O que vou te contar já faz décadas que aconteceu. Sim, eu fui a protagonista. Não, não estou sendo presunçosa. Talvez, muito pelo contrário: estou entregando minha cabeça ao autojulgamento. Naquela época, teria eu sido criativa ou uma bela produtora de bullshit? Qualquer semelhança das ideias deste texto com as do meu texto intitulado Entre o silêncio e a baboseira não é mera coincidência.
Era início de 1990 e eu devia estar em meu segundo ano de faculdade. O curso era de Propaganda e Marketing; a disciplina era de Criatividade, ou algo do gênero. Eu formava um grupo com mais dois colegas. Nós três trabalhávamos em tempo integral e estudávamos à noite. Como todos os jovens daquela época (e desta também), acabávamos sempre deixando para entregar as atividades da faculdade em cima da hora. O professor da tal disciplina nos passou umas quatro estrofes de um texto (não me lembro de que autor) que tratava poeticamente dos movimentos do sol e da lua. Nossa tarefa era incluirmos o poema na criação de uma nova manifestação, fosse ela literária, plástica, cênica, etc. A semana passou cheia de correrias e imprevistos. No dia da apresentação da tarefa, eu e meu grupo percebemos que não tínhamos qualquer ideia do que íamos apresentar. Falamos ao telefone pela manhã e estávamos para desistir de chegar a uma solução. Pensamos que o melhor seria tentar negociar mais prazo com o professor à noite. Mas, sabíamos que essa atitude nos traria consequências desagradáveis. Fiquei inconsolável e eu não queria perder a nota. Então, eu simplesmente pedi que meus colegas confiassem em mim porque eu ia arrumar uma saída. Eles não tinham nada a perder, então aceitaram a proposta.
Eu li e reli o tal do poema. Puxa, o que eu faria com aquilo? Na verdade, ele não me tocava realmente. Tentei tirar alguma emoção, nem que fosse de uma única estrofe. Mas, nada acontecia e, ao final de cada leitura eu me pegava desdenhando com um belo sussurro de “grande M…” ou, como diria Frankfurt (autor mencionado em meu texto anterior), eu sussurrava: “bullshit”! Foi nessa verdadeira fruição desdenhosa que eu criei uma solução para que eu e meu grupo pudéssemos garantir nossa nota.
Na hora do almoço, fui à procura de velas brancas e velas pretas. Em um país que é o berço do sincretismo, não foi difícil encontrar o material necessário. Liguei para meus “comparsas” e pedi renovação dos votos de confiança. Eu garanti a eles que tudo daria certo. Eu realmente acho que não tinha toda essa credibilidade, mas eu estava tão segura com minha solução que eles acabaram cedendo. Ao chegar à faculdade e dar-lhes as coordenadas básicas, a tal confiança ficou bastante fragilizada, pois minha proposta exigia que eles fizessem caras impassíveis, apesar de segurarem uma vela branca e uma preta: apenas isso. Acharam que eu era louca e acabei convencendo-os que levassem a sério, pois conquistaríamos a nossa nota do trabalho.
Chegou a nossa vez de apresentarmos e, quando fomos à frente da sala, meu amigo ficou ao meu lado direito e minha amiga ao meu lado esquerdo. Então, eu, com a cara mais séria do mundo, pedi a colaboração de todos porque tínhamos encontrado um mito indígena bastante interessante e que nossa proposta seria vivenciarmos determinado ritual praticado pela tribo. Eles cultuavam a passagem entre o dia e a noite para garantir um próximo amanhecer cheio de abundância. Assim como dizia o poema, a lua e o sol eram como divindades que lutavam pela posse do céu. Então, eu propus que apagássemos as luzes da sala, acendemos as velas brancas (representando o dia) e as velas negras (representando a noite). Eu recitaria o poema. A cada final de estrofe, todos nós deveríamos pronunciar juntos a expressão indígena: “ADREM EDNARG!”
Ainda hoje fico admirada como é que conseguimos cooptar a participação de todos os alunos. Também não sei como eu consegui, com minha voz “miniloquente”, recitar os tais versos daquele poema que eu tinha achado tão tedioso. Mas, a verdade é que o mantra indígena “ADREM EDNARG”, ecoando por toda a sala, iluminada apenas com as chamas de algumas velas foi totalmente incrível.
Quando terminamos, acendemos a luz da sala e pude confessar que o tal mito foi mera invenção e que, na verdade, todos nós estávamos recitando “Grande M…” de trás para frente. Alguns deles ficaram estupefatos, outros diziam que já tinham notado a “charada”. De qualquer forma, após os aplausos, eu e meu grupo garantimos a nota de que precisávamos. Meus dois colegas, assim como eu, respiramos aliviados e com uma perigosa sensação de que poderíamos convencer qualquer um de qualquer coisa. Ainda bem que não é apenas na faculdade que os jovens se formam… Hoje, posso dizer que tenho muito mais consciência e responsabilidade frente ao poder da persuasão.
Mas, afinal, porque eu contei essa história? Ao iniciar este texto, disse que minha intenção era entregar minha cabeça ao autojulgamento. Ou, por que não dizer, emprestar minha experiência para refletirmos juntos sobre a prática do embuste, ou, como diria Frankfurt, o falar bullshit.
