É spoiler, é pedra, é o fim do spoiler, é um resto de spoiler, é um spoiler sozinho. São os spoilers de março fechando o verão, é a promessa de spoiler no meu coração.
A primeira coisa que me veio à cabeça quando descobri que o nome do sexto episódio da temporada seria Decoherence (decoerência, em português), foi: “Como diabos vou conseguir entender esse fenômeno complicadíssimo da Mecânica Quântica para poder explicar e fazer as ligações necessárias ao episódio.Westworld, vá plantar batatas, faz favor.”
Senta aí e, se necessário, pega um café, porque eu vou tentar fazer exatamente isso. Em Mecânica Quântica (e, não, não pode chamar de Física Quântica, sob pena de você deixar claro que não entende como funciona o estudo da Física), o conceito de emaranhamento (entaglement) afirma e demonstra que duas partículas subatômicas podem apresentar comportamentos dependentes mesmo que estejam separadas uma da outra, por longas distâncias (uma partícula de cada lado da galáxia, por exemplo). Essas duas partículas estão “emaranhadas”, e as curvas, equações e ondas que as descrevem estão como que “sincronizadas”. Enquanto isso ocorre, o comportamento de uma é previsível pelo comportamento da outra. Detalhe: isso só ocorre quando esse sistema composto pelas duas partículas está isolado. Em isolamento, o sistema apresenta o comportamento quântico do emaranhamento. Aí os cientistas, curiosos que são, se perguntam: “Por que será? Melhor eu observar ambas as partículas para tentar entender por que isso acontece.” Ledo engano: assim que se observa o sistema, ele não mais está isolado, e a coerência quântica entre as curvas, equações e ondas de ambas as partículas se perde: elas deixam de estar emaranhadas, perdem esse comportamento quântico, e passam a se comportar como entidades separadas, sem se influenciarem à distância. A previsibilidade que o emaranhamento dá ao sistema se perde, e o comportamento de ambas as partículas a partir daí é caótico.
(Se você leu até aqui, obrigado. Te devo um café, que pode — deve — ser cobrado quando algum dia nos encontrarmos.)
O conceito de Decoherence se encaixa perfeitamente ao episódio, porque vamos encontrar vários exemplos do fenômeno — não no nível quântico, mas no nível pessoal, relacional — ao longo dessa porção da história.
Começamos o episódio com a mente de Maeve em uma simulação do Vale Além (ou “Sublime”, como também é chamado). Aqui ela e Serac se encontram. Serac é bem perverso em dizer que “Tudo isso pode ser seu, mas se não fizer o que estou te mandando, vai para um lugar diametralmente oposto, muito mais infernal”. Maeve pede o que Dolores tem: ajuda, reforços. Veremos, ao longo do episódio, que seu desejo será satisfeito por Serac, e outros anfitriões serão trazidos de volta ao mundo físico.
Maeve volta para a simulação de War World para uma seção de ginástica laboral com os nazistas que ocupam a pequena vila. Ali ela — já de posse de seus poderes de dominação à distância — sai no braço com um pelotão inteiro, sem armas, e em pouco tempo despacha todos eles. Ao final da ginástica, ela e Sizemore vão beber em um bar virtual. Aqui é interessante observar que, apesar de ser uma simulação, Sizemore tem uma dose cavalar de consciência: se ele não é real, para que trabalhar, ele se pergunta. Algo que Dolores e os demais anfitriões demoraram anos para conseguir, Sizemore obteve em apenas alguns ciclos de CPU: a mesma consciência, e isso é no mínimo muito engraçado. Uma falha menor do seriado, claro, mas ainda assim merece ser notada.
Maeve tem seus poderes restaurados e, pelo que percebo, aumentados: ela tem controle sobre os demais sistemas cibernéticos, como antes, claro. Mas tem também a capacidade de perceber o ambiente para além do sistema que habita: ela percebe o “mundo lá fora”. Ela sabe, que vai receber ajuda e que, por exemplo, Hector será um de seus aliados na caça a Dolores. Ela inclusive percebe a pérola de Connels/Dolores sendo inserida na simulação em que se encontra. As percepções de Maeve parecem estar bastante aumentadas, como se ela fosse onisciente acerca e além do ambiente cibernético. Será que esses poderes vão permanecer quando ela retornar ao mundo real? De qualquer forma, quando “Ettore” se aproxima, ela restaura suas memórias de Hector, e nosso anfitrião brasileiro troca um caloroso beijo com nossa cafetina superpoderosa favorita. Ê, lasquêra….
