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Homepage > Categorias > Ciência > O passado ensina
25/04/2019  |  By Ruy Flávio de Oliveira In Ciência, Educação

O passado ensina

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Entre os incontáveis acontecimentos ao longo da História da Humanidade, um período chama a atenção pela importância e pelo ineditismo: o local é o Califado Islâmico, cujo centro era a cidade de Bagdá; o período é o conjunto de três séculos entre os anos 800 d.C. e 1100 d.C., em que vários avanços científicos foram produzidos dentro do Islã.

Como exemplo de produtos científicos da época, podemos citar a álgebra, o desenvolvimento de algoritmos, a descoberta de uma quantidade absurda de novas estrelas e corpos estelares (até os dias de hoje, mais de 60% das estrelas conhecidas têm nomes arábicos em função disso), avanços na biologia e nas ciências médicas, avanços na filosofia, entre outros. Observando-se aquele período, não há como não identificar um dos chamados “períodos de ouro” da evolução do conhecimento humano.

O curioso é que esse período terminou abruptamente na virada do século XII para o século XIII, com apenas alguns raros exemplos de expoentes científicos islâmicos contribuindo para o conhecimento universal; após o ano 1100. Omar Khayyan — que nasceu em 1048 e viveu até 1131 é um dos poucos que produziu após o fim da era de ouro das ciências islâmicas, mas ainda assim pode-se argumentar que, tendo nascido antes da derrocada, é uma exceção.

Uma pergunta se faz inevitável: por que esse fim abrupto ao desenvolvimento científico vindo do Islã? O que ocorre na virada do século XII para o século XIII para justificar essa extinção de produtos científicos?

A resposta a essa pergunta está longe de ser um consenso e gera polêmica quando posta em discussão. Contudo, há um certo direcionamento dos estudiosos do período que atribui a responsabilidade a um único indivíduo e à sua contribuição para o Islã.

Esse indivíduo é o teólogo e filósofo persa Hamid al-Ghazali, que viveu entre os anos de 1058 e 1111. No Islã, al-Ghazali é considerado um expoente religioso, que ao fim de sua vida recebeu o título honorífico “Hujjat al-Islam”, que pode ser traduzido por “Prova do Islã”, um testamento à sua importância para aquela religião.

Tendo formação em teologia e em filosofia, al-Ghazali dedicou sua vida à fé islâmica, e seus dois principais trabalhos publicados, os livros “O Renascimento das Ciências Religiosas” e “A Incoerência dos Filósofos” são considerados textos fundamentais até os dias de hoje para os estudos islâmicos. Ocorre que nem todos os efeitos desses textos podem ser considerados positivos, nem para o Islã, nem para a Humanidade como um todo. Isso porque al-Ghazali argumenta — com bastante sucesso entre os teólogos islâmicos — que a Ciência deve sempre ser acessória ao Islã. O grande teólogo argumentou esse ponto de vista tanto pelo lado da religião quanto pelo lado da filosofia, chegando à conclusão de que o desenvolvimento científico deve sempre servir aos desígnios religiosos. O astrofísico Neil deGrasse-Tyson conta, quando fala sobre al-Ghazali, que o teólogo persa chegou a afirmar que a Matemática é um instrumento do diabo, o que é triste demais (por mais que minha amiga Vânia ache que quem já fez um curso de Cálculo vai ter a mesma opinião).

As opiniões de al-Ghazali, expressas em suas obras e em seus ensinamentos foram brutalmente efetivas: o grão-vizir de Bagdá, Nizam al-Mulk reformulou o sistema de ensino baseado nas ideias de al-Ghazali, criando o sistema alicerçado sobre o ensino religioso chamado “Nizamiyah”, atrelando o conteúdo lecionado à Sharia, a lei religiosa do Islã. A partir de então, qualquer conteúdo que não fosse de interesse direto da Sharia, seria excluído dos currículos, e o desenvolvimento científico deixou de ser de interesse do califado.

O resultado quem aponta é o próprio deGrasse-Tyson: apesar de contar com uma população de mais de 1 bilhão de habitantes no mundo, apenas dois cientistas islâmicos foram agraciados com o Prêmio Nobel. Comparem-se esses números com os pouco mais de 15 milhões de judeus que temos hoje em dia em nosso planeta, cuja cultura de apoio à Educação e à Ciência é responsável por cerca de 22,4% dos Prêmios Nobel, e podemos entender o tamanho da perda gerada pela mudança iniciada por al-Ghazali.

