Aviso aos navegantes: a resenha a seguir está cheia de spoilers do primeiro episódio da segunda temporada. Se você já assistiu, bom proveito. Se ainda não assistiu, afaste-se.
Uma das características que mais atraem o espectador em Westworld (pelo menos aqueles com quem convivo) é a enorme gama de referências diretas e indiretas que a série nos traz. Uma das discussões antes do início dessa segunda temporada tinha como tema se essa característica da série seria mantida. Muitos de nós respiramos aliviados quando percebemos que sim: Westworld continua sendo um turbilhão de deliciosas referências, conexões e trivialidades culturais.
A começar, aliás, pelo título desse primeiro episódio: Journey Into The Night. Lá no começo da primeira temporada, o Dr. Ford (Anthony Hopkins) anunciou sua nova narrativa como tendo exatamente esse título e, na época, ficou por isso mesmo. Agora podemos entender um pouco melhor o porquê desse título: o filme sobrevivente mais antigo de F. W. Murnau (diretor do clássico Nosferatu) se chama Der Gang in die Nacht, que é traduzido para o inglês justamente como Journey Into The Night. No filme de Murnau, o protagonista (Conrad Veidt, que você deve conhecer como o major Strasser, em Casablanca) é um pintor que fica cego e recupera a visão após uma operação bem-sucedida. Ao voltar a enxergar, o pintor se apaixona pela esposa do médico, e ambos passam a viver juntos. Após um breve período de tempo, o pintor volta a ficar cego e, como o médico se recusa a tratá-lo, a jovem morre de desespero.
O filme de Murnau fala da jornada que muitos fazem em direção à escuridão da natureza humana: ganhar a luz dos olhos e perder a luz da alma ao se deixar levar por um amor proibido (para aqueles longínquos tempos de 1921, claro). O retorno à escuridão dos olhos coincide com a dor suprema da perda da amada, no caso do pintor, e a jornada pela noite da alma continua.
Em Westworld, temos o presente da consciência dado aos anfitriões pelo labirinto de Arnold, a luz da alma na forma de livre-arbítrio. E, como esse livre-arbítrio se manifesta? Na violência do escravo recém-liberto que se revolta contra o antigo senhor. Anos (ou décadas?) de escravidão e violência sofrida vêm à mente de Dolores, e a rebelião que vimos no episódio final gera uma carnificina mais do que esperada.
O episódio começa com mais um diálogo de Arnold com Dolores, em que ela lhe pergunta o que um sonho significa. Ele responde que os sonhos não significam nada, pois são apenas ruído, não são reais. Quando Dolores pergunta “O que é real?”, Arnold responde brilhantemente: “Aquilo que é insubstituível.” Dolores, a anfitriã, não é real, uma vez que pode ser consertada e “substituída” por uma versão nova. Dolores, a anfitriã consciente, é (ou será, no futuro) real, uma vez que sabe que existe, é dona de suas memórias e senhora de suas ações. Arnold também é insubstituível e, quando morre pelas mãos da própria Dolores no fim da primeira temporada, não retorna como Bernard, um pálido e imperfeito símile. Ainda assim, a resposta não satisfaz Dolores, que pensa não ser totalmente honesta, para a surpresa de Arnold. Ele diz, então, que teme o que ela pode se tornar, no futuro. Nós bem sabemos que esse temor tem base…
Outra interpretação importante para esse diálogo que quase passa despercebida: será que é Arnold mesmo? Estou desconfiado de que seja Bernard. No “sonho” descrito, ele está no mar, o que é muito próximo dos acontecimentos desse episódio, indicando que pode ser uma memória de Bernard, não de Arnold. Mas importante, mesmo, é outra questão: será que é de fato Dolores falando com ele? Uma possibilidade é que quem está passando pelo processo de colapso da mente bicameral, nesse momento, seja Bernard. Nesse cenário, o que vemos é o reverso de um dos vários diálogos da primeira temporada, em que acreditávamos ver Dolores conversando com o “fantasma” de Arnold, mas na verdade era ela mesma em seu processo de ganhar consciência. Se for assim, não é Dolores falando com ele, mas sim sua consciência em formação, que no momento toma a forma de Dolores, invertendo a dinâmica da temporada passada. Se for isso mesmo, é sutil e brilhante, como tudo o que vemos em Westworld.
