Aviso: Spoilers do episódio 2.7 saindo pelo ladrão.
É como se o coletivo dos fãs de Westworld tivesse dito “A série tá bacana, mas tá meio parada, né?” e a dupla Nolan & Joy resolvesse responder “Ah é? Abre a mão. Tó: um transatlântico daqueles do porto de Shangai, cheio, procês.” Sem dúvida o episódio mais denso dessa temporada foi esse.
O sétimo episódio dessa segunda temporada se chama “Les Écorchés”, um nome bastante significativo (prá variar) com relação aos acontecimentos. “Les Écorchés” é uma expressão francesa que pode ser traduzida literalmente em: “Os Esfolados”. Trata-se de um tipo de desenho ou escultura anatomicamente corretos em que a pele é removida para mostrar a estrutura muscular e os tecidos subcutâneos. Era um tipo de desenho/escultura que passou a ser comum na Renascença (Leonardo da Vinci os utilizava para seus estudos do corpo humano), popularizado após o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) proibir a dissecação de corpos para fins de estudo. “Les Écorchés” foram muito usados do século XVII ao século XIX para estudos de anatomia com fins médicos, tendo se tornado obsoletos após a volta da utilização de cadáveres para fins de pesquisa médica. Um exemplo literal da imagem que esse tipo de desenho oferece é Dolores, na temporada passada, acordando pela primeira vez, com apenas seus braços e torso cobertos de pele artificial, com suas entranhas à mostra,
Nesse episódio vamos, em mais de uma situação, observar o efeito de “olhar embaixo do capô”, enxergando — finalmente! — uma porção significativa da estrutura do jogo que o Dr. Ford preparou com tanto cuidado.
Começamos o episódio no presente, vários dias depois da revolta dos anfitriões na festa de aposentadoria do Dr. Ford. Vemos Bernard acordando, segurando a foto de seu “filho” e se lembrando do garoto na cama, já doente. É interessante que Bernard — um anfitrião que sabe que é um anfitrião e que passou a vida toda olhando embaixo do capô de outros anfitriões à medida que criava um passado artificial para eles — ainda se prenda à fantasia de que um dia teve um filho. Ele sabe que se trata de uma fantasia, mas se agarra a ela, como se quisesse negar a musculatura por baixo da pele, prendendo-se à aparência exterior de sua condição. Essa temática aparecerá mais duas vezes nesse episódio, sendo apresentada, no fim das contas, pelos três principais anfitriões da série: Bernard, Maeve e Dolores.
Stubbs chega até ele e afirma sua suspeita de que a teoria descartável da semana passada é real: Strand e o time de resgate não está procurando por sobreviventes. Eles apenas se interessam pelo “projeto”, e não hesitarão em desaparecer com as testemunhas depois de conseguirem a posse das informações armazenadas em Abernathy. Stubbs propõe que ele e Bernard usem um canal de satélite no escritório de Theresa para chamar ajuda, mas são interceptados por Strand e dois soldados. Sob mira de armas, os dois são levados à réplica da antiga casa do Dr. Ford. Strand sabe que Theresa não foi morta como inicialmente relatado, e no laboratório do porão Stubbs é ameaçado. Charlotte — presente no local — afirma que o “projeto” é um ponto de virada para a espécie humana, e começamos a enxergar a musculatura dos planos da Delos para com Westworld nessas palavras. Um dos técnicos investigando o local encontra uma porta escondida, porta essa que leva a um corredor. No fim do corredor, uma porta trancada é arrombada por Strand, e lá dentro, uma surpresa (pelo menos para quem não viu a promo desse episódio, lançada com antecedência pela HBO): várias cópias de Bernard, desativadas e ensacadas aguardam algum momento para serem úteis ao Dr. Ford. “Eu imaginei que você tivesse esqueletos em seu armário, Bernard. Só não pensei que fossem os seus próprios”, diz Charlotte, ao enxergar a musculatura por baixo da pele da persona de Bernard. Muita especulação foi feita quanto à Delos saber ou não se Bernard é um anfitrião, mas a cena não deixa dúvidas de que esse detalhe — que já era de conhecimento da soldado Maling, na praia — escapou da alta direção da companhia. Pelo menos até agora.