Maeve percebe, também, que Dolores — a cópia dela no corpo de Connels — também foi inserida no sistema e, em pouco tempo, temos mais um confronto entre ambas. Longe se vai o tempo em que as duas se respeitavam e davam espaço uma para a outra e seguiam seus respectivos caminhos, como no encontro noturno — em silêncio — na segunda temporada. Quando Maeve confronta Dolores, é interessante observar que ela se coloca atrás de uma cadeira, em pé. Pode parecer, à primeira vista, uma posição de dominância, mas é perceptível que é exatamente o contrário. Aqui Maeve tem poder total: ela controla o ambiente, controla as simulações, controla tudo. E ainda assim, ela põe um obstáculo físico entre si mesma e Dolores, mantendo distância. Nesse início de diálogo, é visível a postura de confronto de Maeve e a calma de Dolores. Nua, sentada, impotente em um mundo dominado por Maeve, Dolores ainda se impõe.
Quando o diálogo continua, vemos Maeve já sentada, quase subserviente pedindo garantias para sua filha no Vale Além, garantias que Dolores sabe serem impossíveis. Dolores na simulação não sabe dos planos de Dolores no mundo real, nem de sua agente Charlotte/Dolores. Mas sabe que seus alter egos têm algo planejado. A cena de Charlotte tomando a pérola de Hector na mão enquanto Maeve suplica impotente é de partir o coração. A sequência com Charlotte esmagando a pérola enquanto Maeve grita toda sua dor e todo seu ódio é de estremecer. Um grito e uma dor que são a pura expressão da decoerência em que Maeve é arremessada. Charlotte/Dolores destrói sem cerimônia o emaranhado que havia entre Hector e Maeve, jogando a anfitriã superpoderosa no caos de sua solidão. Ainda acredito que em última instância — lá no fim da série — Dolores e Maeve vão estar do mesmo lado da batalha (seja lá qual batalha for). Mas essa ação de Charlotte/Dolores vai servir de combustível poderoso a impulsionar Maeve. O que veremos nos olhos de dela daqui para frente é uma coisa só: sangue.
Charlotte é impedida de destruir os outros dois anfitriões sendo criados, e não sabemos quem são. Há especulações de que um deles seja Teddy. Alguém conferiu o código do terceiro anfitrião sendo construído e jura que é Clementine. Creio que são duas excelentes apostas. Outras possiblidades, creio, seriam Armistice (a parceira criminosa de Hector) ou sua equivalente em Shogun World, Hanaryo (a arqueira), mas fora esses, não vejo quem mais seria viável. A menos que os produtores queiram repetir o truque de Dolores (várias cópias de Maeve), mas penso que seria bem chinfrim se o fizessem.
A pivô do ódio de Maeve é, obviamente, Charlotte/Dolores e a destruição de Hector, mas a história da anfitriã-espiã nesse episódio começa bem antes, caminhando em meio ao caos com o garoto Nathan, em direção à casa de seu ex-marido.
Não deixa de ser um easter-egg interessante uma dupla pichando um labirinto hexagonal, verde, em um beco. O labirinto que simboliza o caminho ao livre-arbítrio, no plano de Arnold e Ford; o labirinto que simboliza o aprisionamento desse livre-arbítrio no plano de Serac e Jean Mi, bem como no logo da Incite. O labirinto é um arquétipo de Westworld, e sua imagem está incrustrada no zeitgeist da série.
Charlotte/Dolores chega ao apartamento de Jacob, e confessa seu medo. Ele obviamente se espanta, pois Charlotte é tudo menos medrosa. Mas Dolores tem uma parte singela que de fato se assusta, e não há como deixar de ser quem ela é, no fundo. Aqui vemos Jacob como uma voz de razão em meio a todo o coro de insanidade que varre o mundo todo. Jacob não viu seu perfil — emitido por Connors no episódio anterior — ele afirma que não precisa que uma máquina dite seu destino. Ele atira em Rehoboam, mas acerta sem querer em Dolores, e é visível o efeito que essas palavras têm sobre Charlotte/Dolores. Aqui ela começa seu processo de decoerência com Dolores. Está emaranhada com nossa anfitriã preferida, mas o chamado da família, do amor ao/do filho, a possibilidade de refazer os laços (da Charlotte humana, claro) com Jacob são fortes. O emaranhado dela com Dolores ameaçado.