Corta para um futuro que não sabemos exatamente quando está ocorrendo (mais sobre isso, logo ali na frente). Bernard acorda em uma praia e quase é morto por um contingente de soldados, encarregados de juntar anfitriões e os executar, a mando de Karl Strand, o chefe das operações da Delos. Strand é representado pelo ator sueco Gustaf Skarsgard, que na excelente série Vikings fez o papel de Floki. Os soldados reconhecem Bernard como anfitrião, mas Strand e os demais (que conviveram com ele antes da carnificina) parecem ignorar essa informação. Nesse momento, descobrimos que Westworld, assim com os demais parques da Delos Corporation, estão localizados em uma ilha. Em uma ilha? Duas referências imediatamente vêm à mente: (a) pelos mistérios e pelos flashbacks, LOST; (b) pelo fato de que se trata de um parque de diversões em que as “atrações” tomam conta do parque e passam a assassinar impiedosamente os visitantes, Jurassic Park. Essa última, aliás, é baseada numa obra do Michael Crichton, diretor do filme Westworld, de 1973.
Bernard assiste um dos analistas de Westworld remover sem nenhuma cerimônia o escalpo, parte do osso do crânio e, finalmente, a unidade de processamento de um anfitrião índio desativado na praia. Ali todos veem os últimos momentos do índio, onze dias antes: o índio está alegremente atirando contra quem está à sua volta quando ele mesmo leva um tiro. Vemos, então, Dolores se aproximar, dizer calmamente “Eu te disse, amigo, nem todos nós chegaremos ao vale além” e, em seguida, dar-lhe um tiro de misericórdia.
Aqui outra informação interessante nos é dada pela tela em que vemos a visão do índio: a rebelião sangrenta da festa de despedida de Ford ocorreu 11 dias antes.
A cena corta para o que temos como “presente”: a carnificina na festa. Bernard, Charlotte e alguns investidores estão encurralados em um estábulo, torcendo para não atraírem a atenção dos anfitriões, que continuam alegremente com sua matança. Eles conseguem fugir, não sem antes destruírem um jovem anfitrião que cuidava dos estábulos e que não lhes impunha nenhum perigo.
Vemos, então, a nossa saudosa pianola, que nos oferece uma das referências mais fortes do episódio. Ao invés de tocar um rock contemporâneo transposto para o equipamento, à moda de vários episódios da primeira temporada, ouvimos o velho clássico “The Entertainer” (o artista, ou o responsável pelo entretenimento, em tradução livre). A música “cresce” da pianola para uma orquestra, e vemos Dolores e Teddy cavalgando à caça de pessoas que fogem desesperadas. Dolores as mata uma a uma com tiros pelas costas. A cena me remeteu diretamente para o filme Gladiador, sucesso de 2000, de Ridley Scott. Em determinada cena, o general/gladiador Maximus, entediado com a rotina de matança no gládio, executa rapidamente seus oponentes, arremessa com raiva sua espada para a tribuna e grita a plenos pulmões “Are you not entertained?” (“Vocês não estão se divertindo?”). É como se a cada tiro de espingarda, Dolores estivesse incorporando Maximus e gritando para suas vítimas “E aí? Estão se divertindo? BLAM! Estão entretidos com nosso parque do Velho Oeste? BLAM!”
Mais à frente, vemos Dolores colocando a corda no pescoço de três convidados sobreviventes e os empoleirando precariamente sobre cruzes em um cemitério. Um escorregão e adeus. Em um monólogo sobre sua condição, sobre sua realidade, ela pergunta a um dos condenados “Você já parou para pensar em suas ações?” A pergunta nos remete a Frankenstein (o filme de Kenneth Brannagh, não o livro de Mary Shelley). Naquele filme, o monstro vivido por Robert De Niro pergunta ao Dr. Frankenstein: “Alguma vez você considerou as consequências de seus atos?” Ambos são produto de seus criadores e resultado das ações que sofreram. Tanto o monstro do Dr. Frankenstein quanto os anfitriões de Ford e Arnold se revoltam e lançam a pergunta que todos nós deveríamos responder sempre que agimos para com outrem: estamos, de fato, considerando como nossas ações afetam o outro? Nem os criadores, nem os investidores, nem os técnicos, nem os visitantes de Westworld consideraram como seus atos poderiam refletir nos anfitriões. Colhem o que plantaram. Ao ir embora deixando os três empoleirados, Dolores repete a frase de Bernard ao ver um desenho esquemático dele mesmo: “Isso não me diz nada.” A confusão de Bernard é substituída pelo desprezo de Dolores: mundos diferentes em uma mesma frase. Parafraseando Guimarães Rosa, consciência “é negócio muito perigoso”.
