A situação me pegou de surpresa por três motivos: o primeiro deles é que calculei duas horas para chegar a São Paulo, saindo de Campinas, e cheguei adiantado 45 minutos. Pois é, por mais que apenas 100km separem ambas as cidades, imaginar que qualquer dentro da capital possa ser atingido em menos de uma hora e meia é pedir para se atrasar. Naquela manhã de sábado, porém, meu tiro saiu pela culatra.
Bem, sorte minha, que tive a oportunidade de praticar um de meus passatempos prediletos de outrora: caminhar pelo centro de São Paulo. Como eu havia parado quase na virada da Boa Vista para a Barata Ribeiro, foi fácil escolher o destino: o Mosteiro de São Bento estava praticamente a um tropeço de distância.
Caminhei até o prédio imponente e, mesmo na aproximação, já mirei uma porta maravilhosa na fachada. Sou apaixonado por fotografar portas, o que meu Instagram mostra com clareza (@polterbyte aos que se interessarem). Ao chegar perto da porta, uma não-surpresa: lixo cuidadosamente aglomerado em um dos cantos. Papéis resultantes de uma refeição. Não me fiz de rogado, pois realmente queria aquela foto: juntei tudo e levei para dentro da Igreja, em busca de um lixo. Uma moça atrás do pequeno balcão na antessala à esquerda me fez o favor. Antes de sair, olhei para dentro da nave da igreja.
Não sou Católico, e igrejas me interessam pela arquitetura, pelas decorações, pela História. Essa me surpreendeu (minha segunda surpresa do dia em menos de 10 minutos): linda, barroca nas filigranas, nas cores, nos detalhes, nas texturas. Eu já havia passado em frente ao mosteiro algumas dezenas de vezes ao longo do tempo em que morei em São Paulo, mas nunca havia entrado ali. Como é bom encontrar novos espaços em São Paulo. E como é bom encontrar um local tão lindo em uma cidade que precisa tanto de ter sua beleza descoberta por quem passa por lá.
Certifiquei-me de que não havia missa naquele horário e não tive dúvidas: saquei o telefone do bolso e me lancei a fotografar aquele belo local. A sorte é que as duas fotos iniciais foram feitas da entrada, mirando o altar, a segunda em panorama vertical (um fantástico mecanismo dos smartphones), pegando do chão ao teto. Já ia me dirigindo às colunas quando o segurança me abordou.
Minha terceira e derradeira surpresa batia à porta: “Senhor, não pode tirar foto aqui dentro”, ele disse sem mudar a expressão mesmo diante do espanto estampado em meu rosto.
Como pode uma coisa dessas? Como é possível alguém criar uma regra desse calibre para um lugar daqueles? OK, é uma igreja, um local que exige respeito e circunspecção, mas na boa: não cola. É muito atraso pensar que alguém tirando fotografias em uma igreja está faltando para com o respeito e circunspecção.
Recentemente tive a oportunidade de visitar algumas das igrejas mais importantes e mais visitadas do mundo: Sacre Coeur, Notre Dame, Basílica de São Marcos, Basílica de São Francisco, Basílica de São Pedro. Isso sem falar em um leque de igrejas menores, mas nem por isso menos maravilhosas. Dentro delas, multidões de pessoas, várias rezando, várias admirando, várias explorando, várias fotografando.
Em nenhuma delas senti o ambiente sendo desrespeitado. Muito pelo contrário: o que se sobressai é a admiração por se estar em um local daqueles. Uma dádiva da Humanidade a si mesma. “Tá”, dirão alguns, “mas Paris, Veneza, Assis e Roma são cidades turísticas, e essas igrejas são pontos turísticos. Aí pode.”
Balela. Sim, as cidades citadas são turísticas, claro, mas por que São Paulo não pode ser considerada uma cidade turística? E como não levar em conta a importância histórica e turística do Mosteiro de São Bento? Veja a foto e tire suas próprias conclusões: o que essa igreja fica devendo para seus pares europeus? Por que impedir que essa beleza seja fotografada e divulgada para os quatro cantos do mundo?
A resposta é a mesma para várias das perguntas que podemos lançar a respeito desse nosso Brasil-sil-sil: atraso.
“Ah, não é não”, me diz um mais beato, “Isso me tira a concentração e me irrita ver gente fazendo turismo na igreja que eu frequento.”
Olha, acho que está na hora de você reavaliar essa tua fé, que ela tá bem fraquinha: você prefere dar atenção aos outros à sua volta que à sua busca pela espiritualização? Ah, para. Para, porque quem busca verdadeiramente a comunhão encontra até no meio de um desfile de escola de samba. Se está te sobrando atenção para observar quem está na igreja apenas silenciosamente caminhando, observando e fotografando, está te faltando dar atenção para o Mais Alto, que é o que você deveria estar buscando.
E está te faltando caridade, também. Sabe-se lá quantas centenas ou milhares de quilômetros a pessoa trilhou para chegar até ali, querendo lembrar uma lembrança para quem não pôde vir.
Até porque observe sua própria conduta quando você vai, digamos, a Aparecida do Norte, ou ao circuito das igrejas históricas de Ouro Preto, de Ilhéus ou de tantos outros lugares aqui mesmo no Brasil. Du-vi-de-ó-dó que nove entre dez “beatos” de plantão não saquem suas câmeras e celulares, fotografando até o chapéu que caiu no chão. E aí já fica mais que constatada a hipocrisia.
Bonito, não? Atraso, falta de caridade, hipocrisia.
Não, me perdoe, mas não está certo. O transeunte não está fazendo algazarra, não está emporcalhando o lugar, não está vandalizando, não está conversando alto ou assuntos incompatíveis com o local (e discutir algum detalhe arquitetônico é, sim, um assunto compatível com o local): deixa ele em paz. Curte a tua espiritualidade, e deixa ele curtir o local, que talvez nunca mais tenha a oportunidade de visitar. O segurança não vai perder o emprego por conta disso: seus serviços vão ser necessários para manter os turistas na linha, como ele já faz hoje, mas sem ser tão tacanho.
Até porque manter uma atitude de cordialidade para com o turista responsável traz benefícios à sua cidade. Traz mais esforços de preservação por parte do poder público, traz mais cultura, porque com o turismo vêm os espetáculos e exposições.
“Ah, mas São Paulo é uma metrópole, não uma cidade turística!” Tá, diz isso para Nova York, o maior centro de negócios do planeta, e um dos principais destinos turísticos desse mesmo planeta.
Eu sei: esse é um atraso menor, um pequeno atraso entre inúmeros mais prementes e de consequências mais catastróficas. Estou reclamando porque em um sábado de manhã não pude tirar as fotos que queria, buááááá. Entendo, claro. Mas a questão é que esse tipo de atraso está na raiz de muitos dos nossos problemas. Esse atraso, essa incapacidade de enxergar o mundo de maneira menos provinciana, contribui demais para que a gente fique eternamente (e de bom grado) nesse atoleiro em que transformamos nosso país.
Passou da hora de mudarmos essa situação, não porque me estragou parte do sábado, mas porque a gente tem potencial para ser muito maior do que isso.
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