O comediante americano Groucho Marx tem uma frase que une o melhor do humor e da filosofia. Em tradução livre:
“Não sou apaixonado pela realidade, mas ainda é o único lugar onde se consegue uma refeição decente.”
Sim, podemos sonhar com mundos fantásticos, inventar histórias e sistemas de pensamento que nos maravilham e nos deixam ávidos por visitá-los. Mas no fim das contas, se quisermos sobreviver, não há alternativa: o universo real nos chama de volta e demanda que vivamos não em nossos desejos, mas na realidade.
Não que a realidade — especialmente nossa realidade pessoal — seja impermeável aos nossos desejos. Podemos, sim, trabalhar para modificar a situação em que estamos. Contudo, o ponto é que só podemos fazer isso dentro das estritas leis que a realidade nos impõe. Qualquer tentativa de ultrapassar esses limites nos leva ao campo do devaneio, da imaginação, ou — em casos mais extremos — da alucinação.
Infelizmente, esses casos mais extremos são confundidos com a realidade e muitos são os que decidem viver e — pior — imputar em seus semelhantes esses devaneios. Isso é atraso puro, e atraso que causa dano.
Há alguns casos em nosso mundo contemporâneo que são particularmente prejudiciais. Situações em que o devaneio tenta se sobrepor à realidade dos fatos, prejudicando o próprio indivíduo e a própria sociedade em que vive. São situações em que se joga fora a Ciência, os fatos estabelecidos e as leis da natureza, adotando-se a crendice, a parcialidade ideológica e o que passa por “tradição”. Sempre em detrimento da realidade, sempre em detrimento da “refeição decente” de Groucho Marx.
Vamos observar alguns desses pontos de devaneio a que me refiro.
O primeiro deles foi tratado em meu texto recente sobre o Aquecimento Global. É impressionante como um assunto que deveria ser tratado de forma científica ainda é tão dominado pela ignorância, pela crendice, pelo interesse econômico, e pela ideologia. Muita gente ainda escolhe deliberadamente uma dessas tristes “lentes” por meio das quais analisar esse assunto, como já mencionei. Lentes da crendice, da ignorância ou da ideologia, onde não cabe nenhuma delas. Atraso, puro atraso.
As ideias irreais não se limitam aos negacionistas do Aquecimento Global, claro. Várias outras ideias estapafúrdias encontram guarida entre aqueles que estão dispostos a negar a Ciência e a realidade dos fatos.
Uma dessas ideias fantasiosas que mais prejudica o avanço científico é o criacionismo. Esta crendice é propalada pelos fundamentalistas religiosos há séculos, e por mais que fosse dominante na ausência da pesquisa científica e do domínio da igreja que vivemos até 500 anos atrás, hoje em dia não deveria ter mais guarida na sociedade civilizada. Pior: é uma ideia tão potente que ainda domina boa parte da população, seja por ignorância ou por ideologia religiosa.
A ideia é tão torta que tenta agregar duas áreas da ciência: a Astrofísica e a Biologia em um mesmo saco. O criacionismo propala, ao mesmo tempo, que o universo e a Terra têm pouco mais de cinco mil anos de existência e que a fauna e a flora que temos no planeta nos dias de hoje é resultado do chamado “dilúvio” e dos esforços de Noé. Dinossauros? Conviviam com o ser humano até o dilúvio, e por não caberem na Arca de Noé, foram extintos. Como pode, em 2017, ainda perdermos tempo com tamanho atraso?
Essa ideia não tem qualquer guarida na realidade, uma vez que há amplo conjunto de evidências de que (a) o universo tem quase 14 bilhões de anos; (b) a Terra tem 4,5 bilhões de anos (c) o fenômeno que rege a vida na Terra é a Evolução das Espécies, que nos mostra que entre o desaparecimento dos dinossauros e o surgimento dos seres humanos há um “pequeno” hiato de mais de 60 milhões de anos.
Um dos argumentos em prol do criacionismo, aliás, concerne a Teoria da Evolução das Espécies, proposta por Charles Darwin em 1859. O argumento é o seguinte: a Evolução das espécies é só uma teoria, e não uma lei indisputável, e sendo apenas uma teoria, deveria ser discutido como tal e admitir que outras teorias tivessem o mesmo peso em sala da aula. O problema é que quem defende esse argumento confunde “teoria” com “hipótese”. Deveriam entender que hipótese é uma proposição que se admite temporariamente, antes da comprovação de sua veracidade, para fins de experimentação. Enquanto teoria é um corpo amplo e coeso de conhecimento sistematizado, comprovado experimentalmente. Em suma, são só “teoria” e “hipótese” não são termos compatíveis, como são praticamente opostos. Quando falamos da Teoria da Relatividade, por exemplo, estamos falando do conjunto de leis da física que explicam com perfeição a mecânica dos corpos, e para as quais há ampla comprovação experimental. A Teoria da Relatividade não é uma hipótese: é a realidade cientificamente comprovada. É fato.