E por que é importante discutirmos esse assunto — algo que já se perde nas páginas da História — nos dias de hoje?

Por uma razão simples e perigosa: estamos cada vez mais relegando o pensamento científico a segundo plano, trocando nossa capacidade crítica e uma visão da realidade dos fatos, pelo “pensamento” dos gurus de plantão e de suas ideias absurdas, ou pelo que chamamos de “ideologia”, que não passa do conjunto de nossos preconceitos e mesquinharias.

Exemplos não faltam: dos despautérios de Donald Trump; passando pelo que seria certamente denunciado como farisaísmo por Jesus, mas ainda assim é propalado como cristianismo pelos líderes das “igrejas”; chegando até os gurus sem qualquer conhecimento acadêmico, mas que se creem “gênios”, indicando ministros ao mesmo tempo que são incapazes de evitar o baixo calão em seus discursos ou o vazio intelectual de suas ideias dogmáticas.

Essa troca sistemática da razão pela “revelação” tem alguma justificativa?

Mais ou menos. Vivemos um momento delicado na História da Humanidade, em que a complexidade do mundo à nossa volta muitas vezes nos deixa confusos, buscando alguma ferramenta que nos permita compreender melhor o nosso entorno. Nesse sentido, alguém que nos ofereça uma forma de simplificar as coisas, especialmente se esse alguém expressa que algo compatível com nossas ideias — por mais que essas deixem a desejar — é o “certo”, muitos de nós vão morder essa isca. A Ciência aponta para um universo imenso, com nossa galáxia — que apesar de enorme quando comparada a nosso mundinho é bem ínfima perante inúmeras formações estelares — na periferia dos grandes acontecimentos. Nosso sistema solar é um entre bilhões, nosso planeta é um “cisco”, e nós somos um aglomerado mais ou menos organizado de elementos químicos, 98% idênticos aos símios ainda peludos e balançando em árvores. Para a Ciência, o universo tem leis fixas e não depende de nós para continuar seu caminho, e muito menos gira em torno de nossas necessidades.

É fácil olhar para esse panorama e rejeitá-lo de imediato. É fácil buscar um quadro em que sejamos mais centrais, em que nossas ideias sejam reconhecidas, em que não possamos reduzir nosso entorno ao maniqueísmo do “certo” contra o “errado”, uma vez que nós certamente sabemos e fazemos o que é “certo”.

Não é de se admirar que esses sentimentos tenham tomado al-Ghazali no fim do século XI, e ele — um filósofo de grande capacidade intelectual, diferentemente dos astrólogos de plantão nos dias de hoje — criou a ideia de agrilhoar a Ciência à sua religião.

Um processo semelhante pode estar ocorrendo hoje, com os políticos salvadores da pátria que legitimam seus preconceitos e reforçam a falsa dicotomia do “nós” contra “eles”. Se “eles” pensam um milímetro diferente de mim, são comunistas, ladrões, safados querendo impor suas ideologias torpes. Políticos que assim agem simplificam o mundo à volta dos que lhes dão ouvidos, mas ao mesmo tempo impedem o diálogo, dificultam o convívio com a diversidade, empobrecem a sociedade.

Comportamento semelhante exibem os religiosos que se assemelham mais aos hipócritas denunciados por Jesus do que aos homens de bem em que ele queria nos transformar a todos. Religiosos que pregam o Céu como sendo vetado a todos, a não ser aos que pensam rigorosamente dentro de suas minguadas interpretações bíblicas, ao mesmo tempo em que enchem seus cofres e garantem que, se o porvir é uma promessa, a gorda conta no banco nos dias de hoje não os deixará passar vontade de nada.

Os gurus das redes sociais também se encaixam nessa dissipação do pensamento crítico. Apesar de a maioria não ter qualificação nenhuma, é notório o exemplo daquele que, apesar de não ter passado do quarto ano de grupo, passou décadas se aperfeiçoando na técnica de convencer os outros acerca de despautérios. “Você é assim ou assado porque, quando nasceu, o virabrequim de Júpiter estava alinhado com a rebimboca da parafuseta de Aquário.” Pior: defendem suas ignorâncias não porque acreditam nelas, mas sim para defender seus projetos de poder ou a monetização de seus canais no YouTube. E o que mais impressiona é que o mais proeminente desses “gurus”, ao mesmo tempo em que indica o Ministro da Educação, afirma no mesmo fôlego que o maior problema da Educação no Brasil é o professor, e que não tem uma resposta para a questão de se a Terra é plana ou esférica.