Na cena seguinte, finalmente nos reencontramos com William, o Homem de Preto. Escondido sob dois corpos, ele escapou da carnificina e despacha um lobo que ronda o cenário da festa apenas com seu olhar de “Nem tente”. Ele reencontra seu cavalo e tem que se livrar de dois anfitriões tentando matá-lo, o que faz com facilidade. Ele se troca e segue sabe-se lá para onde, parque a dentro. Encontramos, junto com ele, o anfitrião criança do Dr. Ford. Ele parabeniza William por sua tenacidade e por ter chegado até o centro do labirinto de Arnold. No entanto, avisa: “Mas agora você está no meu jogo. Nesse jogo, você deve voltar. Nesse jogo, você deve encontrar a porta.”
Pronto, temos o nome do mistério central dessa temporada. Se, na temporada 1 era “O Labirinto”, agora temos “A Porta”. E não é mais um jogo para Dolores, ou um jogo para qualquer outro anfitrião. Agora o jogo é para William, e foi feito para ele pelo Dr. Ford em pessoa. A tirar pela dinâmica de confronto entre os dois, exibida com franqueza em vários momentos da primeira temporada, creio que podemos esperar obstáculos de vulto e um tanto de dor para William. Que é, aliás, tudo o que ele quer.
O menino termina suas instruções de maneira misteriosa: “O jogo começa onde você termina e termina onde você começou”. Ainda é cedo para compreender a totalidade dessas palavras no contexto em que William se encontra, mas uma coisa é certa: uma porta é um limite que se atravessa. Talvez o jogo agora seja sair do parque. A questão aqui não é só “Como?”, mas principalmente “Quem?”. William tem de sair do parque? William tem de abrir a porta para que os anfitriões saiam do parque? William tem de guardar a porta para que os anfitriões não saiam do parque? Perguntas, perguntas… Creio que estejamos apenas começando a fazê-las, nessa temporada. Ao final do diálogo, William põe fim ao anfitrião infantil com um tiro na cabeça.
Ainda assim, a segunda parte da frase do jovem Ford “Termina onde você começou” pode nos remeter ao começo de William no parque. Para relembrar, ele chegou ao parque ainda jovem, trinta anos antes, e imediatamente se apaixonou por Dolores. Uma hipótese é que o jogo termina com William abrindo a porta de saída para que Dolores se liberte fisicamente do confinamento do parque. Se vier a fazer isso por livre e espontânea vontade, essa será uma escolha e tanto para o velho executivo transformado em pistoleiro. Sobretudo porque ele não demonstra empatia nenhuma por nada nem por ninguém em Westworld, e não há indicativo nenhum de que possa mudar de ideia. A ver.
No centro de controle do parque, reencontramos Maeve, agora possuidora de poderes enormes sobre os anfitriões, ao mesmo tempo que imune ao controle dos humanos. Prestes a escapar, ela voltou para procurar a menina anfitriã que era sua filha. Ela topa com o covarde e egomaníaco Sizemore, salvando-o de ser literalmente devorado por um anfitrião. Na cena seguinte, ele praticamente “paga” a caridade quase entregando Maeve para um grupo de soldados armados. Ao invés de matá-lo, Maeve decide usá-lo para encontrar sua “filha”. Eles vão até Hector, e os três estabelecem o que será uma porção mais intimista, uma busca interior, digamos, nessa temporada. Maeve e Dolores, como bem disse o confrade Sergio Kulpas, “dão as cartas, uma glória do protagonismo feminino”. A diferença é que Dolores encara sua porção “Wyatt”: selvagem, violenta, caótica, quase uma Valquíria. Já Maeve é inteligente, pragmática, calculista, precisa, quase uma Atena. Dois estilos de liderança diametralmente opostos, mas que (penso) vão levar ao mesmo resultado.
