O filósofo norte-Americano Bernard Cohen conta, em seu artigo O Recém-Nascido de Franklin e Faraday, que ambos os cientistas (no caso, Benjamin Franklin e Michael Faraday) usaram a imagem do recém-nascido para mostrar o quanto é inapropriado perguntar a utilidade de algum conhecimento novo. No caso de Faraday, Cohen relata a história (apócrifa) de que, durante a exibição de algumas de suas descobertas acerca do magnetismo, Faraday foi questionado por uma senhora acerca da utilidade prática daquelas equações e leis. Faraday teria respondido essa pergunta com outra: “Minha senhora, qual a utilidade de um recém-nascido?”
É importante a pergunta de Faraday, uma vez que o conhecimento, quando surge, no mais das vezes não vai ter utilidade prática nenhuma. E, de fato, as equações e leis de Faraday acerca do magnetismo não passavam de mera curiosidade científica no século XIX. Contudo, hoje em dia é importante observar que todos os motores eletromagnéticos que nos cercam só existem porque sua construção foi possibilitada pelas descobertas de Faraday. Motores de partida, ventiladores, esmeris, máquinas de lavar roupa, geladeiras, liquidificadores, vidros elétricos de automóveis, travas, limpadores de para-brisa, portões eletrônicos, alto-falantes, acionadores de DVD, e uma miríade de outros dispositivos que efetivamente definem a vida contemporânea só existem por conta daquelas “curiosidades” de Faraday. Nada mal para um conhecimento inútil, não?
Em tempo: Faraday estava apenas repetindo a frase de Benjamin Franklin que, em 1783, assistiu na França o primeiro voo de balão. Questionado sobre a utilidade da geringonça voadora, respondeu com a pergunta sobre o recém-nascido. Novamente: a “geringonça” deu início prático ao sonho de voar, que podemos acusar de muita coisa, menos de não ter utilidade nos dias de hoje.
Pois é. Mas, ao invés de aprendermos com a visitante da exposição de Faraday, ou com o curioso da demonstração do balão, ainda temos essa mania de olhar para algum conhecimento novo e questionar sua utilidade. Recentemente tive a oportunidade de testemunhar mais uma vez esse fenômeno, dessa vez protagonizado por duas pessoas que respeito muito: o comediante e apresentador Bill Maher, e o astrofísico Neil DeGrasse Tyson.
Em seu programa de 19 de maio, Maher recebeu Tyson como convidado, e os dois discutiram seu novo livro, Astrofísica para pessoas com pressa (tradução livre). No livro, entre vários assuntos tratados, Tyson discute a matéria escura e a energia escura, o mistério mais duradouro da ciência nos dias de hoje. Em linhas gerais, o problema é o seguinte: tudo aquilo que conhecemos do Universo contribui com apenas 5% da massa e da força gravitacional que podem ser mensuradas. 95% do Universo, em outras palavras, pode ser percebido, mas não pode ser visto. Não sabemos onde está, por exemplo, a fonte de tanta força gravitacional, mas o fato é que a força está lá. Daí os nomes: matéria escura e energia escura. Um mistério e tanto.
Aí, ao invés de contemplar a beleza do mistério em si — essa matéria escura está à nossa volta, e não em um lugar distante daqui, como é que não conseguimos percebê-la a não ser por seus efeitos? — Maher lança a fatídica pergunta: “OK, mas em que a solução desse mistério vai ajudar em nossa vida, aqui e agora?”
Benzadeus…
Ainda assim Tyson não se fez de rogado, e respondeu de forma brilhante: “Puxa, fico feliz que você tenha feito uma pergunta que posso responder com bastante certeza: eu não faço a menor ideia!”
Diante da cara estupefata de Maher, Tyson continuou, explicando que essa é a natureza do conhecimento novo: ninguém pode prever como esse conhecimento será utilizado. Tyson usou, como analogia, o átomo. Meros cem anos atrás, não sabíamos como era o átomo, como era composto, e quais suas propriedades. O modelo de Niels Bohr era complexo, e não tinha utilidade absolutamente nenhuma. Mesmo assim, os estudos continuaram. Algumas décadas depois, alicerçando-se sobre as propriedades quânticas do átomo, desenvolveu-se o transístor, além de toda a eletrônica e a informática a nos cercar hoje que dependem dessas propriedades.
O que todas essas histórias nos gritam: que é preciso ser antes de servir. A existência precede a utilidade, sempre. Mais: o utilitarismo e o imediatismo que brandimos como armas nos dias de hoje são perigosos empecilhos do progresso.
Até mesmo jornadas que, à primeira vista, são inúteis têm o potencial de melhorar muito nossas vidas. Hoje em dia, temos o velcro, o insulamento térmico e uma variedade riquíssima de plásticos — a começar por nylons de altíssima qualidade e resistência — só estão à nossa disposição, porque um dia soviéticos e americanos se dispuseram a explorar o espaço.
Aliás, com relação à exploração espacial, Maher e Tyson trouxeram outro exemplo importante. Maher questiona a validade da exploração de Marte — assunto de meu artigo Marte, aqui no Confrariando —, e Tyson mais uma vez ensina: as técnicas que deverão ser desenvolvidas para se tornar Marte habitável serão muito úteis para recuperar o meio ambiente aqui mesmo na Terra. Ou seja: questionar a utilidade de uma empreitada por antecedência pode ser um erro grave.
Conhecimento é o que nos move, o que permite o progresso de nossa Civilização. No mais das vezes, aquela pesquisa que nos parece inútil — ou mesmo nociva — pode nos salvar a vida. Por exemplo, não sou defensor da crueldade gratuita contra animais, mas quando vejo um medicamento salvador ou um procedimento cirúrgico revolucionário, sou grato pelas pesquisas feitas com animais. O assunto é controverso, eu sei, mas pense: 100% dos medicamentos que temos à nossa disposição nos dias de hoje dependem de testes realizados em animais antes de chegarem até nós. Será que quem é contra os testes em animais toparia viver sem medicamentos e procedimentos cirúrgicos modernos? A cirurgia da revascularização cardíaca, por exemplo, só existe porque antes foi aperfeiçoada por Blalock e Thomas em cachorros, na década de 1940. E mais: essa técnica cirúrgica deu origem a várias outras, como a cirurgia de ponte de safena. Estaríamos dispostos a sacrificar a vida de milhões de pacientes cardíacos para não experimentarmos em animais? Sim, muitos desses pacientes poderiam, de fato, evitar a necessidade de cirurgia cardíaca se cuidassem melhor de sua saúde, de sua alimentação, e se parassem de fumar. No entanto, há muitos casos congênitos, que nada têm a ver com alimentação ou tabagismo.
Não, o conhecimento, mesmo que não lhe enxerguemos a utilidade de imediato, jamais será inútil. Primeiro, porque não conseguimos prever o futuro, ou como outros pesquisadores vão imaginar usar esse conhecimento. Segundo, porque, no mínimo, o conhecimento “inútil” aumenta nossa chance de descobrir o próximo passo, que pode ser revolucionário. A postura diante desse tipo de saber deveria ser a mesma da mãe diante do recém-nascido: uma mãe nunca pergunta para que seu filho vai servir. Ao invés disso, ela sonha com um futuro brilhante para ele, confiando que esse futuro se concretizará.
Olhe para a História. Passe algumas horas observando como são usadas, nos dias de hoje, as descobertas “inúteis” de épocas passadas. Você vai se surpreender, aposto, em saber que quase tudo o que temos de prático à nossa disposição hoje fez alguém torcer o nariz no passado, por se perder tempo com aquela “bobagem”.
Comments: no replies