O mesmo se dá com a Teoria da Evolução: a observação dos registros fósseis e da natureza e mesmo dos fenômenos de especiação que vemos em curso nos dias de hoje, demonstram com clareza que o mecanismo de evolução das espécies é uma realidade para além de qualquer discussão. Não cabe aqui juízo de valores, não cabe ideologia, não cabem convicções religiosas. É fato.
Recentemente, tenho observado o crescimento de uma ideia estapafúrdia que chega a me dar dor de dente de tão absurda: o movimento da “Terra Plana”. Sim, quase 2200 anos depois de Eratóstenes, mais de 500 anos depois de Cristóvão Colombo, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, quase 60 anos depois de Yuri Gagarin ter completado seu voo orbital em volta da Terra, ainda tem gente que acredita que a Terra é plana, e não esférica.
A ideia é tão estúpida que há quem desconfie que tenha sido iniciada como uma “trollagem”, saindo do controle dos brincalhões originais e ganhado impulsão própria. É uma hipótese interessante, e a se levar em conta a ignorância que grassa pelo mundo a fora. É uma ideia tão estúpida que não merece nem que seja discutida. O assunto deveria simplesmente ser ignorado, pois é a única maneira de se deter um troll: deixando-o morrer à míngua daquilo que ele mais deseja: atenção para suas ações cujo único propósito é aporrinhar os desavisados. Seja fruto de ignorância ou de trollagem, é puro atraso.
Uma crendice que ganhou tração nos últimos anos e que, apesar das inúmeras evidências em contrário, teima em não morrer é o absurdo movimento antivacinação.
A falsa controvérsia sobre as vacinas, na verdade, é antiga e sempre teve gente contra a vacinação, mesmo diante das enormes evidências dos benefícios para a saúde pública. Mais recentemente, o monstro da antivacinação colocou sua cara feia para fora da toca em função de um artigo fraudulento e amplamente refutado do ex-médico inglês Andrew Wakefield, publicado na revista The Lancet em 1998. Wakefield perdeu sua licença após a descoberta da fraude pelo artigo, que ligava a vacina tríplice viral (contra o sarampo, a caxumba e a rubéola) à incidência do autismo. Nunca é demais repetir: vacinas não causam autismo e todas as evidências suportam essa afirmação. Vou repetir: não há ligação nenhuma entre vacinas e incidência de autismo.
Apesar de inúmeras pesquisas, desde então terem demonstrado para além de qualquer dúvida que o artigo de Wakefield não tinha qualquer validade científica, o estrago já estava feito. A atriz americana Jenny McCarthy, alicerçada no falso estudo de Wakefield, passou a liderar um movimento antivacinação que vem se espalhando pelo mundo inteiro. Em quase duas décadas, desde que o artigo de Wakefield foi publicado e desbancado, já são milhões de pais e mães no mundo inteiro que, ou não vacinam seus filhos, ou buscam calendários “alternativos” de vacinação, apesar de não haver alternativa que funcione tão bem quanto o calendário já estabelecido. É a crendice e o “achismo” se sobrepondo à ciência.
O resultado é que nos últimos anos já vemos o retorno de epidemias antes amplamente controladas: coqueluche, catapora, caxumba e sarampo são doenças que voltaram ao radar da Organização Mundial de saúde, causando preocupação no mundo todo. Mas o caso mais triste é o da poliomielite. Há poucos anos estávamos à beira da erradicação dessa triste doença, que rouba a mobilidade de crianças e provoca sequelas que duram a vida toda. Hoje em dia, a maior preocupação da Organização Mundial de Saúde é que o movimento antivacina pode provocar a volta da poliomielite, uma vez que muitos casais estão questionando a validade de vacinarem seus filhos contra essa doença. Quer mais atraso que isso?
Todos esses casos e vários outros que encontramos ao nosso redor são fruto de uma desconexão com o pensamento racional, com os fatos, com a Ciência. Seja por ignorância, por ideologia ou por motivos ulteriores, quando nos entregamos a alguma dessas sandices, estamos nos afastando da terra segura onde conseguimos nos alimentar: a realidade. E a menos que seja nas páginas de um livro ou numa poltrona assistindo algum filme ou alguma série, esse afastamento da realidade é prejudicial e certamente trará resultados negativos às nossas vidas.
