Quem conhece alguma coisa de História e olha para trás — bem para trás — e observa o Império Romano enxerga dois universos: um brutalmente diferente do que vivemos hoje, e outro absurdamente semelhante. Curiosamente esses dois universos são os mesmos. Muda o verniz: as línguas, a geografia, os meios de produção, as relações políticas, os personagens, a tecnologia, e quase tudo mais. Muda até aquilo que por fora parece imutável: a Igreja Católica, que lá naqueles tempos saía da clandestinidade para ocupar um enorme poder com a verve dos movimentos ainda jovens e entusiasmados. Hoje, dois milênios depois, é a senhora “comedida” que conhecemos, sutilmente escondendo as manchas de sangue à sua volta com um crucifixo aqui, uma hóstia ali.
Mas por outro lado, mantêm-se as mesmas as correntes que fluíam e faziam fluir a velha cidade-estado: o poder é a sede maior e continua gerando o imperialismo e a sede de conquista; o nacionalismo e o excepcionalismo ainda reinam quase unânimes nos corações daqueles que já se esqueceram de que foram seus antepassados que construíram aquilo de que hoje são apenas herdeiros, nada mais; o ideal de amor, fraternidade e a Regra de Ouro pregados e vividos por Sidarta e, posteriormente, por Jesus,ainda é visto quase como loucura por parte daqueles que entendem que “o que vale mesmo” é a lei do mais forte, como nunca deixou de ser.
Noves fora, olhar para Roma e dizer “puxa, como mudamos de lá para cá!” é uma demonstração de ingenuidade, de ignorância, ou de forte distúrbio mental.
A comparação, considerando a vibeque vivemos já há tanto tempo em nosso país e no mundo todo, é um alerta, a meu ver. Um alerta sobre o que vem por aí, e que a meu ver é inevitável.
Roma caiu. Daquele império pujante e aparentemente indestrutível, não sobrou absolutamente nada de significativo.
Sim, nos construímos sobre muitas daquelas ideias e um bom quinhão de nossas relações sociais, políticas e econômicas evoluíram daquela sopa fundamental preparada no Lácio.
Mas ainda que estejamos reeditando inúmeros erros e vícios daqueles tempos, muitas ideias novas surgiram desde que nos reerguemos: o racionalismo e a ciência nos ensinam a questionar o mundo à nossa volta, e começamos a perceber o quanto somos insignificantes diante desse “universão de meu deus”; entendemos, pelo menos filosoficamente, que apesar das diferenças, não há gradações de cunho natural ou divino (seja lá o que isso for) entre seres humanos e, portanto, todos temos ou deveríamos ter os mesmos direitos e deveres; criamos — e como criamos — belíssimas expressões artísticas que se não servem para absolutamente nada, no mínimo apontam a direção em que um dia caminharemos, caso decidamos nos livrar de nossa mesquinhez e trabalhar para atingir nosso potencial.
É pouco, claro. Muito pouco. Mas já é um começo. E essas pequenas evoluções mostram que a próxima iteração terá uma base um pouco mais sólida sobre a qual se alicerçar.
Ainda assim, antes desse soerguimento, temo, virá a queda. Até porque tão pífios avanços nem de longe dão a sustentabilidade de que uma civilização precisa para ser longeva. E no cerne, continuamos sendo nossos próprios lobos, como éramos em Roma ou em qualquer uma das civilizações anteriores ou posteriores a ela.
Continuamos corruptos, egoístas, indiferentes para com tudo e para com todos à nossa volta. Continuamos agindo como predadores e parasitas do planeta, ao invés de entendermos que somos seus comensais. Não vai acabar bem e nem há a menor razão para termos esperança do contrário.
Em Roma a imagem era de que nos portávamos como uma criança carregando um galão de gasolina e uma caixa de fósforos, dentro de uma casa, sem supervisão adulta. Pusemos fogo na casa, mas tivemos o bom-senso e a sorte de conseguir de sair dali quando as chamas se espalharam. Ficamos sem casa, entregues ao clima até que pudemos nos recompor. Os “mil anos sem um banho” da Idade Média foram o “prêmio” que recebemos. Mil anos de ignorância. Mil anos de culpa. Mil anos de lama.
Hoje a imagem mais adequada é a da criança com uma granada, ainda dentro da casa, e ainda sem supervisão. Quando puxarmos o pino (porque não é mais uma questão de “se”), vai ser mais difícil chegar à segurança com todos os membros intactos.
Na toada em que estamos, nossa incapacidade de enxergar o quanto estamos nos prejudicando nos levará ao colapso, penso que pelas vias das absurdas e irresponsáveis mudanças climáticas que insistimos em provocar ao nosso redor. Muitos são os que gritam a plenos pulmões que precisamos desacelerar a marcha e mudar o caminho com urgência, pois nos aproximamos rapidamente da catástrofe. Mas é em vão que gritam e se desesperam. Nós não os ouviremos, a não ser quando já for tarde demais — talvez, já seja, aliás.
