Os líderes mundiais — todos, sem exceção — deveriam, se fossem honestos (HAHAHA!) consigo mesmos (triplo HAHAHA!) se unir e publicar um pronunciamento em resposta à situação que vivemos no mundo todo: “Sim, fomos derrotados”.
Esta é a conclusão a que chega Adam Curtis, o documentarista inglês que recentemente lançou o documentário Hiper-Normalização (HyperNormalisation), diretamente no canal da Internet da BBC (e disponível na íntegra no YouTube, infelizmente sem legendas em português).
O título do documentário vem do livro Everything was forever, until it was no more (Tudo era para sempre, até que acabou), publicado em 2006 pelo russo Alexei Yurchak (e disponível em inglês, apenas, aqui no Brasil), no qual analisa a situação dos últimos anos da União Soviética, em que todos sabiam que a situação era inviável, mas não conseguiam imaginar uma alternativa. Era amplamente sabido que os pronunciamentos do governo eram falsos, e todos só fingiam que as coisas funcionavam por falta de opção.
É justamente esta falta de controle — supostamente percebida pelos líderes mundiais — que gera o sentimento de híper-normalização. Segundo o raciocínio expresso por Curtis, ao longo do último quarto do século 20 os donos do poder — liderados pelos EUA — decidiram que a mudança efetiva em nossa sociedade traz em si riscos inaceitáveis. Alguém que de fato queira modificar algo pensando na melhora das condições que vivemos corre um risco enorme (de novo: segundo os detentores do poder) de causar problemas maiores do que os que já enfrentamos. A solução para esta questão? Assumir que não é possível fazer nada e trabalhar não pela mudança, mas pela manutenção do status quo.
Curtis começa seu arrazoado avaliando a situação de duas metrópoles em 1975: Nova York e Damasco. Na metrópole norte-americana vemos uma cidade afogada em suas próprias dívidas, sempre “roladas” com os bancos, que e, determinado momento decidem não mais comprar os títulos da dívida e exigem participação na administração da cidade a partir daí. Estava lançada a semente da promiscuidade do sistema financeiro com o governo, com um “bônus” inesperado: surge daí a figura de um jovem empreendedor imobiliário, bancado pelos financistas para erradicar a decadência da cidade. O nome deste jovem? Donald Trump.
Em Damasco vemos o presidente sírio Hafez al-Assad (pai do atual presidente Bashar al-Assad) lutando por atingir um sonho que naquela época nem era tão distante: unificar os povos muçulmanos, fortalecendo-se diante de um mundo em transformação. Impossível não lembrar da cena famosa de Lawrence da Arábia em que o britânico consegue unir (muito brevemente) as tribos árabes formando o Conselho das Nações Árabes. No filme a falta de uma visão comum e a ausência de um líder árabe (T. E. Lawrence era, obviamente, um estrangeiro) fez com que o plano caísse por terra. No caso do sonho de Assad, a derrocada se deu pelas mãos de Henry Kissinger, o secretário de estado norte-americano, que apoiou o país na decisão de tomar o partido de Israel na questão Palestina. O resultado foi a ira de Assad, e o início de uma onda de violência contra o ocidente que persiste até hoje.
É justamente na forma de lidar contra a vingança de Assad que se expressa mais uma vez o mecanismo de gerenciamento do status quo da visão de Curtis: ao invés de provocar um confronto com o ditador sírio, o ocidente cria a figura fantasiosa de Muammar Gaddafi, o ditador líbio. Recém-chegado ao poder, o coronel Gaddafi buscava fama e influência internacionais, e a ele foram atribuídas vários dos ataques terroristas da época, inclusive a queda do voo 103 da PanAm sobre a cidade de Lockerbie, na Escócia. Gaddaffi não só assumiu o atentado como pagou compensação às famílias quando de sua “reconciliação” com os EUA, mas era sabido pelas agências de inteligência tanto europeias quanto americanas que o atentado havia sido obra da Síria, com o aval de Assad. Só que confrontar Assad teria colocado todo o mundo árabe em pé de guerra — explícita, aberta, e não velada como no caso das ações terroristas — contra o ocidente. O inimigo imaginário na figura de Gaddafi era mais conveniente, uma vez que ele não tinha amigos na comunidade árabe e queira o destaque internacional que os atentados lhe emprestavam.
Curtis segue o documentário fazendo conexões com o “gerenciamento global” de vários elementos da vida nos últimos 40 anos: a vigilância cibernética, o culto ao corpo revivido por Jane Fonda nos anos 80, o surgimento das drogas de estabilização de humor como o Prozac, a ascensão dos movimentos políticos impulsionados pelas redes sociais, entre outros. A cada novo elemento vemos o narrador chegando à conclusão inescapável: é assim e não tem jeito. Qualquer tentativa de mudança é imediatamente cooptada pelo status quo, e mesmo aqueles que se rebelam contra o sistema estão, no fundo, colaborando para sua manutenção.
Em que pese o documentário ser muito bem feito e muito bem narrado, algo começa a incomodar depois de algum tempo. O que fica perceptível a quem estiver mais atento é que todas as imagens e cenas apresentadas fazem parte do arquivo (gigantesco a ponto de não se saber os limites) da BBC. Adam Curtis “cresceu” nas salas de edição da rede britânica, e é hábil no “corte e costura” de cenas. Para não dizer que Hiper-Normalização não tem cenas contemporâneas, um boneco movido a ventilador (destes que vemos na frente de borracharias em muitas de nossas cidades) filmado com um iPhone é visto de vez em quando entre as cenas. Mas fora o simpático boneco, tudo o que se vê é imagem de arquivo. E tudo que se houve é a narração.
Por que isso incomoda? Porque é um recorte de cenas apenas, escolhido para se encaixar em uma narrativa que nada mais é do que uma ideia na cabeça do autor. De fato, é uma ideia que tem coerência, mas no fundo não passa de uma ideia, de uma narrativa que saiu da cabeça de um autor. Os fatos são reais, mas nada garante que a conclusão também seja.
Penso que com o acervo da BBC muitas narrativas podem ser contadas — todas abalizadas por fatos escolhidos a dedo — inclusive algumas que contradigam frontalmente as conclusões vistas em Hiper-Normalização.
Em entrevista recente com Jonathan Lethem da revista semanal do New York Times, Curtis afirma: “O mais bacana sobre os seres humanos é que eles são versáteis. Eles podem ser tudo aquilo que você quiser que eles sejam.” O diretor consegue, em seu filme, demonstrar que esta afirmação talvez também seja verdadeira para os documentários.
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