Werner Herzog é um nome que deveria dispensar introduções, tão importante e bela é sua produção nessas últimas décadas. O cineasta alemão dirigiu algumas das obras-primas da história recente do cinema, entre eles Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), O Enigma de Kaspar Hauser (1974), Nosferatu (a refilmagem de 1979, não o original de Murnau, de 1922) e Fitzcarraldo (1982, com uma ponta de Milton Nascimento), para ficar em apenas alguns dos mais conhecidos e importantes. Todos são emblemáticos, todos fundamentais para uma boa formação em cinema universal, e nenhum deles um blockbuster hollywoodiano.
Herzog sempre produziu documentários entre suas ficções e nas últimas duas décadas tem dado preferência a esse gênero. Eis os delírios do mundo conectado é o mais recente produto desta fase do cineasta. Lançado em 2016 no Festival Sundance, trata de um assunto do qual só podemos escapar a muito custo, como o próprio filme trata: a Internet.
O filme é dividido em 10 trechos, começando por uma descrição dos primórdios da Internet e de sua primeira transmissão, em 29 de outubro de 1969, na universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Foi de lá que a primeira mensagem — contendo apenas as letras “L” e “O”, pois o “G” que viria a seguir ficou de fora, uma vez que a comunicação caiu — foi transmitida com sucesso para um computador em Stanford, centenas de quilômetros ao norte. Herzog revisita o local e ouve de Leonard Kleinrock — um dos pesquisadores presentes durante a transmissão — conta o que essencialmente é a história do nascimento da Internet. Essa primeira referência histórica é a única de cunho temporal, sendo que os demais nove capítulos do filme tratam de aspectos diferentes da Internet — alguns deles bastante tangenciais ao assunto, aliás.
Nos demais capítulos do documentário, Herzog se presta a avaliar vários cenários da Internet, e não é difícil perceber que as temáticas tratadas apontam para uma opinião negativa do cineasta sobre esse assunto. Herzog mostra o potencial de benefício que a interconexão de bilhões de pessoas pode gerar — no caso, por meio da simulação de proteínas de RNA — em um exemplo bacana tanto do poder das multidões, quando agem com objetivo comum, quanto do valor da tal “gamificação”.
Esse exemplo, além de algumas das menções ao fato de que nunca tivemos tanta gente e tanta informação à nossa disposição e, principalmente, aos avanços em automóveis sem motoristas — em que os carros dirigem melhor que os humanos e aprendem melhor e mais rapidamente que nós — são apresentados como pontos positivos da Internet. Porém, não podemos esquecer que estamos falando de uma obra de Werner Herzog. Em instantes a tônica do filme muda como a proverbial queda do viaduto: uma família se vê vítima de assédio incessante quando passa a receber fotos da filha, Nikki Catsouras, morta em um acidente, a cabeça decepada pelo impacto. Sem explicações, sem motivos, sem sentido, a família — já bastante traumatizada pela perda — passa a ter que conviver com os “trolls” (termo que designa aqueles usuários da Internet cuja vocação maior é aporrinhar os demais usuários), que no caso agem com monstruoso ímpeto.
Em outro caso, pessoas com uma doença rara são apresentadas, vivendo em isolamento constante. São hipersensíveis a sinais eletromagnéticos, isto é, sinais de comunicação celular, sinais de rádio, sinais de TV, sinais de Wi-Fi e demais ondas de comunicação e sinalização. As dores e os sofrimentos descritos são enormes, e elas são obrigados a viver como eremitas digitais, em uma comunidade nas imediações de um centro de pesquisas astronômicas, na pequena cidade de Green Bank, em West Virginia (EUA). O centro de pesquisas astronômicas abriga um radiotelescópio (que capta ondas eletromagnéticas provindas do espaço, ao invés de captar imagens visíveis), e para manter a pureza das leituras, tem supressores de sinais instalados em um raio de 16 km, tornando a área efetivamente “cega” para rádios, TVs, celulares e que tais. Os habitantes ali — muitos deles sofrendo da doença de hipersensibilidade aos sinais eletromagnéticos — têm a liberdade que antes não tinham: podem caminhar ao ar livre, ver o sol, sentir o vento em seus rostos, quando antes eram obrigados a viver em “gaiolas de Faraday”, que são celas preparadas para impedir a entrada de sinais eletromagnéticos.
Em seguida vemos um centro de reabilitação para viciados em Internet, quando alguns casos de horror são contados: jogadores que passaram a usar fraldas geriátricas para não precisar parar nem para ir ao banheiro, jovens que jogaram fora formações universitárias e carreiras profissionais, e até pais que permitiram a morte de uma criança por desnutrição enquanto jogavam são apresentados como reflexos diretos do uso exacerbado da Internet. Sim, como releva este trecho do documentário, a Internet tem seu “lado escuro”, como exemplifica o documentário de Herzog, e suas consequências podem ser devastadoras.
