De vez em quando, surge a notícia de que algum desavisado, tendo criado um animal silvestre — uma onça, um chimpanzé, uma jiboia ou algo igualmente grande, belo e potencialmente perigoso — se vê atacado pelo bicho “domesticado” e, em alguns casos, até perde a vida. A gente lamenta, claro, e espera que as pessoas criem juízo e não cometam mais esse tipo de erro grave. Animal selvagem tem esse nome por uma razão: ser selvagem é da sua natureza e, cedo ou tarde, essa natureza se apresenta com toda sua força.
Bem, estamos vendo esse mecanismo se repetir diante de nossos olhos, mas dessa vez sem envolver a fauna, estamos é torcendo pelo “bicho” que ataca seu criador: a Netflix está atacando Hollywood e ameaça engolir uma boa parte desse gigante americano.
Os repórteres Joe Flint e Shalini Ramachadran, do Wall Street Journal, publicaram um artigo no dia 27 de março (replicado na íntegra no site Business Standard) contando como a empresa que antes era considerada a “queridinha de Hollywood” está ameaçando a Meca do cinema e da televisão. Investindo pesado na produção de séries próprias, a Netflix está inflando o mercado e “consumindo” as melhores equipes de produção. A queridinha de antes está sendo vista como inimigo no 1.
É bom lembrar que a Netflix surgiu como aliada de Hollywood, uma arma legal que ajuda a combater (E como!) a pirataria que as facilidades de download em tempos de banda larga proporcionam. Seus serviços de streaming, isto é, descarga da Internet com exibição simultânea e sem armazenamento local, oferecem programação relevante (leia-se: os blockbusters do momento), com excelente qualidade e preços acessíveis. Os analistas mais sagazes sempre argumentaram que a solução contra a pirataria não era a repressão imposta pela indústria, com processos judiciais sendo aplicados em usuários pelo mundo afora, mas sim uma alternativa legal, de qualidade e barata. A Netflix, ao oferecer tudo isso, salvou a indústria em um momento delicado: a morte das locadoras provocada pela revolução digital começava a afetar os resultados anuais dos estúdios.
Ou seja: quando a Netflix surgiu como alternativa viável, Hollywood — e vários outros centros de produção no mundo inteiro — bateram palmas. Junto com séries próprias de muita qualidade e muito sucesso, como no caso de House of Cards e Orange is the New Black, a Netflix empacotava filmes e séries de televisão convencionais, ocupando com vantagem o espaço das moribundas (hoje, mortas e enterradas nos grandes centros urbanos) locadoras.
O ânimo com os sucessos iniciais das produções próprias da Netflix gerou dois resultados em um primeiro momento: mais produções — que vêm mantendo a qualidade e a predileção do público — e, como só era de se esperar, concorrência nesse mercado: a Amazon, gigante americana do varejo on-line passou a produzir seus próprios programas e a distribuí-los também via streaming. Até aí, só alegria: os estúdios celebravam o novo canal de distribuição e os lucros que esse novo canal gerava; e Hollywood respirava aliviada por evitar uma crise provocada pelas novas tecnologias.
Pois é, mas se alegria de pobre dura pouco, não há garantia nenhuma que alegria de rico vá durar muito mais. Nesse ambiente de celebrações e incentivos, a Netflix cresceu, intensificou a criação de produções próprias, e passou a concorrer seriamente com Hollywood pelos recursos dos quais a capital do cinema depende: equipes de produção, atores e diretores. A Netflix se transformou em um gigante faminto, “engolindo” os melhores profissionais, e aumentando seus salários de forma antes nunca vista em Hollywood. A empresa deve investir 6 bilhões de dólares em suas produções esse ano, um bilhão a mais que o ano passado. Em comparação, esse valor é duas vezes maior que o investimento esperado para a HBO e cinco vezes maior que o previsto pela Showtime, dois canais premium de conteúdo. O resultado é que séries como The Crown — um drama sobre os primeiros anos do reinado da rainha Elizabeth II — têm um custo absurdo de 10 milhões de dólares por episódio. Ou seja, uma série com 10 ou 13 episódios custa mais que muitas superproduções hollywoodianas.
