido produzida pela Mandarin Télévision e pela ARTE France, já que a proposta inicial ao Canal+ não foi acolhida. Diferentemente da série OSS 117, que foi também produzida por Jean-François Halin, o tom de deboche pode não ter agradado ao espectador da chamada França profunda, mas serviu, para o espectador internacional e para o mais sensível, como uma forma de rir profundamente de si mesmo.
Uma habilidade que muito nos faz falta exercitar hoje em dia.
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