No dia 16 de janeiro morreu, aos 82 anos de idade, Gene Cernan, o último astronauta a caminhar sobre a superfície lunar, em dezembro de 1972. Nesses quase 45 anos, nenhum ser humano chegou nem próximo de visitar a Lua, e o próprio Cernan não cansou de expressar seu desapontamento com a falta de progresso nos programas de exploração espacial, tanto nos EUA quanto em outros países do mundo.
Desde 1972, os programas espaciais têm se concentrado em cargas não vivas (satélites) e, quando humanos fazem parte da “bagagem”, em voos orbitais, apenas algumas centenas de quilômetros acima da superfície da Terra. “Estou um pouco desapontado conosco, no presente, sabendo que não caminhamos quase nada desde então”, disse Cernan recentemente, referindo-se ao fim das viagens à Lua e à exploração espacial para além dos voos orbitais.
É importante ressaltar que, sim, programas espaciais custam caro, e que, sim, temos enormes problemas a resolver em nosso próprio planeta. Contudo, penso que seria um erro o pensamento utilitário de que os recursos investidos em programas espaciais seriam postos a melhor uso, digamos, em programas sociais de diversas naturezas. A exploração espacial ao mesmo tempo traz benefícios enormes para a Humanidade como um todo, e é parte indissociável do que somos: está em nossa natureza.
Desde os primórdios de nossa espécie as primeiras comunidades humanas passaram a explorar seus arredores. Expandimos nosso território e, em última instância, migramos para outras localidades, e ocupamos praticamente todas as latitudes onde há terra (mesmo onde é bastante escassa) em nosso planeta. O poeta Fernando Pessoa foi quem melhor definiu essa característica da Natureza Humana nos versos iniciais de seu belíssimo poema “Palavras de Pórtico”:
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso.”
Essa é a tônica que move a Humanidade: a necessidade de explorar, de conhecer, de descobrir. Todo o progresso científico e tecnológico que fomos capazes de produzir até agora (e que seremos capazes de produzir no futuro) advém da necessidade de explorar. Esse espaço é pequeno demais para conter, por exemplo, as descobertas científicas e as tecnologias que hoje estão à nossa disposição em função do programa espacial americano.
Mas será que estamos, assim tão “encalhados” desde o início da década de 1970, como se lamentava Cernan?
Nem tanto. Se os governos têm sido modestos em seus investimentos na exploração espacial, a iniciativa privada tem feito esforços importantes nessa área, e é dela que certamente virão resultados importantes nas próximas décadas. Não voltamos à Lua ainda, mas estamos progredindo.
A empresa Space X, por exemplo, está adiantada em seus testes de foguetes reutilizáveis, e tem um alvo bem mais ambicioso que a Lua: Marte. O CEO da empresa, Elon Musk, tem planos explícitos não somente de chegar até o planeta vermelho, mas de colonizá-lo, tornando-o habitável para seres humanos. Em função disso, Musk investe boa parte de sua fortuna — amealhada com a venda do PayPal, o meio eletrônico de pagamento que, no início da década passada, possibilitou a popularização do comércio na Internet — nos projetos da Space X, da Tesla, sua empresa fabricante de automóveis, e da SolarCity, sua empresa de tecnologias de energia solar.
O propósito de Musk para colonizar Marte é simples: salvar a Humanidade. O empreendedor crê que nossa espécie tem dois destinos possíveis: podemos nos limitar à Terra e aguardar a extinção; ou podemos nos lançar ao espaço, colonizar outros planetas e assim assegurar que sobreviveremos a longo prazo. Musk insiste que não tem nenhuma profecia de destruição em mente, mas apenas o bom-senso: eventos que causaram extinções globais já ocorreram pelo menos 25 vezes na história de nosso planeta (nos últimos 2,4 bilhões de anos), e nada indica que um fenômeno dessa natureza não possa ocorrer novamente. A colonização de Marte seria, portanto, um primeiro e importante passo para a expansão de nossa espécie pela Via Láctea, garantindo nossa sobrevivência.