As consequências são óbvias: todas as boas equipes de produção sonham com receber um telefonema dos executivos da Netflix, que não hesita em subir os salários para conseguir trabalhar com os melhores. E aí vemos Hollywood parar de celebrar sua “queridinha” e chiar por conta do mercado inflacionado. Os analistas mais estridentes já estão em modo “não sei não…”, apontando para o fato de que a empresa está investindo demais para conseguir novos assinantes, mas não está gerando resultados em forma de lucro, a única coisa que interessa para os investidores.
Infelizmente (para analistas estridentes e estúdios reclamões) não é bem assim. A Amazon já demonstrou — durante mais de uma década, aliás — que a geração de lucro, se não é secundária, pelo menos pode ser adiada em favor da estruturação de um negócio “matador”. Lembro-me de uma entrevista de Jeff Bezos, CEO da Amazon, lá no longínquo ano de 1995, dizendo algo na linha de o dinheiro está para uma empresa assim como o sangue está para um ser humano. O sangue precisa circular, mas nenhum ser humano vive em função de seu sangue, e o mesmo deveria ocorrer com uma empresa: o lucro é importante, mas não é a única coisa importante. Estou convencido que a Netflix está seguindo à risca essa página do manual da Amazon, e tem excelentes chances de sucesso, até porque a Amazon, nos dias de hoje, deixou faz tempo a fase de investimentos sem resultado no bottom line.
Ah, e tem mais: as produtoras locais (as brasileiras, por exemplo) têm motivos de preocupação, mesmo estando longe de Hollywood. A Netflix está se entregando a produções locais em vários mercados: em 25 de novembro, do ano passado estreou a série brasileira 3%. A série de ficção apocalíptica mostra um futuro distópico e foi escrita depois que o roteirista Pedro Aguillera leu Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. A série brasileira da Netflix mostra uma tendência mundial: a empresa investe em programação local nos mercados em que atua. Dark, por exemplo, é uma série de mistério e drama familiar que está sendo produzida na Alemanha, e deve estrear ainda em 2017. Outra é The Rain, uma série de mistério para o mercado escandinavo, que também chega às telas esse ano. Ou seja: o mercado inflacionado e a escassez de bons profissionais não estarão necessariamente limitados a Hollywood em um futuro próximo.
Em uma análise mais fria do assunto, podemos chegar à conclusão de que isso é uma má notícia apenas para os estúdios tradicionais hollywoodianos, pois, para todo o restante da cadeia ligada ao cinema e à televisão — equipes de produção, profissionais, atores, público —, trata-se de uma excelente notícia. Maiores salários, mais trabalho, produções de maior qualidade: tudo isso é de enorme benefício para os envolvidos. Sofrem apenas os estúdios tradicionais, que veem tanto o aumento de seus custos como o sumiço de seus profissionais.
A bem da verdade, essa mudança no mercado provocada pela tecnologia on-line não deveria ser surpresa para os executivos de Hollywood. Quinze anos atrás, o mesmo fenômeno ocorreu em um setor paralelo do entretenimento: a música, e era só questão de tempo para que fosse reeditado nas produções de cinema e televisão. Logo depois de lançar o iPod, em 2001, Steve Jobs se lançou a uma série de negociações com a indústria fonográfica para disponibilizar a venda de músicas pela iTunes Store, a loja virtual de músicas da Apple. Poucos anos depois, o modelo de negócios da indústria musical havia mudado completamente, tornando-se dependente da Apple. Cinco anos atrás, outra mudança tectônica começou a abalar esse mercado, com efeitos enormes até para a toda poderosa Apple: a Spotify e a Pandora trouxeram o streaming para a música, e o mercado nunca mais será o mesmo. Tanto que a Apple correu para lançar sua própria empresa de streaming, a Apple Music. Hoje não são raros os artistas que lançam seus trabalhos não pelas gravadoras, mas por uma das gigantes do streaming.
Em suma: Hollywood teve mais de um aviso de que a revolução digital costuma abalar estruturas com a intensidade de terremotos, tsunamis e furacões — todos incidindo ao mesmo tempo. Insistir na volta dos “áureos tempos” é inútil e perigoso. O ideal é que se adaptem à nova realidade e passem a operar não a despeito da tecnologia, mas em harmonia com ela.
A alternativa é ficar na mesma, confiando em seu poderio e esperando as coisas melhorarem. Foi mais ou menos essa a estratégia adotada pelos dinossauros depois que o meteoro atingiu a Terra, 66 milhões de anos atrás, e tem mais ou menos as mesmas chances de funcionar.
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