O candidato à presidência da república Jair Messias Bolsonaro vem se destacando nas pesquisas de intenção de voto para 2018. Em cenários em que o ex-presidente Lula é candidato (o que ainda depende de viabilização pelo STF), Bolsonaro ocupa o segundo lugar. Sem a presença do “santo padroeiro da ignorância de todas as ilegalidades de seu governo”, Bolsonaro sobe para primeiro colocado, também em todos os cenários.
Em outras palavras, infelizmente não dá para deixar de levá-lo a sério nesse momento.
Muitos são os pontos questionáveis na vida pública e no posicionamento político de Bolsonaro, mas um deles deve ser avaliado com mais detalhes, dado o grau de insanidade que carrega, com o ilustre candidato buscando normalizar uma barbárie como se fosse solução para alguma coisa: a tortura.
Bolsonaro é favorável à tortura e não é de hoje. O vídeo mais famoso demonstrando esse posicionamento já tem quase duas décadas, e mostra Bolsonaro em entrevista defendendo abertamente a prática. “Eu sou favorável à tortura”, exclama abertamente o parlamentar, defendendo inclusive uma guerra civil para matar “uns 30 mil”, o fechamento do Congresso Nacional, e de quebra mais um golpe militar. Ditadura é um problema para Bolsonaro? Claro que não: “só desapareceram 282, a maioria marginais”, exclama como se fosse verdade ou como se 282 fosse um número digno de “só”. Nessa suposta guerra civil “se vai [sic] morrer alguns inocentes, tudo bem”, continua com desenvoltura. Não deixa de ser admirável observar alguém julgar, condenar e descartar seres humanos assim, com essa sem-cerimônia de quem limpa a gaveta de legumes de uma geladeira depois de voltar de duas semanas de viagem. O voto? Não resolve nada. Cidadão em desacordo com a noção bolsonariana de comportamento político? Matando “uns 30 mil”, tudo se resolve.
Os defensores de Bolsonaro alegam que o vídeo é antigo, expressa uma opinião desatualizada do atual candidato à presidência da república, e que foi editado para parecer pior do que na realidade é. Vindo de trás para frente nessa análise, os cortes podem ter, de alguma forma, colaborado para a impressão de que se trata de um celerado, e não de um ser humano em pleno de suas faculdades mentais, mas é uma distinção sem diferença: a opinião e o posicionamento de Bolsonaro são claríssimos, com ou sem cortes. Não foram os cortes que colocaram palavras de clamor por violência e repressão na boca de Bolsonaro. Sobre o primeiro ponto, sim, o vídeo é antigo e muito bem pode expressar uma opinião desatualizada de Bolsonaro. Será mesmo?
Não, não será. Em entrevista de 2015 para o programa Antenados, do canal evangélico Boas Novas, Bolsonaro é um pouco menos histriônico, mas defende a tortura com a mesma verve, com a mesma intensidade, e com ignorância renovada sobre a total ineficiência dessa barbárie. A frase cabal não deixa dúvidas nem sobre o posicionamento e nem sobre a ignorância de Bolsonaro:
“A tortura, enquanto arma de guerra é a maneira mais eficaz de você conseguir uma informação confiável em tempo hábil.”
Um parêntese. Esse ponto de vista de que “uma torturazinha em nome do bem, que mal tem?” é muito semelhante àquela questão do cidadão de bem tem direito a andar armado, e por vários motivos.
Essa fala do deputado expressa subliminarmente um tipo de reação à frustração gigante de uma parcela considerável da população. É o sentimento de impotência diante de um crime mais organizado, violento e brutal que torna esses subterfúgios — todos inúteis, prejudiciais, remendos imprestáveis, a bem da verdade — interessantes para muita gente.
Quem diz “Bandido entra armado em casa? Quero passar fogo!” não percebe que o bandido sabe de longa data que tem arma na sua casa, já tem experiência de como te pegar desprevenido. E vai lá com mais gosto, uma vez que sabe que vai sair do local com mais armas ainda. Isso sem falar no tsunami de assassinatos por motivo banal que vão vir a tiracolo. Fecha parêntese.
O mesmo se dá com a questão da tortura: um remendo inútil, prejudicial, que vai contra todos os interesses do cidadão; que alguns veem com bons olhos porque não conseguem enxergar o buraco que estão querendo cavar para si mesmos. Em primeiro lugar, porque não há estudos sérios atestando que a tortura tem valor informacional. Pelo contrário, agências de inteligência (como no caso da CIA) não conseguem justificar a tortura diante de seus governos, nem quando instadas sigilosamente a fazê-lo. O fato é que o detento acaba falando o que o torturador quer ouvir, de forma a não ser mais torturado. Esse artigo do The Guardian sumariza bem a situação: a validade das informações obtidas sob tortura é desprezível. Apesar de ter sido usada em milhares e milhares de ocasiões nos séculos XX e XXI (em que o método científico é amplamente adotado), não há evidência científica nenhuma que aponte para a validade da tortura como método de obtenção de informações. Afirmar, como faz Bolsonaro, que a tortura é uma maneira eficaz de se obter informações (e ainda por cima em tempo hábil) é uma falácia, pura e simplesmente.
