Diante de meu texto da semana passada, alguns leitores pediram-me para explicar melhor como defeitos poderiam ser fundamentais para a vida de uma pessoa. Afinal, somos educados e criados para pensarmos exatamente o contrário! Como pode ser isso? Eu responderia: olhando por outros prismas e conscientizando-nos de que há uma linha tênue entre o lado negativo e o positivo de cada defeito.
Essa ideia subversiva é, na verdade, de Clarice Lispector (admirável escritora mencionada em minha última crônica). Fico bastante instigada com o que ela diz. A possibilidade de termos alguns de nossos defeitos sustentando nossas bases deve ser realmente considerada.
Lembrando o que ela escreveu em carta publicada no Jornal Estado de São Paulo em 1994: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”
Vou explicar, do meu ponto de vista. Como diria Leonardo Boff, fique à vontade para acatá-lo ou não, pois trata-se apenas da vista de um ponto.
Primeiramente, vamos combinar qual será o conceito que adotaremos para a ideia “defeito”. Sugiro partirmos da etimologia da palavra. Sua origem está no termo latino deficere (de+facere = deixar+fazer) cujo significado é deixar de fazer o que era esperado. Tudo bem com a definição. Mas, esperado por quem? Aí é que está: depende!
Depende da família em que fomos criados, do ambiente em que trabalhamos, da comunidade na qual convivemos, da sociedade em que estamos inseridos. Há muitos que esperam muitas coisas de nós. Assim, um defeito surgiria quando não atendemos essas expectativas. Puxa! Que pressão, não? Pois é…
Por exemplo, na cultura judaico-cristã, os chamados pecados são vistos como defeitos de caráter. Você já deve ter ouvido falar deles: a ira, a inveja, a gula, a preguiça, a avareza, a vaidade e a luxúria. Segundo algumas religiões, esses defeitos poderiam ser combatidos por virtudes como a mansidão, a caridade, a temperança, a diligência, a generosidade, a humildade e a castidade.
Outra análise que podemos fazer está no âmbito industrial: a cultura do mercado é competitiva e agressiva. Nessa lógica, a mansidão ou generosidade podem ser vistas como características negativas na administração de negócios capitalistas.
Quer dizer que um indivíduo que vive a cultura judaico-cristã não poderá empregar-se na indústria capitalista sem correr o risco de ser infectado pelo defeito da ira (e da vaidade, do orgulho, da inveja etc)?
Muitas vezes, uma característica que é considerada um defeito em determinado ambiente pode ser uma virtude em outro ambiente. Complexo, não?
Em casa, um indivíduo pode ter o defeito da ira quando demonstra agressividade com seus familiares. No trabalho, ele pode ser valorizado por sua agressividade nas vendas.
Quer dizer que defeitos (como os sete pecados capitais) poderiam ser considerados sustentáculos do incremento da sociedade capitalista? De um certo ponto de vista, talvez possam…
O jornalista Alexandre Versignassi escreve no Prefácio da obra (organizada por ele) Pecados Capitais: Luxúria (Editora Leya):
Os sete pecados foram concebidos há mais de mil anos pela Igreja, e em um tempo em que não havia nada remotamente parecido com a psicologia, mas, mesmo assim, eles retratam a nossa essência. E construíram nossa história, desde o tempo em que ainda nem éramos humanos. A ira, por exemplo, moldou o seu rosto – exato: nossos ossos faciais evoluíram para aguentar pancadas alheias, por isso seu maxilar é mais pronunciado que o de qualquer outro primata. A cobiça, outro pecado capital, nos legou a casa própria. Pois é: graças à gana pelo lucro, existem os bancos. E, sem banco, não há financiamento imobiliário. Outro pecado que faz girar as rodas da economia é a preguiça. Ela mesma, pois da leseira humana surgiram os deliveries de pizza, as escadas rolantes, os controles remotos. A luxúria não fica atrás: da Grécia Antiga ao Tinder, ela nunca conheceu tempos de crise. Outro pecado, tão gostoso quanto a luxúria, é o responsável por algumas das citações mais sublimes da humanidade. Não fosse a gula, não teríamos o confit de pato, o pastel de feira. Nem as grandes navegações. Outros dois delitos, bem menos saborosos, foram responsáveis por realizações ainda mais exuberantes. Sem doses gordas de vaidade e de inveja, afinal, não teríamos as Pirâmides, a Capela Sistina, o iPhone.
Diante do que eu apresentei, parece-nos que os sete pecados capitais estão realmente presentes nos pilares de nossa sociedade.
Minha proposta, desde meu texto anterior, era pensarmos nos defeitos que são base de nossa estrutura pessoal. Nessa crônica, meu convite é olharmos para nosso contexto social, uma vez que nossa estrutura individual é parte da estrutura coletiva.
Voltemos, então, nosso olhar para o conceito de defeito: deixar de fazer o que era previsto. Ao tentarmos atender às demandas ao nosso redor, podemos, muitas vezes, fazer o percurso da “barata tonta”: correr e correr, sem chegar a lugar algum. Afinal de contas, vivemos em um meio em que defeitos e virtudes são lados de uma mesma moeda…
Clarice Lispector nos adverte do perigo de vir abaixo a estrutura, quando se mexe em um pilar constituído de algum defeito. Talvez, a extinção dos pecados capitais levasse nossa estrutura capitalista à ruína – o que poderia ser positivo ou negativo, dependendo do novo sistema adotado. De qualquer forma, parece uma ideia um tanto insólita, pois os tais pecados capitais parecem ser bastante inerentes à natureza humana…
Seguindo nosso raciocínio, se minha premissa – de que os pecados capitais são parte da estrutura da humanidade (não é para menos que são chamados de capitais) – estiver certa, o que aconteceria se os defeitos fossem extirpados? O ser humano deixaria de ser humano…? Seria bom ou ruim? Isso dependeria do novo ser que surgisse…
Querido leitor, não fique irado comigo (até porque, você estaria cometendo um pecado…), mas não oferecerei uma conclusão. Minha intenção não é trazer respostas. Minha intenção é trazer perguntas que possam te levar às suas próprias respostas!
Até meu próximo texto! Espero você lá!
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[…] embarcar nesta reflexão, sugiro que também leia meus textos anteriores: Seu Melhor Defeito e Seu Melhor Defeito – Parte 2. Neste texto, que você lê agora, a saga […]
Oi. Um ser humano sem luxúria, vaidade, preguica, gula, cobiça seria ruim? Algum dos profetas, alguém (quem quer que seja), já falou sobre a necessidade desses "pecados" para o ser humano existir?
Olá, Jaylei! Eu realmente acho que não só profetas ou gurus têm algo pertinente a nos dizer. Fiquei interessada em saber a sua opinião a respeito: qual será a função dos pecados humanos...? Afinal, todos nós somos visitados ou tomados por eles, não é mesmo? Existiríamos sem eles? Eles nos criaram ou nós os criamos? Puxa, adoraria saber o que você acha. Que tal contar sobre suas ideias?