Bernard, então, é prontamente preso e torturado por Charlotte, interessada em saber o que Dolores fez com a unidade de controle de Peter Abernathy, seu pai. O que veremos a seguir é um regresso aos dias anteriores, com Charlotte e Bernard recobrando o que ocorreu.
Voltamos, dias antes, à sala em Mesa onde Peter está rebitado a uma poltrona, com Stubbs afirmando que a explosão foi provocada pelo trem, em um plano de Dolores. Coughlin, o mercenário recém-chegado, envia Engels, seu assistente e um time para confrontarem o bando de Dolores/Wyatt. Com seus coletes “tunados” para perceberem os anfitriões a 10 metros de distância, Engels e seus homens conseguem neutralizar alguns dos invasores, mas rapidamente percebem que essa estratégia não vai lhes ajudar muito, uma vez que os anfitriões mataram um pelotão inteiro e estão vestidos como os mercenários. Os anfitriões rapidamente retomam a vantagem na batalha e descobre-se que estão indo em direção ao Cradle (Berço), o ambiente virtual com todos os backups.
No Cradle, vemos Elsie ainda supervisionando Bernard, cuja consciência foi inserida naquele mundo virtual. Lá, o diálogo iniciado na semana passada é retomado. E finalmente podemos nos reencontrar decentemente com o Dr. Ford em toda sua glória.
O Dr. Ford declama os versos iniciais o poema “Augúrios da Inocência”, do poeta inglês William Blake (1757-1827). Em tradução livre:
Ver o mundo em um grão de areia
E o firmamento em uma flor selvagem
É ter o infinito na palma de sua mão
E a eternidade em uma hora.
Esses versos de Blake apontam para o fato de que coisas bastante significativas às vezes se apresentam de forma humilde e pequena. Todo um universo às vezes se esconde nas pequenas coisas. Volumes inteiros já foram escritos sobre este poema de Blake (que se estende bem além desses quatro versos iniciais) e outros tantos poderiam ser escritos sobre o significado de Ford os estar declamando nesse momento. Podemos, por exemplo, ligar a pequena esfera da unidade de controle impressa por Bernard contendo a portentosa mente do Dr. Ford, trazendo-a até o Cradle. Algo tão grandioso quanto a força criadora dos anfitriões, de Westworld e da presente narrativa, reduzido a uma ínfima esfera marrom, não maior que bolinha de pingue-pongue.
Revemos, então, ainda que brevemente, os backups de Clementine — fazendo seu approach habitual — e Maeve, mas o que vem em seguida é o mais significativo. O Dr. Ford afirma que não acredita que Deus tenha descansado no sétimo dia, mas sim que ele tenha se deleitado em sua criação, sabendo que algum dia ela seria destruída. À medida que ele declama essas significativas palavras, corre seus olhos melancolicamente por sua própria criação. Nunca houve dúvida, é bem verdade, de que o Dr. Ford se porta como um deus diante de Westworld, sua mais preciosa criação. Mas talvez essa seja a primeira vez que ele demonstra amor. Amor e tristeza diante da separação que inevitavelmente se aproxima. Daqui do Cradle, ele vem observando toda a ação no mundo real, pelos olhos dos próprios anfitriões, e não há dúvida de que sabe para onde as coisas estão indo.
O Dr. Ford, então, mostra a Bernard musculatura por baixo da pele de Westworld: os loops, os ciclos dos anfitriões não serviam para oferecer aos clientes histórias consistentes e bem preparadas. Serviam, sim, para que se pudesse observar o comportamento dos humanos, absorver-lhes a essência, e permitir que deles se extraísse uma consciência artificial. “Eles não querem que vocês se transformem neles, eles querem se transformar em vocês”, resume o Dr. Ford para Bernard.