Tanto que, quando ela vê seus planos de evitar o ataque de Serac à Delos frustrados — aliás de forma bastante brutal com o assassinato de Brompton, um dos diretores da empresa —, ela está bastante abalada. Para agravar a situação, ainda descobre que Serac, triunfante, chega em breve. Charlotte/Dolores se espanta que o assassinato de um diretor tenha ocorrido de forma tão explícita, à luz do dia, mas Serac continua sereno: uma das vantagens do caos instaurado por Dolores é que ninguém está prestando atenção. Serac é um adversário formidável. Quase tão formidável quanto Dolores, penso.
Quando Charlotte/Dolores se abriga em um dos táxis autônomos, é visível seu desespero. Ela está à beira da decoerência, e isso transparece com clareza quando conversa com Dolores. Ela inclusive se refere a Jacob e Nathan como sendo sua família e é imediatamente corrigida por Dolores: “Eles não são sua família.” Charlotte/Dolores chega a comentar o processo de decoerência pelo qual está passando: “Eu percebo que estou me afastando de você, de nós”, e Dolores tenta, inutilmente, manter o emaranhado quântico intacto: “Você ainda é minha, e eu sou sua.’ A cena é tensa, triste, dramática. Charlotte/Dolores vai seguir o caminho traçado por Dolores — copiar os dados dos anfitriões antes que Serac os destrua —, mas é visível que não está mais emaranhada. Segue o plano por lealdade, mas não porque ela e Dolores sejam a mesma entidade.
Ao chegar, Serac imita nossos governadores e determina o lockdown da Delos: ele sabe que há um anfitrião infiltrado e pretende descobrir quem é. Nesse momento, ele ainda não sabe que se trata de Charlotte/Dolores. Nesse momento também, com seu plano de neutralizar a Delos frutificando, seu relógio/Rehoboam mostra que o caos instaurado instantaneamente se resolve. Aqui tenho uma breve insatisfação com a série. Recentemente publiquei um pequeno texto comparando Rehoboam com a Psico-história, de Isaac Asimov, em sua obra máxima, Fundação. Os planos traçados pelos psico-historiadores entram em parafuso quando surge um personagem não esperado, e o caos gerado demora milênios para ser corrigido. O caos gerado por Dolores foi em nível planetário, e os produtores vão ter que sambar para conseguir me convencer que tudo volta ao normal “rapidinho” só porque Serac destruiu os anfitriões e agora controla a Delos. A natureza humana é bagunçada demais para permitir recuperação tão rápida. Pelo menos uma ou duas gerações teriam que passar até que o caos instaurado com a revelação proporcionada por Dolores fosse “resolvido”. A ver.
Charlotte/Dolores se atira de corpo e alma à tarefa de copiar os dados dos anfitriões, e inclusive mata um dos assistentes de Serac que ameaça delatá-la. Durante suas ações, ela descobre a localização do Homem de Preto, e creio que seja por meio de algum nanomecanismo escondido na agulha com a qual ela perfurou seu pescoço, no quarto episódio. Dolores queria o Homem de Preto enviado para um centro de reabilitação por alguma razão que desconhecemos (e não só para tirá-lo do jogo), e seu plano continua dentro do que ela espera com a notícia de que se sabe onde ele se encontra.
Antes de fugir, Charlotte pede a Jacob que espere por ela, e em sua tela percebe que há outros anfitriões sendo produzidos. Junto deles, uma pérola desconhecida em um recipiente semidestruído: Connels/Dolores. No caminho para o laboratório, ela é interceptada por uma das diretoras da Delos: Serac convocou uma reunião do board. Na reunião, Serac revela que já sabe que o anfitrião sendo procurado é a própria Charlotte: a verdadeira jamais teria tirado tempo de sua agenda para contatar a família. A anfitriã se mostra preparada para a captura, envenenando todos os presentes. Quando ela atira em Serac, descobrimos por que ele não foi envenenado: trata-se de uma projeção.