O interessante nas ações de Musk é o senso de urgência. Para Musk, estamos em uma “janela” de desenvolvimento social e tecnológico que, no momento, nos permite atingir o objetivo de colonizar Marte. No entanto, essa janela é finita, segundo ele, e devemos aproveitá-la enquanto está à nossa disposição. Quando olhamos para a História, percebemos rapidamente que Musk tem razão: em vários momentos do desenvolvimento humano, vivemos situações de retrocesso social e tecnológico, estancando e mesmo atrasando o progresso. Os períodos posteriores às grandes guerras, por exemplo, nos arremetem a anos — ou décadas — de dificuldades e reconstruções. Após o fim das Guerras Napoleônicas, para citar um caso clássico, a Europa passou décadas reconstruindo o que a sanha imperial do general corso destruiu.
Talvez o evento mais significativo nesse sentido tenha sido a Queda de Roma. O desenvolvimento social (para os poucos que podiam aproveitá-lo) e tecnológico criados pelo Império Romano foram perdidos após as invasões bárbaras do século V, e passamos um milênio chafurdando na lama da Idade Média, no Ocidente. Apenas na Renascença, dez séculos mais tarde, passamos a retomar a marcha do desenvolvimento científico e tecnológico, e — argumenta-se — apenas dois séculos depois, durante o Iluminismo, chegamos ao ponto em que fomos interrompidos pela queda da Civilização Romana.
E não precisa ser um evento cataclísmico, como no caso de um meteoro, ou de uma explosão solar para fechar a janela a que se refere Musk: uma crise mundial em função dos efeitos do aquecimento global já seria suficiente para arremessar a Humanidade em uma “Idade Média 2.0” durante alguns séculos. Ou seja, Musk está certo em sua pressa.
Agora, será que o empreendedor não teria a obrigação moral de investir seus recursos para melhorar a Humanidade do presente, ao invés de se preocupar tanto com a Humanidade do futuro? Afinal de contas, pode parecer “escapismo” esse projeto todo de colonizar outro planeta. Alguns críticos argumentam que esse projeto equivale a emporcalhar uma casa e, ao invés de limpá-la, decidir mudar para outra. Pode até ser, mas não é o caso de Elon Musk.
Antes de investir na Space X, Musk criou a Tesla e a SolarCity. A primeira empresa desenvolve carros elétricos open source, isto é: as patentes e os planos para se construir um Tesla são públicos, e qualquer um que quiser pode utilizá-los. Os carros da Tesla são movidos exclusivamente a energia elétrica, sem utilizar combustíveis fósseis e, portanto, não contribuem para o aquecimento global. A SolarCity se dedica a pesquisar e produzir baterias e tecnologias solares de alta capacidade e alto desempenho para uso doméstico e industrial. No livro Clean Disruption of Energy and Transportation, o pesquisador de Stanford, Tony Seba, argumenta que a combinação das tecnologias solares da SolarCity com os carros elétricos da Tesla levará ao fim do uso de combustíveis fósseis até o ano de 2030. O fim do uso de combustíveis fósseis tende a resolver uma miríade de problemas sociais, tais como as questões de saúde resultantes da poluição, e a própria poluição em si. É ou não é uma contribuição social para lá de substantiva? Pois é. Oxalá todo milionário com mania de grandeza que pensa em projetos mirabolantes de exploração espacial, antes de fazê-lo, colaborassem para a solução de problemas imediatos como faz Elon Musk.
A colonização de Marte pode ser uma realidade distante de 99,999% dos habitantes de nosso planeta, mas é, sim, um esforço válido, um objetivo útil a ser perseguido por nossa espécie.
Que bom que temos um Elon Musk entre nós, com coragem e determinação suficientes para ir atrás desse sonho.
Adorei o artigo! É isso mesmo, o espaço e sua exploração são intensamente inspiradores para humanidade. Sinto pena da cegueira de muitos... não conseguem enxergar a dimensão dos impactos desses investimentos, que não são presos numa linha de tempo e espaço restrita e imediata.
Obrigado, Marcia, pelas palavras carinhosas. Ontem vimos o filme "Estrelas Além do Tempo" ("Hidden Figures", 2016), sobre a participação de mulheres afro-descendentes no programa espacial americano. É impressionante como aquele momento na História impulsionou o desenvolvimento não só da tecnologia, mas também o crescimento pessoal dos envolvidos (aqueles que quiseram aproveitar a oportunidade, claro). Programas dessa natureza são belíssimas chances para que todos ganhem, e é isso que o Elon Musk busca. Uma excelente semana para você!
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