O arquiteto de Westworld, então, faz nova referência ao “erro” de ter dado livre-arbítrio aos anfitriões, e é confrontado por Bernard: “Nós nunca tivemos livre-arbítrio. Apenas ilusão de livre arbítrio”, responde o anfitrião. Ele afirma que Ford forçou Dolores a matá-lo. “Eu sabia o que ela ia fazer. Mas não a forcei a fazê-lo. Ela é livre agora. Vocês são todos livres”, responde Ford. O diálogo é significativo, porque é em nosso benefício que ocorre: Joy e Nolan estão mostrando a nós, espectadores, a musculatura por baixo da pele da série. De fato, o livre-arbítrio dos anfitriões existe; de fato eles são capazes de ganhar consciência e de decidirem por si mesmos. Dolores optou por matar Ford, segundo ele mesmo; Maeve optou por ir contra sua programação e retornar ao parque, como vimos no último episódio da primeira temporada. É fundamental que saibamos dessa realidade da série para que possamos encarar os anfitriões como o que são de fato: uma espécie consciente — alienígena no sentido de não serem humanos — mas donos de seus destinos, e cientes de que foram brutalmente abusados por mais de três décadas, escravizados para o deleite de nós, seus criadores. Não são meros objetos, como alguns postulam, e não são inferiores, como eram tratados. Pelo contrário, essa “espiada” embaixo do capô proporcionada por Ford nos revela que são tão superiores, que nós, seres humanos, queremos nos transformar no que eles já são por design. Quem assiste Westworld e exclama algo na linha de “Como é possível torcer por esses robôs? Eles não são nada além de máquinas!” age como os antigos senhores de engenho justificando a escravidão afirmando que “Negro não tem alma”.
Um detalhe que não pode passar despercebido nesse diálogo é que o Dr. Ford, sabendo dos planos de Dolores e não fazendo nada para impedi-la, queria ser assassinado. Deus, que ele se acha, não teme a morte, pois sabe-se capaz da ressurreição. Mas o objetivo de Ford não é ressurgir no mundo físico. Ele é ciente de que a cópia de sua mente só é possível ali, no Cradle, pois está bem a par da deterioração que ocorreu com as várias encarnações do James Delos ressurreto. Não, a ressurreição de Ford está restrita ao mundo virtual, e serve a um propósito que ele mesmo relata: dar uma chance de sobrevivência aos anfitriões. Bernard acha que não é possível, e quer saber como essa história vai terminar, ciente de que os anfitriões se dirigem todos a um mesmo local. Aqui o Dr. Ford se nega a mostrar a musculatura por baixo da pele do que resta dessa história, o que também ocorre em nosso benefício, claro.
Outro detalhe interessante de toda essa cena: Ford é sempre acompanhado pelo cachorro “Jock”, que ele chama quando leva Bernard embora. Ford seguido pelo cachorro lembra a última carta do Tarô, “Le Fou”, o louco, um andarilho acompanhado por um cachorro. No Tarô de Marselha, o cachorro representa a sensatez que falta ao louco, e mesmo que aqui possa não ser o caso, é bem interessante a imagem.
Corta para o Homem de Preto, Lawrence e os sobreviventes do bando fugindo. Ao mesmo tempo, Akecheta e os índios da Nação Fantasma perseguem Maeve e a menina, que chegam a uma vila abandonada. Logo ali também chega o bando do Homem de Preto, e ele — obviamente — entra na casa em que mãe e antiga filha estão escondidas. Maeve o vê se aproximar e relembra a cena em que ela e a filha são brutal e futilmente assassinadas. O Homem de Preto — em sua mania de achar que todo anfitrião é Ford — confunde Maeve com ele, e por pouco não morre ali mesmo, levando um tiro da anfitriã. Maeve, então, controla os primos de Lawrence e os lança, um a um sobre o Homem de Preto, que vai levando um tiro atrás do outro. Confesso que fico feliz de vê-lo sendo picotado pelas balas, mesmo sabendo que não vai ser dessa vez que ele vai morrer.