O efeito maior da tortura é na massa de manobra eleitoral do candidato que a defende. Bolsonaro entende perfeitamente que, ao cogitar a tortura, joga para sua torcida. Seu eleitor está “cansado dessa bandalheira” (seja lá como defina a tal “bandalheira”) e quer que o “bandido” sofra tanto quanto ele tem a percepção de estar sofrendo. Se não, vejamos: o executivo e o legislativo são corruptos, e o judiciário não faz senão sancionar essa corrupção institucionalizada (ou assim esse cidadão percebe, o que vale para esse e para os próximos pontos); a carga de impostos é alta, e os benefícios recebidos desses impostos (saúde, educação, segurança) são irrisórios; o crime só faz aumentar e se organizar; a polícia é absolutamente incompetente; a sociedade chafurda na lama da imoralidade. E por aí vai.
O eleitor que se exaspera com esse quadro entende que não há saída institucional para a situação. Ele ouve os enéas de ontem e os bolsonaros de hoje dizendo que o voto não resolve nada e acredita nas medidas de exceção propostas. A frustração é tão grande que, mesmo inúteis, as supostas soluções que apenas causariam sofrimento a seus supostos inimigos já soam como um passo na direção certa. É como se dissesse algo na linha de “esses bandidos e esquerdopatas são os responsáveis pelo meu sofrimento, então quero que sofram na pele as consequências de suas ações.”
Em outras palavras: quem pensa assim, não busca justiça, mas sim vingança.
Não pensam em melhorar a situação para si mesmos e para o país, mas buscam algum tipo de catarse por meio do que consideram ser uma punição válida para o inimigo.
Um ponto no mínimo surreal da entrevista de Bolsonaro é que ela ocorreu em um canal evangélico, que supostamente defende valores cristãos. Os entrevistadores bem que tentam, timidamente, incompetentemente, desafiar Bolsonaro. Este, contudo, com o discurso, as falsas equivalências e os sofismas devidamente ensaiados, fica livre para expor seu ponto de vista, e eles, os entrevistadores, logo desistem e passam a agir como espectadores, compactuando com a situação. Bolsonaro cria para si a efígie do “Torturador em Cristo”, sem perceber (ou se importar com) a monumental contradição que é defender a tortura e se dizer cristão ao mesmo tempo. E ao fazer isso, empresta legitimidade a esse despautério. Sua opinião como deputado federal e postulante ao posto máximo do país é levada a sério, e supostamente embasada em sua experiência militar. Quem já está cansado da situação, buscando alternativas, olha para essa via tortuosa sendo proposta com desembaraço e em inúmeros casos, acha que “é por aí mesmo”. Ledo engano. O nobre deputado sabe muito bem que, se não houver um golpe institucional — daqueles que revogam a Constituição, dissolvem o Congresso e põem bridão no judiciário — nenhuma de suas diarreias verbais tem condição de ir além de lhe render votos (e para ele, tudo bem, pois o que interessa são os votos).
Aliás, ele fala e expõe essas opiniões como se ainda fosse militar, o que é outro problema. Quem se baseia na “experiência” militar de Bolsonaro, muitas vezes faz questão de ignorar que ele foi um militar muito aquém do que se espera, tanto por seu excesso de ambição, por sua truculência, pela falta de lógica e coerência de suas tentativas frustradas de liderança, e também pelos atos terroristas que planejou em nome de aumentos salariais. Pelas conclusões do próprio Exército, Bolsonaro nunca foi exemplo a ser seguido, no que concerne à carreira militar.
É esse o indivíduo: um parlamentar ineficiente (teve apenas dois projetos aprovados em 26 anos de mandato), um militar de carreira prá lá de questionável, um suposto cristão que prega a violência ilegal e ineficiente contra seu semelhante por meio da tortura.
Por fim, outra questão ignorada — propositalmente ou não — por quem defende a tortura: em um estado de exceção (e, por definição, a tortura nos joga em um estado de exceção), não há garantias constitucionais. Tudo vale, qualquer um é alvo potencial. Abrir esse precedente é um absurdo. Por mais que as regras comecem “rígidas”, é bem mais fácil afrouxá-las, uma vez que o mecanismo é instituído. O cidadão que sofreu violência se sente vingado, num primeiro momento, quando vê um sequestrador sendo torturado, mas não sabe que está um passo mais próximo de ele ser o alvo da tortura em uma próxima ocasião.
É isso que Bolsonaro defende: a violência ilegal e ineficiente não como forma de obter justiça, mas como forma de vingança, com o resultado maior sendo a redução de garantias constitucionais ao indivíduo. Tudo isso ao mesmo tempo em que se afirma cristão.
O filósofo francês Joseph-Marie Maistre nos lembra de que “cada povo tem o governo que merece”, e o Barão de Itararé é mais contundente ainda, quando nos diz que “se há um idiota no poder, é porque os que o elegeram estão bem representados”. Espero que tenhamos juízo de fazer melhor por nós mesmos e por nossa nação do que pondo um celerado no posto maior da República.
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