O que eu e meu grupo fizemos foi mentir? Foi ludibriar? Foi enganar? Foi praticar o mais belo bullshit? Onde estaria a linha tênue entre cada uma dessas possibilidades? O embuste foi totalmente inofensivo (e até muito divertido para todos), mas, a sua prática seria o reflexo de uma sociedade primorosa na arte do “dar um jeitinho”?
Fomos premiados, mesmo tendo deixado o dever para o último instante. O mérito foi a criatividade. O mérito foi ter “dado um jeito na última hora”. A motivação, qual foi? Simplesmente alcançar a nota e não nos arriscarmos a pegar uma bela “DP”.
Talvez eu esteja sendo dura demais com aqueles três jovens dos anos noventa. Mas, diante do que temos passado com os engodos políticos aqui no Brasil, creio que nossa sensibilidade fica à flor da pele. Será que a cultura brasileira seria responsável pelas vergonhosas trapaças de nossa atualidade? Até que ponto a educação de nossos jovens tem sido falha? Formamos cidadãos de caráter?
Se estou condenando aqueles três jovens (ops! Sou um deles), tenho que ter parcimônia para constatar que, décadas depois daquele “delito”, eu não me envolvi em nada do que me venha a vergonhar (nem aos meus). Também não levei ninguém à derrocada por meio de qualquer expediente de persuasão.
De qualquer forma, entre a condenação e a absolvição, ainda há muito o que refletir… Sempre que resgato esse meu caso juvenil, sinto-me como um perfeito exemplar do falador de bullshit de Frankfurt. Para o autor, esse tipo de falador é diferente do mentiroso porque esse é incondicionalmente afetado pelos valores de verdade.
Mentir exigiria um grau de perícia no qual o contador de mentira se submete a constrangimentos objetivos, impostos por aquilo que ele tem como sendo a verdade. Por outro lado, o falador de bullshit goza de muito mais liberdade. Seu enfoque é panorâmico em vez de particular. A forma de criatividade na qual se fia é menos analítica e refletida do que aquela mobilizada na mentira; é mais extensa e independente, com oportunidades mais amplas para a improvisação, a nuance e o jogo imaginativo. O que o bullshit deturpa, essencialmente, não é o estado de coisas ao qual se refere – que a mentira deturpa por ser falso – nem as crenças do falante em relação a esse estado de coisas. Uma vez que falar bullshit não envolve falsidade, difere de mentiras em seu intento deturpador. O falador de bullshit pode não nos enganar, ou nem ao menos querer fazê-lo, sobre os fatos ou sua interpretação deles. E sobre sua intenção que ele tenta necessariamente nos enganar. Sua única característica distintiva é que, de certa forma, ele deturpa seu objetivo. […] Esse é o ponto crucial da distinção entre ele e o mentiroso. É impossível alguém mentir a menos que julgue conhecer a verdade. Falar bullshit não quer essa convicção. Seu enfoque não é sobre os fatos, como o do homem honesto e do mentiroso, a não ser que sirvam a seu interesse de se safar com o que diz. (FRANKFURT, 2005, s/p.)
Na visão de Frankfurt, eu não teria sido uma mentirosa. Teria sido uma competente faladora de bullshit. Não fiz qualquer pesquisa a respeito de mitos indígenas. Não me comprometi a conhecer a verdade para ser capaz de criar “mentiras perfeitas”. Meu enfoque não era sobre os fatos, mas queria mesmo era me “safar” de ficar com zero em meu trabalho.
E então? Qual é sua posição a respeito? Você condenaria ou absolveria aqueles três jovens?
Ótima pergunta e imagino como te traria problemas se fosse visto por mais gente, inclusive pela legião de pessoas de bens, honestas, corretas que abundam nas redes sociais... Eu, sendo professor, daria o zero pra vcs, mas não deixaria de ver a criatividade do grupo e daria outra chance. Agora, se isso levaria outros a achar que na próxima vez que perdessem um prazo seria só inventar algo criativo, aí não sei. A aplicação da verdade só leva a um caminho, o da verdade, mas o que é verdade? O que é realmente ético? Dar um jeitinho já não resolveu questões tecnológicas? Ah, poderiam dizer, mas esse jeitinho aí da Carla e amigos é diferente! Hmmmm Sei não, a criatividade só pode ser aceita e só virá de pessoas sempre honestas, de seres iluminados? :)
Está vendo, Prof. Jaylei? É realmente coisa para pensarmos. As avaliações escolares devem ter seus critérios muito claros para todos os envolvidos. No caso do "jogo do marketing", a melhor persuasão é a vencedora. A sobrevivência no mercado competitivo depende de respostas imediatas e pontuais. Se eu fosse professora de uma disciplina de Criatividade, em um curso de Marketing, teria também dado nota máxima ao grupo. Isso porque a função de uma disciplina como essa em um curso como esse é exatamente desenvolver competências ligadas ao poder do convencimento, à capacidade de respostas rápidas e ao poder de envolvimento da massa. Talvez, antes de culparmos os alunos, devamos culpar nossa cultura consumista...