Em certos momentos, enfrentamos situações-chave, eventos marcantes e inevitáveis, em que o mundo que conhecemos é alterado e, a partir disso, também perdemos os elementos que nos possibilitavam reconhecer – o outro, a nós mesmos. São acontecimentos registrados por escritores, poetas, cineastas, historiadores, jornalistas, viajantes, que notam como a vida passa a ser marcada pelos efeitos desses eventos de modo indelével: uma mudança de cidade, uma paixão avassaladora, um filho, o falecimento de um ente querido, um evento trágico, a iminência de um acontecimento em esfera mundial, que nos paralisa – metafórica ou literalmente.
Ao mesmo tempo, notamos a passagem inexorável do tempo a partir de circunstâncias nesses mesmos eventos nos conectam também a outros, em que o único elemento a permanecer inalterado é o devir, a mudança inevitável – dos seres, dos lugares, da natureza. Soubéssemos previamente do anátema que organizaria a confluência de fatores que promoveram esses fatos, poderíamos alterá-los, evitá-los, antecipar sua chegada? O que seja? É certo exercermos o protagonismo de nossas existências, mas para o que está nela. O que fazer para o que estiver para além disso? Essa é a matéria que nos liga ao livro Os anéis de Saturno: uma peregrinação inglesa (Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010), de W. G. Sebald, escritor e professor de literatura alemã radicado na Inglaterra.
Nascido Wertach im Allgäu, em 1944, filho de uma família católica da Bavária, marcada como tantas outras pela passagem do nazismo na vida cotidiana da época e, evidentemente, pela Segunda Guerra Mundial, ele conclui seus estudos de literatura alemã em Freiburg. Imigra em seguida para o Reino Unido, onde se especializa e se fixa, para atuar na Universidade de East Anglia até sua morte, em um acidente de carro nos arredores de Norfolk em 2001. Também foi poeta, ensaísta e tradutor, mas é a sua ficção a faceta mais conhecida pelos brasileiros e pelo mundo (Vertigem, 1990; Os Emigrantes, 1992; Austerlitz, 2001; entre outros).
Sebald é um escritor de primeira linha, muito embora os temas que são caros à sua literatura não sejam tão palatáveis. Como tantos outros escritores em que as experiências de escrita per se eram uma quase impossibilidade, assim como suas existências. Suas sobrevidas somente ocorrem por meio da matéria literária da qual se nutriam e por sua vez retroalimenta suas obras. Um escritor do não – como Kafka, Robert Walser, Juan Rulfo e outros tantos escritores, nos dizeres do espanhol Enrique Vila-Mata, em Bartleby e companhia (São Paulo: Cia. Das Letras, 2005; Ainda não lido, mas em uma lista de leituras incontornáveis).
Originalmente publicado em língua alemã em 1995, a história – sobre a qual não sabemos classificar como um livro de ficção colado na realidade ou um relato de viagem, com matiz autobiográfico e elementos dos essays ingleses – Os anéis de Saturno é o amadurecimento de seu estilo, iniciado nas obras anteriores.
O narrador – o próprio autor? Sabemos serem entidades distintas, mas como fascina se deixar iludir – inicia seu relato internado em um sanatório, para tratar de uma paralisia que impede inclusive os movimentos mais simples de seus membros, causada pelas reverberações de uma viagem realizada a pé pelo leste da Inglaterra. Um estado de exceção, uma quase-morte, ainda uma morte-em-vida, com que remete a uma marca estilística fundamental de seus textos: é uma narrativa impassível, como alguém que fala do além-túmulo, de maneira muito semelhante ao narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, feito também de reminiscências, mas sem a familiar ironia machadiana.
A motivação da viagem, segundo o narrador, seria a “esperança de escapar ao vazio que se alastra em mim sempre que termino um longo trabalho” (p. 13). Um trabalho desgastante do qual pouco sabemos. Em uma viagem sentimental entre a plenitude e a evasão a esse aludido vazio, como uma espécie de Lawrence Sterne soturno pelos campos e pela costa leste da Inglaterra, o narrador-autor percorre, em paralelo com as estradas, uma trilha de referências históricas, científicas e literárias, em torno de fatos, homens notáveis, tragédias, todas elas conectadas com ele pelos lugares visitados e pelos eventos aludidos.
O relato então consiste em um desfile de eventos e personalidades, todos eles interligados pelo registro da decadência da civilização e pela deterioração e eterna mudança de estados na natureza: a obra do naturalista inglês do século XVI Thomas Browne, Rembrandt, a derrota da Invencível Armada Espanhola, as falésias – nossas voçorocas – a devorar até seu quase desaparecimento cidades e portos antes efervescentes; a decadência das aristocracias, com o fim dos regimes e a emancipação de povos e nações, como ocorreu na Irlanda; a exploração inescrupulosa e sanguinária do continente africano durante o séc. XIX; a fabricação de armas de destruição em massa durante a Guerra Fria; a cultura do bicho-da-seda, em uma relação mental entre momentos singulares da história, como as tramas suicidas pela disputa de poder nas dinastias do Império Chinês e o Holocausto judeu. Em suma, trata-se do desaparecimento de modos de vida, de povos, de culturas, de eras.
As relações amorosas – aludidas tanto pela literatura como pela biografia de seus escritores – também são circunscritas à passagem do tempo, tanto do tempo passado real como do tempo em potência, ou seja, do que poderia ter acontecido. Destacam-se nesse caso alguns exemplos. como o período da vida do escritor Joseph Conrad (1857-1924), que emigrou na juventude da Bavária para Marselha, quando trabalhou como marinheiro e contrabandista. Ali, o escritor polonês viveu uma paixão turbulenta por uma cortesã amante do sucessor do trono espanhol d. Luís Carlos, cuja casa real havia sido deposta por Napoleão. Uma paixão cujo término foi marcado por um tiro que acometeu o autor de Coração das Trevas – não sabemos se em um duelo ou se cometido por ele mesmo.