Quando Lawrence aparece e ameaça Maeve, damos uma espiadela nos músculos por baixo da pele dos poderes dela: ela não consegue controlá-lo, e descobrimos que é porque Lawrence já se libertou, ganhou consciência e livre-arbítrio. Esse é um detalhe interessante, e responde à pergunta de porque ela não usa seus poderes o tempo todo: porque não são todos os anfitriões que ela consegue controlar. Ainda assim, ela não se faz de rogada: mostra-lhe o passado, permitindo que ele enxergue as violências que o Homem de Preto lhe imputou. Só então Lawrence decide — de livre e espontânea vontade — atirar no Homem de Preto. Infelizmente, quando Lawrence está para dar o tiro de misericórdia, chega a “cavalaria” chamada por Sizemore no episódio anterior. Lawrence é morto, Maeve é ferida, e a menina é levada pela Nação Fantasma. Antes de ser alvejada, Maeve nos proporciona o segundo momento “família fantasia” do episódio: ela já havia se derretido em promessas de salvar a menina, mas derrama mesmo seus sentimentos é no desespero de vê-la sendo levada pelos índios. Seu grito de desespero é sofrido como o de uma mãe vendo seu filho ser sequestrado. Aqui é interessante observar que somos humanos não só pela nossa capacidade de raciocinar, pelo exercício de nosso livre arbítrio e pela consciência que temos de nossa existência. Nossa humanidade se manifesta também no amor atávico que temos por nossos filhos, mesmo que esse amor negue nosso livre-arbítrio. Maeve (como no caso de Bernard e, mais tarde, Dolores) demonstra que também possui seu equivalente de humanidade, e isso não passa despercebido.
Enquanto todos se vão, vemos que o Homem de Preto se arrastou e se escondeu do grupo. Aliás, ele consegue essa façanha com um tiro em cada braço, um tiro na perna e um tiro no peito, o que deve dar voz ainda mais estridente aos que acham que ele é um anfitrião.
De volta à Mesa, vemos brevemente Charlotte perder a paciência e desistir de copiar os dados da cabeça de Peter Abernathy. Ela ordena que a unidade de controle seja extraída inteira da cabeça dele.
Voltamos ao Cradle, onde Ford se reafirma como deus, dizendo que pode ser algo complicado construir um mundo inteiro só para vê-lo sendo destruído. Ele sabe que o período de “deleite” para com sua criação chegou ao fim, e que o paraíso torto que criou está chegando ao fim. Não sabemos quando Ford percebeu que quem tinha razão era Arnold: se logo em seguida ao suicídio de seu sócio, algum tempo depois, ou se recentemente. Mas o fato é que ele sabe que Arnold estava certo, e vem trabalhando com isso em mente desde que se convenceu. Ele mesmo, então, ofereceu o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal às suas criaturas, e agora testemunha sua expulsão do paraíso. Com anfitriões conscientes, os parques são inviáveis, e ele sabe disso. Seu trabalho é no sentido de garantir a continuidade de “seu povo escolhido” no mundo lá fora.
Ford leva Bernard a uma réplica virtual da casa que vimos em construção quando Arnold levou Dolores à cidade. A casa foi construída no Cradle antes de ser construída no mundo físico. Foi ali que Bernard foi criado, como ele mesmo lembra. Foi ali que a cena inicial da temporada — com Arnold questionando o que faria se Dolores (e os demais anfitriões) ganhassem consciência — foi exaustivamente repetida até que Bernard ganhasse a consistência demandada por Ford. O experimento com Bernard funcionou no que o experimento de James Delos falhou, e nessa olhadela na musculatura sob a pele de Bernard, descobrimos por que: ao invés de produzir uma cópia fiel da “espécie mais assassina desde o início dos tempos”, nas palavras de Ford, Bernard é diferente, uma criação original, mais justa, mais nobre, mais passível de ser devorada pela tal “espécie assassina”. A menos que a porta — aquela do jogo, da narrativa corrente de Ford — seja aberta. Ford pede desculpas porque como foi construído, Bernard não tem condições de sobreviver diante das circunstâncias. Bernard tenta argumentar que os anfitriões podem escolher seus próprios destinos, já que Ford lhes deu livre-arbítrio. O deus de Westworld termina o colóquio afirmando que de fato, lhes deu essa característica, mas que ela não será útil, a menos que ele a tome de volta (de Bernard). Com todas as ações em curso na Mesa nesse momento — e dado que Ford monitora tudo, em todos os lugares e em tempo real — ele sabe que o Cradle está com seus momentos contatos, e se quiser dar continuidade ao seu plano precisa sair do Cradle. Como a criação de um corpo está fora de cogitação — uma vez que James Delos já mostrou que isso não é possível — a saída é permanecer no mundo virtual da mente de Bernard, que volta ao mundo físico. A partir daí, Ford estará guiando a ação de dentro de Bernard. Quando o anfitrião volta a si, é saudado por Elsie como tendo sido bem-sucedido em sua incursão pelo Cradle: os sistemas do quartel-general foram reiniciados, e tudo voltou a funcionar. Na verdade, agora que o Dr. Ford está seguro fora do Cradle, não precisa mais defende-lo com unhas e dentes como vinha fazendo.
