Nos idos de 1976 surgiu um boato de que os Beatles voltariam a tocar juntos. À época, John Lennon e Paul McCartney já haviam, até certo ponto, resolvido suas rusgas e frequentavam as casas um do outro. George Harrison inclusive já havia inclusive gravado o disco Imagine com John Lennon em 1971, e os dois continuavam grandes amigos.
Talvez esses fatos e outros pequenos encontros tenham impulsionado o boato, que nunca deixou de ser isso: um simples boato.
Ocorre que quando começou, nos EUA, a temporada televisiva de outono (no fim de setembro), o produtor do Saturday Night Live Lorne Michaels decidiu dar um “empurrãozinho” nos quatro garotos de Liverpool. Em uma promoção para a segunda temporada do Saturday Night Live, Michaels ofereceu um cheque de 3 mil dólares — uma merreca até para aqueles tempos — para que os quatro tocassem no show ao vivo. Ele inclusive sugeriu que o valor pudesse ser dividido como eles quisessem, com um valor menor para Ringo Starr, por exemplo. O vídeo abaixo mostra a “tentativa” de Michaels de reunir os Beatles:
A piada de Michaels por pouco não deu um resultado inesperado. Paul McCartney estava visitando John Lennon em seu apartamento em Nova York, e os dois quase foram ao estúdio do Saturday Night Live — que sempre foi filmado em Nova York — para tirar uma com a cada de Michaels. Paul McCartney contou a história em uma entrevista em 1991:
Infelizmente a reunião dos Beatles nunca aconteceu, mas um deles se interessou pela participação no Saturday Night Live: George Harrison. Assim, no oitavo episódio da segunda temporada, que foi ao ar em 20 de novembro de 1976, lá estava George.
Lorne Michaels não perdeu a oportunidade de expandir na piada dos 3 mil dólares, e o primeiro quadro da noite é uma conversa entre ele e George em que Michaels explica ao ex-Beatle que os 3 mil dólares seriam para 4 pessoas, e que a parte de George seria de 750 dólares. Michels “adoça” a oferta propondo mais 250 dólares para George abrir com o bordão do show, ao que George responde com satisfação: “Live from New York, it’s Saturday Night!”:
Essa história engraçada foi apenas o aperitivo para um momento sublime. O convidado da noite era o cantor e compositor Paul Simon, da dupla Simon & Garfunkel, que aparece brevemente no início do vídeo acima. Em determinado momento do show de humor, como sempre acontece, o convidado musical toca um número de seu repertório. Nessa noite, George Harrison e Paul Simon tocaram juntos duas músicas, uma dos Beatles e uma da dupla Simon e Garfunkel: Here comes the Sun e Homeward Bound.
Here comes the Sun havia sido composta em 1969 e lançada no álbum Abbey Road (aquele em cuja capa os Beatles estão atravessando a rua em uma faixa de segurança). A banda já estava em sua fase final, e George Harrison a compôs enquanto dava um tempo na casa de campo de seu amigo Eric Clapton. Consta que sua presença na propriedade de Clapton naquele momento tinha o explícito propósito de fugir de um encontro com a banda, que já passava por profundos problemas de relacionamento. O “perdido” de George Harrison rendeu uma das mais belas canções da História do Rock.
A música reflete, de certa forma, o momento vivido por George Harrison. O breve tempo na propriedade de Clapton era como o Sol reaparecendo depois de um longo inverno. A letra, cheia de esperança, é como uma súplica por dias melhores, representados pelo calor e pela claridade. O pedido seria atendido menos de um ano depois, com a banda finalmente se separando.
Homeward Bound foi composta em 1964 por Paul Simon quando ele fazia pequenas apresentações na Inglaterra. A canção não fez parte do primeiro álbum da dupla Simon & Garfunkel (Wednesday Morning, 3AM) e nem do segundo (Sounds of Silence), sendo lançada apenas no terceiro disco da dupla, (Parsley, Sage, Rosemary and Thyme). Após o primeiro grande hit da dupla, The Sound of Silence, a canção Homeward Bound foi recebida com entusiasmo pelo público e pela crítica, chegando ao quinto lugar na Bilboard.
A canção fala da vida de “poeta e banda de um homem só”, vivida por Paul Simon no primeiro momento de sua carreira, enraizado no estilo folk. Em uma rotina de apresentações únicas em locais pequenos, seguido de viagens de trem até a próxima cidade para começar tudo de novo, não é de admirar que em uma das várias estações ferroviárias pelas quais passou, Simon tenha sentido vontade de estar indo para casa e ali mesmo tenha composto a música. Em sua essência — assim como a bela canção de George Harrison — Homeward Bound é uma súplica, um pedido. Simon suplica pela familiaridade de seu canto, por estar em seu espaço, físico e mental.
É muito significativo vê-los no palco, cantando seus sucessos não mais como súplica, como esperança, mas como um estado que conseguiram atingir.
Após o fim dos Beatles George Harrison se dedicou à sua música, à filantropia, e mesmo a realizar sonhos alheios ao produzir A Vida de Brian, o filme do grupo Monty Python quando ninguém queria por um tostão na produção. O fez simplesmente porque queria ver outro filme do Monty Python, como se só isso já fizesse sentido o bastante (bem, faz, claro, mas não é esse o ponto).
Paul Simon, por sua vez, já havia deixado há muito a vida de artista de estrada, tendo uma carreira sólida e de muito sucesso ao lado de Art Garfunkel. Sucessos como The Sound of Silence, Homeward Bound, The Boxer, Mrs. Robinson, Bridge Over Troubled Water, America, El Condor Pasa e tantos outros trouxeram a ele uma carreira sólida à dupla.
Assim encontramos George Harrison e Paul Simon no palco, sentados lado a lado. Acompanhados apenas de seus violões, os dois criaram uma das mais icônicas performances do Saturday Night Live, dividindo os versos e complementando os acordes um do outro.
O momento é pouco conhecido, mas para quem tem ideia do peso de George Harrison e Paul Simon para a música contemporânea, é algo de fora de série. Os dois tocam como se tivessem tocado juntos a vida toda, em harmonia nos violões e na voz, sem esforço, sem malabarismos de produção, sem caras e bocas. As canções são como uma brisa suave em uma tarde de sábado na alma da gente. Não há como não se deixar tocar pelos acordes, pelos versos, pelo momento. Não há como não perceber a paz no semblante de ambos, vendo de alguma forma concretizadas as esperanças de ambas as letras.
Momentos assim são raros, e por mais que estejam décadas no passado, merecem ser revisitados de vez em quando, pelo bem que nos fazem.
Nos tempos turbulentos que vivemos, nunca é demais, não é verdade?
Salve Ruy! Texto delicioso!! Parabéns!! Sobre 'Here Comes The Sun', aprendi esses dias com meu professor de guitarra (Marcel Rocha, aí de Campinas) que é uma música que só poderia ter sido composta por um guitarrista. Sua melodia sai de licks e riffs comuns, simples, sem malabarismos de dedos, que os guitarristas fazem, e, no caso, com algum toque mágico de genialidade (simples, não virtuosa) vira esta maravilhosa melodia. Sai da guitarra para o vocal e volta para a guitarra!! Parabéns pelo blog!
Obrigado, Dandan! Aprendi muito sobre essa música enquanto pesquisava para compor esse texto. Um fato surpreendente: é a música dos Beatles mais executada no Apple Music pelo público menor de 18 anos, e a segunda para o público maior de 18 (Perdendo só para I Want To Hold Your Hand, por incrível que pareça).