Outro exemplo exposto por Sebald é o registro presente nos diários do escritor francês Chateaubriand (1768-1848) que, exilado na Inglaterra, apaixonara-se pela bela Charlotte Ives, filha de seus anfitriões, por sua vez descendentes dos tecelões huguenotes fugidos das guerras religiosas franceses do séc. XVI. Ele, que por sua vez, não pode se casar com a moça, pois já era casado, mesmo que pro forma e por procuração encaminhada pela família sem ter conhecido a esposa de imediato. O reencontro de ambos se dará anos depois, quando Chateaubriand retorna a Inglaterra como embaixador da França restaurada e recebe a visita de Charlotte, agora esposa de um dos almirantes heróis da marinha inglesa na batalha de Tralfagar (outro evento trágico). Ela implora para que o antigo amado interceda pelo filho para um cargo na Companhia das Índias Orientais.
Todo esse relato é um fragmento da obra do escritor francês, segundo as palavras de Sebald, que ainda diz:
(…) Mas a verdade é que a escrita é o único modo de me haver como minhas lembranças, que tantas vezes me tomam de assalto tão inopinadamente. Se permanecessem trancadas em minha memória, ficariam cada vez mais onerosas no curso do tempo, de modo que no fim eu sucumbiria a seu peso crescente. As lembranças dormitam dentro de nós durante meses e anos a fio, proliferando em silêncio, até que são despertadas por alguma ninharia e nos cegam para a vida de uma maneira estranha. Quantas vezes isso me fez sentir que minhas lembranças e a tradução delas em escrita faziam parte do mesmo negócio humilhante e, no fundo, digno de reprovação! E, no entanto, o que seríamos sem a memória? Não seríamos capazes de ordenar os pensamentos mais simples, o coração mais sensível perderia a capacidade de se afeiçoar a outro, nossa existência consistiria apenas numa sequência infinita de momentos despidos de sentido, e não haveria mais traço de um passado. Que tristeza não é nossa vida! Tão repleta de falsas presunções, tão fútil que pouco mais é do que a sombra das quimeras liberadas por nossa memória. A alienação que sinto me infunde cada vez mais terror (p. 252-253).
De quem é o trecho: de Chateaubriand ou do narrador, que toma as palavras do cronista francês para si? Quando começa um e termina o outro, de fato? A memória mistura nossas reminiscências a nossas leituras, que incorporamos – às vezes, de bom grado; ou não – e se sedimenta em nossa consciência. Ambos as tramas amorosas se conectam com a própria experiência do narrador, com uma aristocrata de uma família da elite britânica irlandesa antes da emancipação daquele país. Seu desejo era ter permanecido com a mulher, vivendo na mansão da família aos pedaços, como reflexo da decadência de seus moradores. Como nos casos amorosos de Chateaubriand e de Conrad, o narrador se questiona por não ter ficado e vivido essa paixão.
Essa polifonia – seja em forma de texto ou de imagens reproduzidas em meio ao relato, como efeito que permeia todo o romance – foi notada pela crítica de Mark O’Connell na ocasião das homenagens de 10 anos de morte de Sebald, celebradas em 2011. Tentou-se nesse presente texto reproduzir esse efeito proposto pela narrativa de Os anéis de Saturno.
Bernardo Carvalho, em sua crônica “O mais radioso dos dias”, de 17/08/2004 (em O mundo fora dos eixos. São Paulo: Publifolha, 2005, p. 145), utiliza as menções do romance sobre o Brasil para tratar dos efeitos predatórios da ocupação do solo pela agricultura e pela pecuária no país, sem critérios ou contrapartidas sustentáveis tanto para os recursos naturais como para as populações ali residentes – seringueiros, sertanejos, índios, pescadores etc. Amazônia para Sebald é a materialização tanto da metáfora presente no nome do país (Brésil, fr. Brasa ou braseiro) a respeito das vastas regiões de mata consumidas pelo fogo em um movimento de expansão irrefreável para o oeste, bem como de uma alegoria cristalizada da combustão como um fator onipresente no desenrolar da história humana. No fundo, a leitura de Carvalho sobre o evento, amparado pelo texto de Sebald, é uma crítica ao neoliberalismo que, como o resto do mundo, também está em fratura.
Até onde, além disso, estende-se a sombra da literatura de Sebald pelo mundo? Alguns escritores contemporâneos já explicitaram a influência desse autor desterrado, como Will Self, Teju Cole, Susan Sontag, o próprio Bernardo Carvalho no Brasil, entre outros. Também podemos associá-lo a outros escritores-viajantes – como Bruce Chatwin, Paul Theroux e Henri Michaux – pelo fato de que transformam seus deslocamentos em uma forma de apropriação da memória e uma forma de acessar sua identidade.
Como anuncia em uma de suas epígrafes, Saturno é o planeta que apresenta anéis formados pela colisão com uma de suas luas, cujos restos foram mantidos em órbita pela gravidade desse grande planeta, tal como o titã homônimo da mitologia romana (ou Chronos, para os gregos) a devorar seus próprios filhos, como também nos devora, desafiando-nos a manter íntegra, a cada dia, nossa própria memória. Isso já foi tema de uma bela crônica de nossa confrade Carla Fregni (https://goo.gl/GHPyKo).
Nada mais auspicioso como meta para o tempo emergente, do qual ainda nada sabemos e quando nada é o que parece.
Texto brilhante, Guilherme, gosto destas reflexões. Muita lucidez em trazer através da literatura, paralelo com o mundo real. abraços.
Obrigado, pai! Pela leitura e pela torcida! Abraço!