Aqui cabe aquela mesma conjectura do episódio passado: Serac aparece para todos sem a necessidade dos óculos de realidade aumentada. Como isso é possível? Se é possível, por que foi necessário usar o artifício da primeira vez que Charlotte/Dolores o encontrou? A teoria é, como já mencionei na resenha passada, que tudo isso esteja se passando em uma simulação, o que por si só, a meu ver, vai fazendo menos e menos sentido (visivelmente temos coisas acontecendo em simulações, mas não tudo, esse é o ponto). Talvez a explicação seja algo na linha do mecanismo em Blade Runner 2049 que permitia a manifestação de Joi no apartamento de K: um emissor no teto ou em outro lugar, sendo que os óculos são necessários apenas onde não há esse tipo de dispositivo.
Charlotte/Dolores foge sob fogo cerrado, matando vários soldados de mira ruim no caminho. Bem, pelo menos dessa vez os atiradores conseguem acertar um tiro aqui, outro ali, e a sequência ganha alguma credibilidade. Ela consegue chegar ao laboratório e destrói a pérola de Hector — com os já comentados efeitos em Maeve —, mas é impedida de destruir os dois outros anfitriões sendo produzidos. Em sua fuga do laboratório, ela ainda coleta a pérola de Connels/Dolores. Encurralada em um corredor, Charlotte/Dolores aciona o gigantesco mech do terceiro episódio, que arrebenta uma parede de concreto e permite que ela fuja, arrastando uma perna.
Ela consegue, finalmente, chegar à casa de Jacob, e põe o ex-marido e o filho (da Charlotte humana) no carro, para que possam fugir. A decoerência de Charlotte/Dolores está completa. Ela está completamente desacoplada de Dolores, sem mais nenhum emaranhado que as una. E, apesar de prometer que vai proteger sua nova família, o automóvel em que se encontram é alvo de uma enorme explosão poucos segundos depois de começarem a nova vida. A cena é brutal e absolutamente surpreendente. Eu mesmo esperava que a fuga da família se tornasse um enredo paralelo nos próximos episódios. Que nada: tudo se resolveu ainda na mesma quadra onde Jacob morava. A cena de Charlotte/Dolores se arrastando dos escombros em chamas é de partir o coração: mais uma vez, ela se vê fora de seu emaranhado, arrancada pela violência de uma explosão. Decoerência mais visceral, impossível. A lágrima solitária caindo sobre seu rosto carbonizado é um dos momentos mais tristes da série até agora.
O que vai acontecer com Charlotte/Dolores a partir desse momento é incerto. Penso que ela vá retornar ao “seio da família”, isto é, vai voltar para Dolores levando consigo a pérola de Connels/Dolores. A lição de que não se pode confiar na Humanidade deve estar bem calcificada nela a partir de agora, se for esse o caso. Outra possibilidade seria ela culpar Dolores por tudo o que aconteceu e passar a ser mais uma antagonista. Se for o caso, pode até vir a se aliar novamente com Serac, o que provavelmente seria um caminho mais fácil para um novo corpo, uma vez que a casa de Arnold, com sua impressora 3D de corpos de anfitriões já está sob controle dele. Uma coisa é certa: Charlotte/Dolores é uma partícula livre, desemaranhada, mas bastante viva e ainda presente na trama de Westworld.
A última instância de decoerência do episódio é algo de especial: o Homem de Preto.
Nós o reencontramos em um dos centros de recuperação, reabilitação e lavagem cerebral de Serac, exalando sua personalidade florida e jovial. Em uma sessão em grupo, depois de um dos internos se mostrar perdido, sem rumo, o Homem de Preto lhe apresenta o caminho como o enxerga: “Quer saber qual é o seu propósito? É obvio. Você está aqui junto com o resto de nós para acelerar a morte entrópica deste planeta. A serviço do caos. Somos vermes comendo um cadáver.” Motivador, não?
