O confrade Sergio Kulpas aponta, no Facebook, uma entrevista do El País com o candidato João Amoêdo, do Partido Novo. O título já dá o tom do que é comentado pelo Sergio: João Amoêdo: “Se empresas pagam salários distintos para homens e mulheres, Estado não deve interferir”.
Conheço pouco de Amoêdo, mas sei que se alinha com o mercado e que busca na iniciativa privada a forma que julga a única adequada para desenvolver o país. Em parte penso que ele tenha razão: uma observação rasa já mostra que as nações de nosso planeta que atingiram níveis de desenvolvimento que podemos considerar adequados, proporcionando bem-estar à sua população (ainda que em vários casos, apenas a parcelas dessa população) encontraram o motor de seu desenvolvimento na iniciativa privada. Claro, sempre vai ter gente apontando para Cuba como contraexemplo, mas é debatível se de fato se trata de um contraexemplo, de uma exceção ou (como vários outros apontarão) de uma piada de mau-gosto. Outros mostrarão que os países escandinavos têm governos fortes e presentes, mas é preciso ser cego para não enxergar a importância das empresas privadas no sucesso daquelas nações.
Enfim, esse é o posicionamento de Amoêdo: menos estado, mais mercado.
O título da entrevista já aponta para um dos direcionamentos de Amoêdo nessa questão: se a mulher recebe menos que o homem, isso não é problema para o Estado resolver. Trata-se, na visão do candidato, de um problema privado.
O Sergio aponta duas possíveis sequências para essa entrevista: “se o namorado ou o marido espancam a companheira até a morte, Estado não deve interferir”; “Se o homossexual ou transexual é alvo de violência letal, Estado não deve interferir”. Como eu disse a ele quando vi a opinião (e depois de ter lido o artigo), acho que ele acerta em criticar, mas não pelos motivos que aponta.
De fato, é temerário remover a arbitração do Estado nessa questão, mas não pelos títulos que o dileto confrade aponta para entrevistas futuras. A violência contra mulheres, homossexuais e transexuais é rigidamente coibida no Código Civil e no Código Penal, e não é esse ou aquele governante que alterarão esse arcabouço jurídico.
A crítica é válida por uma questão bem mais sutil e muito mais perigosa. Dois títulos futuros, a tirar pelo raciocínio de Amoêdo, seriam, na verdade: “Se as empresas pagam salários distintos para negros (ou nordestinos, ou outra minoria racial qualquer) e brancos, Estado não deve interferir” e “Se as empresas pagam salários distintos para pessoas com deficiência e pessoas sem deficiência, Estado não deve interferir”. Esses dois títulos alternativos são absurdos (se você acha que não, pode parar de ler o texto por aqui) e o título original, também. Aceitar o título original como “normal” é abrir um precedente que no futuro possibilitaria os dois títulos alternativos.
Por mais que se defenda uma presença mínima do Estado, é função desse garantir dignidade para seus cidadãos, e remover os mecanismos que (ao menos em teoria) mostram que, aos olhos do Estado, todo cidadão é igual e tem os mesmos direitos, é um passo para uma sociedade que é propositalmente injusta.
O interessante é que há precedentes nos países industrializados que alicerçam a garantia de igualdade entre homens e mulheres. Mais de três décadas atrás o psicólogo e baixista Art Davis moveu um processo legal bem-sucedido que resultou nas “audições cegas” para orquestras nos EUA. O mecanismo (implantado por força desse processo judicial) foi adotado também para orquestras na Europa, e continua em uso até hoje. Ocorre que antes das audições cegas, os maestros e diretores de orquestras escolhiam seus músicos por meio de audições ao vivo e “a cores”, ou seja, com o músico apresentando uma peça em seu instrumento para avaliação dos decisores. Resultado: 90% dos músicos de grandes orquestras eram do sexo masculino. O mecanismo de audição cega muda um ponto crucial: um biombo impede os decisores de enxergarem quem está tocando. Resultado: hoje as mulheres já são 35% dos músicos em orquestras onde a audição cega é adotada, e esse número vai aumentando à medida que músicos antigos vão se aposentando. Ou seja: as mulheres eram minoria como resultado único do machismo que imperava no setor, e quando o que passou a importar foi exclusivamente a competência musical, o panorama mudou sensivelmente. E o que possibilitou isso foi uma arbitração do Estado (uma vez que resultados de processos judiciais nos EUA têm força de lei).
Outro exemplo importante foi o da recuperação da Islândia após a crise mundial de 2008. Quem melhor conta essa história é o cineasta Michael Moore, em seu documentário Where to Invade Next. Moore vai à Islândia e lá encontra um governo com expressiva presença feminina, e descobre a receita islandesa para sair da crise: a substituição de boa parte do corpo executivo das instituições financeiras por mulheres. Não, nesse caso não veio por força de legislação, mas é contundente a efetividade da medida, e serve de parâmetro para avaliarmos o quanto o machismo empresarial é prejudicial.
Como já disse várias vezes, não sou nada fã de ideologias de esquerda. Pelo contrário, penso que quaisquer doutrinas comunistas, na prática, não se sustentam, e a História nos traz exemplos contundentes dessa afirmação. Mas o fato é que o capitalismo no estilão laissez faire também já deu inúmeras mostras de que não se sustenta (e está aí a crise de 2008 para tirar quaisquer dúvidas). Uma característica da tal “mão invisível do mercado” é que ela só se presta a uma atividade (muito particular das mãos, aliás): masturbar o próprio mercado. O mercado não está nem aí para ninguém, a não ser para si mesmo: é onanista. Pessoas não são relevantes, nem corporações, nem nações, nem o meio ambiente, nem o futuro da espécie humana. Nada disso importa ao mercado. Como as várias crises que já registramos mostram, sem regulamentação, o mercado prefere se autodestruir a deixar na mesa sequer uma oportunidade de ganho não realizada, legal ou ilegal, ética ou antiética.
Bacana, né? Quem entende isso e acha que tá tudo certo é por duas razões simples: primeiramente, porque tem como se proteger das consequências destrutivas das forças de mercado, e essa proteção vem de (muito) dinheiro acumulado; em segundo lugar, porque não está nem aí para o sofrimento alheio (e aqui não cabe julgamento, penso).
O interessante é que quem prega pela presença mínima do Estado — como no caso de Amoêdo — não se furta a receber o auxílio desse mesmo Estado quando dá com os burros n’água. O tal “risco sistêmico” que enfrentamos no Brasil na crise de 1997 e que os EUA enfrentaram na crise de 2008 foi debelado na base dos recursos públicos. Quem livrou a cara dos bancos, é bom lembrar, foi o Estado. Lembra do PROER? O Amoêdo lembra, garanto.
O fato é que o capitalismo precisa de regulamentação, senão implode. E começa essa implosão corroendo os direitos de quem não tem como defendê-los ou — como no caso de muitos eleitores atualmente — os entrega de bom grado e de mão beijada.
Bom dia, tudo bem contigo? "O fato é que o capitalismo precisa de regulamentação, senão implode." Quem o regulamenta?
É função do Estado, obviamente.
Fala Ruy, bom dia. Sempre com a gentileza de responder aos comentários. :) Beleza, mas manda essa letra pro Amoedo para ver como é o "novo" pensamento dele. :)
Nem precisa, Jaylei: ele vai discordar, como todo capitalista fã do Friedman discorda. O meu ponto é que o Estado é fundamental. E mais: nenhum país desenvolvido atingiu este status sem participação pesada e constante do Estado. Nenhum.
Ótimo artigo.
Muito obrigado, Diogo. Um excelente domingo procê.