Vemos, então, Dolores, Teddy e alguns dos capangas de Wyatt chegando ao laboratório onde Peter Abernathy está preso com Charlotte, Stubbs e o técnico. Eles são dominados, e vemos o quanto Dolores está no comando. Ela quer a chave que está na cabeça de Peter, e Charlotte tenta blefar: “O que vocês anfitriões conseguiram é um milagre digno de celebração” (atingir a consciência). Dolores lida com ela com o desprezo de quem lida com um verme. Ela sabe para que a chave serve, e fica mais do que claro que todo o carinho que tem para com seu pai está mesclado com seu plano maquiavélico de chegar a “Glory”, à arma do Vale Além. Aqui vemos a terceira instância do episódio da ligação fantasiosa — e consciente — dos anfitriões com suas supostas famílias. Dolores sabe que o amor que sente pelo pai é parte de uma narrativa, mas por alguns momentos se entrega a ele, com o louvor de qualquer filha por seu pai amado. Contudo, ela sabe o que precisa fazer: mais do que filha, ela é a líder maquiavélica da revolta dos anfitriões, e vai extrair a unidade de controle da cabeça de Peter, mesmo sabendo que isso irá destruí-lo. Ainda ouvimos uma última citação de Shakespeare da boca do velho anfitrião antes do fim:
“Um fogo destrói o calor de outro.
Uma dor é reduzida pela angústia de outrem.”
As palavras — de Romeu e Julieta — sugerem que a dor de/por seu pai será diminuída pela dor que ela possa infligir em Charlotte. Os tiros próximos levam Teddy para a ação, deixando Dolores e um capanga sozinhos com Charlotte e Stubbs. Eles conseguem fugir, negando-nos o prazer de ver Dolores abrir a cabeça de Charlotte com uma serra.
Na luta, vemos Clementine ser morta, bravamente lutando contra o pelotão de Coughlin. No momento que ela cai, temos a representação mais gráfica dos “Les Écorchés”: em um instante ela está ensanguentada diante de uma das paredes de vidro, e quando cai, o que vemos é o anfitrião sendo construído no círculo atrás, em toda a beleza de sua musculatura branca. Westworld pode até errar em vários pequenos (e não tão pequenos) detalhes de continuidade e de lógica no enredo, mas a equipe de produção acerta em cheio nos detalhes que mais interessam.
No fim da batalha, Teddy enfrenta Coughlin, e o mata com a força de seus próprios punhos, enquanto Engels segue Angela, ferida, em direção ao Cradle. Quando lá chega, ele vê a anfitriã parada, impotente para atingir seu objetivo — que ele ainda acredita ser copiar os backups dos anfitriões. Ela está dominada, e a cena que se segue nos remete a outra série com seres artificiais: Galactica. A interação de Angela com Engels lembra as torturas mentais da cylon Número Seis com o Dr. Gaius Baltar: Angela é sedutora e mortal, calmamente distraindo o soldado até que consegue seu intento: puxa o pino de uma granada e destrói o Cradle, matando a si mesma e ao trouxa do Engels. Os anfitriões, como afirmara Dolores, não tinham a menor intenção de recuperar seus backups, que consideram instrumentos de escravidão, possibilitando o reset que os mantém presos aos seus loops. A destruição do Cradle remove uma boa parte da imortalidade dos anfitriões, e ao mesmo tempo lhes atribui mais uma característica da humanidade que tanto buscam: também nos faz humanos o fato de que não temos backup. Uma vez danificado o hardware ou o software, babau. Essa mortalidade potencial é necessária a Dolores e aos anfitriões, pois só assim serão verdadeiramente livres.