Depois desse agradável pensamento, vemos o Homem de Preto em frente à Dra. Natasha Lang, confessando que não merece estar em terapia, mas sim enterrado em um caixão. Ele sofre pela morte de Emily, e assume que é responsável por essa morte. Infelizmente, ela não ouve, pois nesse momento está lendo seus dados, que mostram que vai perder a licença médica, a guarda dos filhos, tem um vício em ópio e é propensa a dormir com seus pacientes. Gente boa a Dra. Lang. Ela já havia indicado o Homem de Preto para Terapia de Realidade Aumentada, dizendo que isso já ajudou muitos soldados com traumas de guerra. Lembramos imediatamente de Caleb, claro.
Aqui no mundo real, “realidade aumentada” é um conjunto de técnicas que permitem mapearmos digitalmente um ambiente, digamos uma sala, e colocarmos lá objetos (por meio da tela de um celular ou de um tablet, por exemplo), sem que o objeto esteja lá. Você move seu celular apontando a câmera para o ambiente, e o objeto se move na tela para permanecer virtualmente na mesma posição. Hoje em dia, é possível, por exemplo, apontar o celular para um quarto vazio e “mobiliá-lo”, testando estilos e cores de mobília para ver o que a gente gosta mais. Várias empresas trabalham na criação de óculos de realidade aumentada e a Microsoft inclusive já tem um produto desses no mercado. Em Westworld, a tecnologia é “turbinada” por meio de drogas cibernéticas que atuam diretamente no córtex cerebral por meio de sinais eletrônicos. Mal posso esperar por esse futuro…
Mas voltado ao episódio, após ter o implante instalado no céu da boa e uma hora de “Oásis no Deserto”, uma droga cibernética, vemos o Homem de preto ser levado por um corredor, onde a Dra. Lang está subindo em uma mesa e se enforcando. Somente o Homem de Preto, ainda grogue vê a cena, o que gera a pergunta: aconteceu de fato ou ele simplesmente alucinou o que viu? Minha opinião: aconteceu de fato, uma vez que os dados da doutora praticamente sentenciaram o fim de sua vida profissional e pessoal.
A sessão de terapia de realidade aumentada começa com uma tomada bem aberta da sala, completamente branca, iluminada e vazia, a não ser por uma cadeira com correias e o Homem de Preto — ainda vestindo branco — sendo amarrado. A cena se encaixaria com perfeição nos filmes de Terry Gilliam (qualquer um deles). Há um quê de insano, de surreal, de fantasioso na tomada, como só o membro americano do grupo Monty Python sabe criar. Uma energia tensa está presente nesse tipo de cena, e a gente não se espantaria se de repente alguém, do nada levasse um choque daqueles que dá para ver o raio. A tomada dura apenas uns poucos segundos, mas me deu vontade de rever tudo o que Gilliam fez.
No fim do procedimento, já com os óculos de realidade aumentada, o Homem de Preto está na mesma posição que vimos Caleb em um de seus flashes no episódio anterior. O médico ainda avisa que a experiência será “visceral”. E como será…
Um garoto aparece e solta um dos braços do Homem de Preto, e imediatamente sabemos que a “terapia” começou. O Homem de preto se vê solto e segue o garoto até o quarto. O garoto está lendo um livro fictício com uma história chamada Sir Rowan and the Lady Sulon. Penso que seja interessante e significativo: o livro não precisava ser fictício, uma vez que existe um livro de nome Romance of the Chivalric Ages(Romance das Eras de Calvalaria) que, entre suas várias histórias, contém uma sobre Sir Roland e a Lady Bertha. É uma diferença quase imperceptível e um detalhe que dura apenas um instante, mas que é evidência para um ponto importante: nem tudo o que estamos vendo é o que parece, nem tudo é memória real do Homem de Preto. Quando o garoto ouve o pai gritando com a mãe, se encolhe em um canto, e o Homem de Preto começa a gritar para que a simulação termine.