A partir desse ponto, o documentário envereda por caminhos pelos quais somente com muita ginástica o expectador pode fazer uma ligação entre o que vê na tela, com a Internet ou com o mundo interconectado. É o caso das tempestades solares, que em teoria podem um dia atingir nosso planeta. Sim, essas tempestades podem acabar com a Internet, como alega Herzog, mas essa afirmação é equivalente àquela que receita um tiro na cabeça para acabar com a dor de dente. Uma tempestade solar que atingisse nosso planeta extinguiria a vida por aqui (ou, no mínimo, causaria um pandemônio climático, econômico e social de ordem planetária), e a interrupção dos serviços de Internet seria um problema menor a ser tratado, não é verdade?
Como exemplos em menor escala da devastação de uma tempestade solar, Herzog oferece os efeitos dos furacões: rupturas no fornecimento de energia elétrica, água e abastecimento em geral, incluindo os serviços de Internet. No entanto as próprias imagens falam mais alto: quem sofre os efeitos de um furacão tem problemas bem maiores a tratar, em meio às inundações, à destruição de infraestrutura, ao desabastecimento. Sim, a Internet auxilia na comunicação e na identificação de necessidades e de pessoas em perigo, mas em situações de emergência generalizada, raramente é o primeiro problema a ser endereçado. Entenda-se: a comunicação é crucial, e busca-se restabelecê-la o mais rapidamente possível, mas as autoridades têm meios próprios de comunicação, por rádio e satélite, sendo que a Internet tem pouco espaço nessa infraestrutura emergencial.
Herzog passa dessa possibilidade de ruptura na Internet para o que chama de “plano B”, ou seja, os esforços de Elon Musk e de sua empresa Space X para colonizar Marte. Mais ginástica mental é exigida do expectador para identificar como esse assunto se liga à Internet. Trata-se de uma ideia interessante, e até importante para a Humanidade, mas em que esse assunto se liga à Internet? Talvez porque as comunicações do planeta vermelho com o nosso não possam ocorrer mais em tempo real? Ou porque temos todas as notícias sobre esse projeto por meio de sites da Internet? De qualquer forma, o próprio assunto “colonização de Marte” é grande demais para ser tratado como um apêndice de um documentário sobre a Internet.
É aí que chegamos ao que mais incomoda sobre esse documentário: a mente brilhante de Herzog insiste em criar uma obra de arte onde caberia um relato objetivo (é um documentário!) sobre o assunto. Herzog faz questão de se inserir na narrativa com interjeições que além de não contribuírem para o assunto, distraem o expectador e mesmo o entrevistado. É o caso na entrevista com o astrônomo Ray Lockman, da seção sobre os eremitas digitais de West Virginia. Enquanto o astrônomo explica que quaisquer sinais de rádio interferem nas leituras do radiotelescópio, ouvimos Herzog perguntando “até rádios tocando Elvis?” A pergunta — absolutamente desnecessária sob o ponto de vista de um documentário, mas que de alguma forma faz sentido na cabeça de Herzog, e até caberia em um de seus filmes de ficção — distrai o entrevistado, além de não adicionar nada de objetivo à entrevista.
Na entrevista com Elon Musk — uma das cabeças mais brilhantes da atualidade — vemos Herzog interromper um raciocínio do empreendedor para dizer que ele estaria disposto a mudar para Marte. Musk nos falava sobre a janela tecnológica que temos à disposição agora, que deve ser aproveitada antes que “algo dê errado” e nosso nível de tecnologia caia abaixo do necessário para lançarmos pessoas com segurança para outros planetas. Nesse momento passamos a ouvir um pedido de Herzog para ele ser um dos novos habitantes de Marte. Musk sorri, acomoda educadamente o pedido do cineasta, e ficamos sem saber o que mais ele teria de objetivo sobre o assunto a nos oferecer.
Herzog propõe, ainda, uma questão poética, mais afeita aos seus filmes do que a um documentário: “A Internet sonha consigo mesma?”
Fora o fato de que o sonho é uma atividade cerebral complexa, exigindo processos mentais dos quais uma infraestrutura de comunicação como a Internet está longe de atingir, a pergunta — por mais bela que seja — pouco adiciona ao assunto do documentário. É, mais uma vez, a marca registrada de Herzog em seus filmes. No documentário sobre a Antártida, em 2007 ele propôs questão semelhante: “Existe insanidade entre os pinguins?” O propósito parece ser duplo: mostrar que o cineasta pensa de forma diferente, explorando campos pertinentes (?) ao assunto que estão longe de ser apercebidos por outros; e tirar o entrevistado de sua área de expertise, lançando-os a raciocínios que normalmente não explorariam. É a subjetividade e a arte se imiscuindo no formato objetivo do documentário. É Herzog se inserindo em suas obras.
Eis os delírios do mundo conectado é um filme instigante e que leva o formato a planos que raramente frequenta. Se desvia (e como desvia!) do assunto que pretende relatar, o faz de maneira interessante, sem nunca nos deixar com vontade que acabe, ou nos forçar a olhar o relógio. Como em todos os filmes de Herzog, somos mais que expectadores: somos coparticipes.
Não é assim que somos, todos, com relação à Internet?
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