Negar o Aquecimento Global nos leva a continuar a destruição do planeta e a nos aproximar perigosamente de nossa própria extinção; negar as teorias astrofísicas que demonstram a idade do universo ou a Teoria da Evolução de Darwin, que mostra claramente como a vida evolui, nos leva ao fundamentalismo e à ignorância; negar que a Terra é redonda nos torna absolutamente ridículos; negar o valor e a necessidade das vacinas, como mostra a medicina, nos leva de volta ao convívio com doenças que já poderiam estar sendo erradicadas.
Não, não precisamos desses atrasos. Já passou da hora de darmos um basta nesse tipo de pensamento tacanho.
Claro, se somos honestos — como demanda o pensamento racional e científico, aliás —, devemos aceitar que a Ciência não tem todas as respostas. Há falhas no conhecimento científico e o que sabemos hoje pode ser retificado amanhã. Mas, antes que o sorriso de “arrá!” se forme no canto da boca de alguns: em todos os casos discutidos acima, todas as inúmeras pesquisas só fazem confirmar o que já se sabe. Novas pesquisas não vão desbancar o Aquecimento Global e não vão tirar o ser humano do centro das causas; novas pesquisas não vão dizer que a Terra tem cinco milênios ou que os dinossauros foram extintos porque não cabiam na Arca de Noé; novas pesquisas não vão mostrar que a Terra é plana; novas pesquisas não vão ligar as vacinas ao autismo nem sugerir outro calendário. Da mesma forma que novas pesquisas não vão achar outro valor para a velocidade da luz, outro valor para o número Pi, ou colocar a Terra no centro do universo. As falhas no conhecimento humano, nas pesquisas científicas existem, mas não vão mudar a realidade dos fatos.
Outra: por mais falhas que o conhecimento científico abrigue nos dias de hoje, somos beneficiados imensamente por esse conhecimento. Nossas casas são iluminadas e energizadas; temos conforto, temos comunicação instantânea com o mundo todo; temos tratamentos médicos e medicamentos que nos permitem uma vida longa, produtiva e saudável, e por aí vai. Aliás, um dado interessante que ajuda a colocar em perspectiva esse o quanto nos beneficiamos dos avanços científicos: nos dias de hoje, o mais pobre entre nós tem acesso a melhores recursos de saúde que o mais rico dos habitantes do planeta tinha um século atrás. Jogar fora a Ciência porque há falhas no conhecimento, ao mesmo tempo que nos beneficiamos de seus resultados não é nada menos que hipocrisia.
No fim das contas, admitir que haja falhas no conhecimento científico não nos autoriza — se quisermos continuar nos considerando seres racionais — a jogar fora o conhecimento científico existente, trocando-o por crendices, achismos ou “explicações alternativas”. Crendice? Deve passar pelo rigor do experimento, e aí passa a ser conhecimento formal. Achismo? Onde pode ser observado? É passível de experimentação? Quando passar pelo método científico, passa a ser conhecimento. “Explicações alternativas”? Valem para todas as situações? Explicam todo o fenômeno? São passíveis de experimentação? Se não são, não passam de balela, e não deveriam substituir a busca sistematizada, formal e desinteressada pela realidade dos fatos.
Dizer “não acredito nessa explicação científica mesmo que seja amplamente aceita e, ao invés, acho que é assim” é absurdo. Também é absurdo dizer “a Ciência é falha em vários pontos, portanto não acredito nessa outra explicação científica mesmo que seja amplamente aceita no momento e, ao invés, acho que é assim”. Tais afirmações precisam mais do que de nossa crença: carecem de evidências reais para serem aceitas.
“Fulano disse”, “todo mundo faz assim desde que o mundo é mundo”, “é assim que eu interpreto o que está escrito no livro sagrado de tal religião” e outras afirmações desse calibre não são substitutos adequados para a realidade, para resultados de pesquisas, para fatos comprovados. Mais que isso: é puro atraso.
Já passou — e muito! — da hora de nos livrarmos desse atraso.
Fala Ruy! Rapaz, eu concordo contigo em tudo que escreveste. Não por achar que vc está com a verdade, mas pelos bons argumentos e conclusões que eu mesmo posso tirar deles. No entanto, o que são argumentos para quem acredita fiamente em outra hipótese? :)
A sua pergunta é crucial, Jaylei, e a resposta,a meu ver é "depende". Bons argumentos valem alguma coisa para quem é racional, isto é, para quem coloca a razão sobre as convicções pessoais. Valem bem menos para quem inverte esses valores. Esses vão ler meio parágrafo desse texto e vão desistir. Mas se em meio a 500 tiver unzinho que pense racionalmente, já terá valido. E se não tiver, também terá. Abração e obrigado mais uma vez pelo carinho!
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