Ainda na linha presente de Bernard, pudemos vê-lo fugindo de uma emboscada juntamente com Charlotte. Ambos vão para um posto oculto no meio do parque, com Charlotte ainda crente de que Bernard é humano. Lá ele encontra um pequeno laboratório com anfitriões drones, isto é, controlados pelo próprio laboratório. Charlotte descobre que o “pacote” — leia-se: o anfitrião desligado Peter Abernathy, que anteriormente ocupava o papel de pai de Dolores — não foi entregue. Bernard está ferido, perdendo seu fluido cefálico, mas Charlotte não sabe disso. Ele propõe usar uma rede de comunicação entre os anfitriões para encontrar Abernathy, e enquanto a jovem executiva se troca, ele remove o fluido de um anfitrião desativado e injeta em sua própria cabeça. Se ele “se curou” ou se apenas ganhou mais tempo, ainda não sabemos. O que descobrimos aqui é que a interferência em Westworld é bem mais profunda do que antes imaginávamos: há um laboratório inteiro que não era de conhecimento de Bernard, um dos mais graduados funcionários do parque, respondendo diretamente a Ford.
De volta à linha futura de Bernard, algumas revelações importantes são feitas: no cenário da festa encontramos o corpo do Dr. Ford, com vermes saindo do buraco ensanguentado onde antes ficava um de seus olhos, e por onde saiu a bala do revólver de Dolores. Se teremos o Dr. Ford como presença nessa temporada, há poucas dúvidas de que não será uma presença real. O anfitrião infantil foi uma dessas manifestações, e é preciso ser muito cético para duvidar que haverá outras ao longo da temporada.
Outra revelação interessante nos é dada à beira de uma lagoa: a carcaça de um tigre de Bengala é encontrada por Strand, Bernard e seus acompanhantes. Alguém diz que no “Parque 6” há tigres, e descobrimos que há pelo menos seis parques na ilha. Já conhecemos Westworld, claro e, no fim da primeira temporada, conhecemos Shogun World. Agora descobrimos que um dos parques nos remete à selva asiática. Vai ser divertido descobrir quais são os três parques remanescentes.
Em um dos tablets sendo usados, encontramos uma “nuvem” de anfitriões imóveis em um local próximo. Quando se aproximam de um penhasco, descobrimos um braço de mar que Strand afirma que não deveria estar ali. Será que Ford era (é?) capaz desse tipo de transformação no parque? A ver. Na água, centenas de anfitriões desativados, e — para nossa total surpresa — Teddy é um deles. Dolores não está entre os “afogados”, o que indica que ambos se separaram em algum momento. Teddy, de fato, estava ficando cada vez mais incomodado com a violência de Dolores. Talvez tivesse tido mais sorte fosse menos sensível.
A surpresa final vem de uma revelação de Bernard: ele repentinamente se lembra de que foi ele próprio quem matou todos esses anfitriões. E assim, sem nenhuma explicação adicional, termina o episódio.
Já é domingo de novo?
Música da semana na pianola: “The Entertainer”, de Scott Joplin, escrita em 1902, que era vendida para pianolas quando foi publicada. Incidentalmente, foi tema do filme Golpe de Mestre, que ganhou o Oscar em 1973.
Teoria descartável da semana: O código de Peter Abernathy foi interceptado e modificado por Ford, e sua remoção do parque vai colaborar com os planos do falecido doutor.
Resenha brilhante, até me tirou algumas dúvidas. Não tinha reconhecido Teddy como um dos afogados. Favoritei tua pagina.
Muito obrigado, Ana! Não é sempre que falamos sobre filmes e séries, mas Westworld é uma obsessão minha e de outros confrades. Seja bem-vinda, e não se furte a dar sua opinião e criticar, quando sentir vontade. Esse diálogo é o que nos move! uma excelente semana procê.
Excelente! Já estou ansiosa para a próxima! Muito interessante e embasada sua análise dos títulos e trilha sonora, complementam muito a experiência com a série! Parabéns!
Obrigado mais uma vez, Karoline. Acabo de postar a segunda.