O colapso não virá do dia para a noite, claro. Roma não se fez nem se perdeu em um dia e o passo de nossa ruína é lento. Lento, porém certo. Os primeiros indícios da queda do Império Romano vieram séculos antes do fim. Em nosso caso, esses primeiros indícios já nem são tão novos assim. Penso que as gerações atuais não verão essa queda ou, se a presenciarem, não serão capazes de a identificar, nem sofrerão o grosso de seus efeitos. Um furacãozinho provocando alguns bilhões de prejuízo aqui, um Rio de Janeiro submerso ali, coisa pouca.
Já nossos tataranetos, penso, não terão tanta sorte.
Eles, nossos descendentes, herdarão a queda e enfrentarão os resultados do colapso de nossa civilização. Viverão, penso, a “Idade Média Versão 2.0”. Não sei o quanto perderemos de nosso conhecimento, mas creio que seja uma porção substancial. Mas ainda assim, creio que a lama não dure os mil anos da última vez.
Algum tempo depois — se a criança não se deitar sobre a granada depois de puxar o pino — outra iteração civilizatória emergirá dos escombros. Espero que, nessa época longínqua, tenhamos nos cansado de bater a cabeça contra a parede da História e decidamos criar vergonha na cara. Nem que seja só um tiquinho.
kkkkkkk Rapaz, use a sua inteligência para mudar o mundo e não para deixar os outros sem esperança! Já basta o meu pessimismo diário! :) Por mais que uma parte de mim, sem esperança, concorde contigo, a outra parte nota que um mundo melhor está sendo desenhado sem percebermos. Se será aceito ou não é outra história....A ONU tem a agenda 2030 com vários objetivos a serem implementados e apoio de países com várias iniciativas sustentáveis. A França quer fim da venda de carros a gasolina e diesel em 2040, os "nórdicos" apresentam bons resultados em relação ao uso de energia renovável, a China tem projetos de cidades sustentáveis e até o Brasil, principalmente, no NE, destaca-se com o uso da energia eólica (Lula lá! kkkkkk). Sim, não adianta só trocar a fonte energética e continuar detonando biomas, a natureza... Até acho que o status quo tentará ser mantido pelos que lucram, mas a demanda orgânica da sociedade pode ser que mude o cenário econômico/político mais profundamente, do que imaginamos. Eu sugiro a vc saber um pouco mais sobre a Green School em Bali, sobre a Schumacher College, sobre o programa do Gaia Education, sobre o Amor Revolucionário da Valarie Kaur e ver uns vídeos do Charles Eisenstein. São muitas iniciativas boas! Enfim, não quero ver porque o que vejo é ruim, mas tbm quero, preciso e, na verdade, se procurar eu vejo que ainda há esperança. Blade Runner, Mad Max ou Roma não precisam ser as opções de futuro. Abs!
Meu caro Jaylei, que bom ler suas palavras indignadas contra meu mau-humor em franco processo de sedimentação. Olha, eu me considero um otimista-nato. Vejo coisas fora de série ocorrendo no mundo todo. para complementar tua lista, a Europa inteira está se movimentando em direção dos veículos elétricos, e — o que é bem mais legal — da bicicleta. Esforços em todo o planeta buscam remediar o que a ganância e a indiferença teimam em destruir, em devastar, em deteriorar. Ainda assim, meu caro, a somatória desses vetores ainda apontam inexoravelmente para o brejo, e isso não é pessimismo: é a mais pura (e triste) realidade. Em uma entrevista recente, por exemplo, o próprio Al Gore (o patrono da conscientização climática) admite que já ultrapassamos alguns marcos importantes nessa luta, tornando alguns efeitos irreversíveis, como no caso do aquecimento dos oceanos. E o noticiário não deixa dúvidas: por mais que você aponte iniciativas bacanas, a nau dos insensatos donos do poder continua sua marcha inexorável. Mas veja: não digo isso como quem dá de ombros: digo porque é de certa forma um alento saber que se já ressurgimos dos escombros de uma civilização inviável uma vez, podemos fazer isso novamente, e o que vier depois tende a ser menos insano. Mesmo que seja pouco, a gente tende a aprender com nossos erros; mesmo que seja insuficiente, tendemos a evoluir nossos constructos psicológicos e sociais, gerando nas próximas iterações realidades menos tristes que a que vivemos hoje. O otimismo é importante, e o lutar — mesmo diante da derrota iminente — vai bem de encontro àquela auto-dica da semana passada. mas encarar a realidade, em algum momento, também é fundamental, sob pena de vivermos em uma alucinação. É claro que eu posso estar redondamente enganado em minhas asserçÕes no texto de hoje. Aliás, eu adoraria estar redondamente enganado. Eu serei o primeiro a denunciar minhas balelas se em algum tempo conseguirmos reverter essa marcha besta em direção à catástrofe. Mas no momento, é exatamente isso que eu enxergo. Teus exemplos de coisas bacanas acontecendo são excelentes, mas me lembram os esforços dos poucos democratas dos tempos de Diocleciano, ou dos cristãos pregando fraternidade a caminho do circo romano. Ainda assim, muito obrigado pelo puxão de orelha!
Quando Ícaro cair, rezemos para que fênix se levante com novas memórias.
Também tenho essa esperança, Julino. Não é lá muita coisa, mas é o que dá para fazer. Abração!
Excelente dica. Obrigado
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