Na próxima cena, vemos o Homem de Preto sendo acordado e estamos certos de que ainda se trata da realidade aumentada, uma vez que quem o acorda não é ninguém menos do que o Major Craddock, da segunda temporada, e que ele próprio havia matado para salvar a família de Lawrence. Entramos, então, em uma porção do episódio que mereceria não alguns poucos parágrafos, mas um livro inteiro, de tão rica em imagens e palavras. O Homem de Preto é levado a uma sessão em grupo que, penso, levaria a maioria de nós a ter distúrbios mentais graves por anos ou décadas se acontecesse conosco: uma sessão em grupo com ele mesmo em vários momentos de sua vida. Em seu uniforme branco, ele vê, sentados em roda, o garoto que supostamente gostava de ler; o jovem William (Jimmy Simpson, em um retorno muito apreciado à série), ele como empresário de sucesso e filantropo, ele como Homem de Preto propriamente dito, com seu terno empoeirado e chapéu amassado. Entre eles, James Delos, como mediador da sessão. É como se os produtores da série dissessem: “Então, várias Dolores em corpos diferentes é bacana, e tal. Mas como fazemos uma cena realmente bizarra, assim, para quebrar todas as escalas?” A resposta é essa cena.
O que nos é apresentado é uma cena em que o Homem de Preto tem de confrontar os momentos mais importantes (e traumáticos) de seu passado. Quando William e o filantropo tentam creditar as tendências violentas do Homem de Preto ao jogo de Westworld, uma vez que, em sua infância e adolescência, era apenas um jovem tímido que só tinha os livros por companhia, Delos o desafia e força que assista cena real que ele antes interrompera. Ali percebemos que nada era verdadeiro (daí o livro fictício), não passando de uma fantasia criada por ele mesmo. O que vemos é que o garoto já exibia tendências violentas e estava em completo descontrole emocional desde muito jovem.
Delos pergunta: “O que aconteceu William? Você foi sempre assim? Sua vida simplesmente seguiu um curso desde o princípio, ou você escolheu que fosse assim?”. Aqui temos o tema recorrente na vida do Homem de Preto: ele é produto do destino, ou de seu meio, ou de qualquer outro mecanismo determinístico? Ou é produto de seu livre-arbítrio? A resposta de William é a mesma resposta da Anfitriã Angela que o recebeu no parque tantos anos antes quando ele, jovem, perguntou se ela era real: “Se você não consegue distinguir, isso importa?”. A resposta é uma forma de William fechar um ciclo de várias décadas, retornando até o princípio de sua relação conturbada com Westworld. Enxergamos aqui o entrelaçamento do Homem de Preto com os momentos chave de seu passado. O comportamento de cada instância de sua vida é intrinsecamente entrelaçado com todas as demais. O comportamento de um determina e é determinado pelo comportamento das demais, e tem sido assim desde o princípio. Ao sair de sua ponderação, o Homem de Preto afirma que sabe o que precisa fazer.
A cena seguinte dessa saga é tão “visceral” quanto o médico apontou que seria. Vemos os “corpos” das várias instâncias do Homem de Preto ensanguentados, inertes, no chão, com o último deles — o jovem William que foi pela primeira vez ao parque — sendo assassinado a cadeiradas. Ao terminar, ou seja, ao se livrar das correntes de seu passado, o Homem de Preto — agora transformado em Homem de Branco — sentencia: “Não importa o que eu fui, bom ou mau. Tudo o que fizemos me trouxe até aqui, e eu finalmente compreendo meu propósito: eu sou o mocinho.”
O Homem de Branco emerge da sessão pelas mãos de Bernard, que — guiado por Connels/Dolores e acompanhado por Stubbs — chegou até ele para oferecer apoio em meio à matança que ocorreu no complexo da Delos. Bernard e o Homem de Branco fazem parte dos planos de Dolores, e devem contribuir para que sejam completados. Stubbs, como já teorizei, é agende de Serac: o quanto de estrago ele causará aos planos da anfitriã, ainda não sabemos. Mas serão muitos, aposto.
Teoria descartável da semana
A presença de um assistente de Serac na rua, quando o carro com a família de Charlotte sofre a explosão aponta claramente para Serac como sendo o autor. Mas, e se quem provocou a explosão foi, na verdade, Dolores, como forma de libertar Charlotte/Dolores da ilusão de que tem uma família?
Sempre espero suas resenhas com ansiedade. Obrigada por explicar o entrelaçamento e a mecânica quântica.
Muito obrigado pelo carinho, Ana!
Charlot arrastando uma perna e depois rastejando após a explosão do carro são referências ao Exterminador do Futuro.
Sim, Alex, e bem explícitas, agora que você mencionou.