“Eu só começo a beijá-las. É como um ímã. Só beijo. Eu nem espero. E quando você é uma estrela, elas deixam. Você pode fazer qualquer coisa”. A admissão casual de Donald Trump em um microfone aberto antes do início de gravação e um programa de variedades ultrapassa o assédio sexual e entram no campo do estupro, se for observada a lei à risca. Isso e muito mais foi dito pelo candidato republicano à presidência dos EUA alguns dias atrás, a título de vantagem contada por alguém que, imaginando-se fora dos olhos e ouvidos públicos, assume-se como de fato é.
No mesmo dia, poucas horas depois, o grupo Wikileaks, liderado por Julian Assange, liberou um conjunto de e-mails de John Podesta, um dos coordenadores de campanha de Hillary Clinton, candidata democrata também ao cargo de presidente dos EUA. Nos e-mails — que o comitê democrata acusa terem sido roubados por hackers russos, a fim de desestabilizar a campanha de Hillary — a candidata aponta que assume privadamente aos banqueiros de Wall Street uma posição bem diferente (e bem mais leniente) do que seus discursos públicos apontam.
Ainda recentemente, no Brasil, vimos os imbróglios que escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal nos telefones do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva causaram. Não por terem sido feitos, pois havia ordem judicial para tanto, mas por terem continuado além do período garantido por lei, e principalmente por terem sido divulgados. Aprendemos que o “Bessias” levaria o decreto apontando Lula para o Ministério da Casa Civil como forma de poupá-lo da Lava-Jato. Nascia ali, também, o bordão usado pelos defensores do impeachment: “Tchau, querida!”
Obviamente que não são só estes três casos os que merecem menção na longa história de indiscrições de chefes de estado e candidatos a este posto. Se estendemos essa rede para celebridades em geral, poderíamos escrever livros e mais livros sobre o assunto.
O que está na base dessas situações é algo que, em tempos de tecnologias cada vez mais intrusivas, não existe mais: a presunção de privacidade.
O cidadão imagina que aquilo concernente / relacionado apenas a uma pessoa, ou a um grupo pequeno de pessoas, ficará ali, entre os interlocutores. Mas acreditar nisso, hoje em dia, equivale a acreditar em Papai Noel. Privacidade é um conceito cada vez mais distante de nossa realidade, e tende a desaparecer mais rapidamente quanto maior for a exposição pública que tenhamos. Políticos e celebridades deveriam assumir que, independente de onde estejam, suas palavras e atos podem se tornar públicos a qualquer momento.
É triste – eu sei -,mas infelizmente é a verdade. A tecnologia coloca técnicas e possibilidades que antes eram possíveis apenas aos espiões internacionais nas mãos de qualquer cidadão. Não há nada mais conveniente, prático e fácil de usar que um microfone ou uma câmera de celular. Como, na era dos blogs, qualquer um pode virar repórter ou jornalista, milhões de pessoas no mundo todo apontam seus smartphones para aquilo que lhes parece interessante e registram. Dia sim, outro também, alguém é pego em alguma indiscrição.
Isso sem falar nos drones.
Cada vez menores, mais silenciosos, e já dotados de câmeras, esses pequenos aparelhos conseguem acesso discreto onde alguém com uma câmera chamaria atenção. Os menores deles, como no caso do Hasakee Mini cabem na palma da mão e conseguem chegar a 50 metros de distância e podem ficar no ar por até sete minutos:
Custa caro? Nada: 37 dólares no site da Amazon. E olha que estamos falando de um produto de consumo, pois há equipamentos profissionais menores e com maior alcance, para quem tem o dinheiro e contatos.
Os celulares são, digamos, outro ponto deindiscrição, bastante interessante. A tecnologia de grampo desses aparelhos já é antiga, e quanto mais tecnologia colocamos neles, mais eles se transformam em armas de vigilância. Ligar o microfone ou a câmera de um celular à distância já é técnica antiga, em uso por várias polícias e agências de espionagem.
Lembra-se do Pokemon Go, o jogo de smartphone que 10 entre 10 crianças e adolescentes com celular começaram a jogar quando de seu lançamento em julho de 2016? Então, o jogador aponta a câmera de seu celular e sai por onde estiver em busca dos bichinhos virtuais. Ocorre que o aplicativo tem acesso a tudo que está sendo filmado. Até aí, nada demais, não é mesmo? Seria nada mesmo, não fosse por um detalhe inconveniente: John Hanke, fundador da Niantic, empresa que criou o Pokemon Go, recebeu fundos da In-Q-Tel, uma empresa de investimentos com laços bem estreitos com a comunidade de inteligência dos EUA (leia-se FBI, CIA, NSA e Serviço Secreto), já tendo financiado vários projetos para as agências americanas. E então, nada demais?
Nossos laptops e notebooks não são nada diferentes. A maioria já vem com câmera e microfone, e há inúmeros casos de “sequestro” destes dispositivos, expondo seus usuários. A preocupação existe e é real: Mark Zuckerberg, o bilionário dono do Facebook, em foto recente, mostrou que cobre com fita isolante a câmera e a entrada de fone de seu Mac:
Como o próprio Zuckerberg mostra, não é nada que um pedaço de fita isolante não resolva, mas ainda assim, aposto que você vai se lembrar de momentos à frente de seu computador que você assume que não foram filmados e adoraria que de fato não tivessem sido, certo? Pois é, mas poderiam. Os casos não são nem poucos, nem novos.
Quer mais? Com a chegada da tal “Internet das Coisas”, que equivale a tudo estar conectado, seus eletrodomésticos, as câmeras e microfones de vigiar nenês pequenos, os carros sem motorista, por exemplo, a dissolução do conceito de privacidade tende a acontecer com mais velocidade ainda.
Qual a solução para tudo isso? Bem, eu vejo duas: virar eremita ou desencanar. Qualquer outra atitude terá o mesmo efeito que esperar Papai Noel na noite de Natal.
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