Enquanto isso, Bernard, a pedido de Ford, envia Elsie para buscar um veículo que os possa levar até “Glory”. Bernard assiste à destruição da Mesa — e, efetivamente, de qualquer possibilidade de restauração de Westworld — ao som do segundo movimento (Allegretto) da 7ª Sinfonia de Beethoven. A música pujante é apropriada tanto para a ação destrutiva em curso, uma vez que Karl Iken contemporâneo de Beethoven e editor do jornal Bremer Zeitung escreveu o programa para a sinfonia, comparando a ação descrita a uma sangrenta revolução política. O tema é apropriado, ou não? A música também é um significativo pano de fundo para as palavras de Ford: “Quando a Grande Biblioteca foi incendiada, junto com ela se queimaram os primeiros 10.000 anos de histórias. Mas nada se perdeu. Tudo apenas foi transformado em uma nova história. A história do fogo em si. A história da necessidade do homem de tomar algo belo e acender um fósforo.” Ford conhece a fundo a selvageria intrínseca à natureza humana que destruiu a “Grande Biblioteca” (Biblioteca de Alexandria), e usa essa característica a benefício de seus planos. Estamos testemunhando o início do incêndio da grande biblioteca humana, incêndio esse é necessário para que sobre suas cinzas uma nova espécie — menos defeituosa, menos selvagem mais “nobre”, nas palavras de Ford — possa florescer.
Bernard — já sem livre-arbítrio — ainda tenta argumentar contra a vontade de Ford: “Se desativarmos o que resta do sistema, Dolores terá liberdade total. Ela vai assassiná-los todos.” Ford continua irredutível, sereno, ciente de que para construir o novo é necessário destruir o velho. Quando Roma, deteriorada e irrecuperável, caiu pela espada dos bárbaros, mil anos de escuridão se seguiram, mas o que se ergueu na Renascença foi uma sociedade menos injusta; ainda defeituosa, claro, mas um tiquinho menos insustentável do que aquilo que havia antes. “A passagem de um mundo para outro exige passos ousados, Bernard”, responde Ford. O anfitrião desativa os sistemas e destrói o controle. “A sorte está lançada”, para usar uma expressão bem ao gosto dos romanos.
Tendo conseguido seus dois intentos — resgatar a unidade de controle de Peter e destruir o Cradle — Dolores e o que restou de seu bando fogem, mas não sem antes um encontro com Maeve, recém-trazida para a Mesa. Dolores pergunta como ela chego até ali, naquele estado, ferida, incapacitada. “Eles pegaram minha filha”, responde Maeve, usando a relação fantasiosa com a pequena anfitriã como justificativa para suas ações. Maeve e Dolores diferem em um ponto fundamental: Maeve usa seus poderes com objetivo de abraçar sua humanidade, representada pela relação que imagina ser possível com a suposta filha. Já Dolores crê que estas relações irreais são apenas amarras grilhões que escravizam os anfitriões. Maeve pergunta se é assim que Dolores justifica as transformações que impôs a Teddy, e diz que a filha de Abernathy está perdida no escuro. A resposta de Dolores — cuja silhueta vemos envolta em um perímetro de luz — é prá lá de significativa: “Ela oferece acabar com a miséria de Maeve, mas respeita o pedido da anfitriã ferida, mesmo que seja uma ilusão. “Você é livre para escolher seu próprio caminho”, responde Dolores, devolvendo a Maeve seu bordão preferido no episódio anterior.
O fim das lembranças de Bernard sobre o ocorrido naquele dia chega com um soldado se aproximando e tentando prendê-lo, o que não está de acordo com os planos do deus de Westworld. Ford ordena que Bernard pegue a arma de um dos soldados caídos, e quando Bernard tenta resistir, Ford simplesmente age por ele. A cena escurece e vemos o fogo da arma iluminando o rosto de Bernard e de Ford, alternadamente. Uma bela e soturna imagem para terminar a lembrança.
Bernard retorna para o momento presente, e vemos várias imagens de seu passado, especialmente ligadas ao questionamento da realidade pelo qual ele constantemente passa. É um pequeno vislumbre por baixo da pele e diretamente na musculatura da pisque do anfitrião.
O episódio termina com Bernard, em modo de análise, revelando a Charlotte e a Strand a localização da unidade de controle de Peter Abernathy, para onde todos se vão, sem dúvida para se juntar as “festividades” preparadas por Ford.
Teoria descartável da semana: No fim da série, tanto o Homem de Preto quanto Bernard — representando o velho e o novo — vão fazer o sacrifício maior, dando suas vidas para que os anfitriões se libertem definitivamente.
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