Todos eles: o político calhorda, o religioso hipócrita e o guru ignorante tomam para si, nos dias de hoje, o manto de al-Ghazali, buscando desviar nos do caminho da Educação, da Ciência, da Diversidade e do Pensamento Crítico em prol de um mundo mais simples, que para muitos de nós “faz mais sentido”.

Só que não. A História mostra, no exemplo de al-Ghazali e em inúmeras situações em que nossa civilização já se meteu, que, quando a razão dá lugar às baboseiras que a simplificação impõe, nós retrocedemos. O Islã deixou o caminho do desenvolvimento científico, e até hoje não recuperou seu espaço na liderança que um dia ocupou. Guerras incontáveis foram fomentadas “em nome de Deus”, contra inimigos fictícios de toda sorte. Políticos de ontem e de hoje, eleitos ou ocupantes de um trono qualquer, já se beneficiaram — e muito! — da ignorância com que alimentaram o povo, enviando os parvos para lutarem em seu lugar, enquanto enchiam suas burras.

Estamos à beira de cometermos essa sandice mais uma vez, dando-lhes ouvidos e substituindo nossa capacidade de pensar racionalmente pelos excrementos mentais que defecam pela boca. Muitos de nós juntamos essa imundície toda como se fosse um tesouro, sem nos darmos conta de que quem vai arcar com as consequências dolorosas somos nós mesmos e nossos descendentes.

O passado, na figura de al-Ghazali, ensina que todo cuidado é pouco no momento em que vivemos. Ensina que a Ciência busca descrever a realidade, e que uma opinião pessoal, adotada e emitida porque “eu tenho o direito a pensar como quiser” jamais vai ter o peso de um fato. Aliás, ensina também que minha ignorância acerca da Ciência não é justificativa para que eu rejeite o pensamento crítico. Não é porque eu prego o rótulo de “comunista” em alguém (ou, pior, que digo que o nazismo é um movimento de esquerda porque o partido nazista tinha “socialista” no nome) que isso passa a ser verdade. A única coisa que consigo quando tomo meus preconceitos por verdades absolutas é me fazer ridículo perante os que conhecem a realidade dos fatos.

O mundo inteiro, a bem da verdade, trilha esse caminho perigoso na direção oposta à razão, não sendo esse caminho um privilégio de nós brasileiros. Mas infelizmente, todo o empenho que nos tem faltado para transformarmos nossa nação em um lugar mais decente para todos nós, não nos falta na “verve” que exibimos em espalhar baboseiras a cada discurso que fazemos. Aqui os al-Ghazalis tupiniquins estão tendo um sucesso ímpar.

Que dó.

Que dó do mundo que, de bom grado, abraça a estupidez, e que dó do Brasil, que se transforma no alívio cômico global, mostrando para quem quiser ver que esse é um caminho bastante temerário.

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Comments: 6 replies added

  1. Elias Cardoso da Trindade 02/05/2019 Responder

    Excelente texto.

    • Ruy Flávio de Oliveira 02/05/2019 Responder

      Obrigado, Elias.

  2. Marlon 03/05/2019 Responder

    Ótimo texto! Apenas pondero que seria mais acessível a outros públicos se citasse erros semelhantes cometidos por governos de esquerda. Mas entendo que talvez tenha sida dada ênfase à situação atual do Brasil.

  3. Fábio Malaguti 04/05/2019 Responder

    Curioso é que você não citou o marxismo e a hegemonia cultural marxista, na figura de Paulo Freire, como o principal motivo da derrocada da educação brasileira dos últimos 30 anos. Também esqueceu de citar a invasão do Establishment científico, lugares como o CNPQ, e outros, por "panelinhas" de esquerda, aonde todos que não eram da "tchurma" eram combatidos e escurracados. A mudança que você está vendo acontecer, pode resultar em erros e acertos. Mas, certamente, vai dar fim ao nefasto marxismo na cultura brasileira.

  4. Neto 05/05/2019 Responder

    Repito o que Fábio falou. O sr buscou um fato indiscutível (decadência científica do islan ) tentando atrelar a um governo recém eleito. Não citou a corrupção; a "ideólogizacao";a decadência econômica; desemprego. O emburreci mento dos alunos atuais, esse sim, é pra se comparar com a derrocada científica do islan.

  5. Neto 05/05/2019 Responder

    https://youtu.be/OGeUqKK0v54

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