(ATENÇÃO: esse texto apresenta spoilers do filme “A qualquer custo”)
O faroeste é um dos gêneros narrativos fundamentadores da história do cinema. Tido como desgastado, foi parodiado e relegado a tipo de filme que não conclamaria as massas. Em estruturas bem definidas de tipos humanos, de tramas ligadas ao destino — redentor ou danoso — de seus protagonistas, do lugar social em que os personagens ocupam e do problema moral que lhes aflige, esse gênero predominantemente norte-americano foi relido por grandes diretores europeus, como Sergio Leone e Jean-Pierre Melville, por exemplo. A estética neorrealista deve bastante aos filmes de velho Oeste por inserir um homem em um meio e, assim, as obras que dialogam com esse esquema trazem uma riqueza de elementos ainda cara ao cinema da atualidade, em que o engajamento persiste, agora como um recurso persuasivo ao público.
Ainda assim, filmes de faroeste sempre estão presentes ao menos a cada década: ou é produzido por um realizador novato, ou é revisitado por um grande diretor da atualidade, vide os exemplos recentes de Quentin Tarantino (em Django Livre e Os oito odiados) e dos irmãos Cohen (em Onde os fracos não tem vez). Nessas novas versões, o gênero tem sido ajustado à atualidade, e sua estrutura narrativa fixa permite nesses casos emergir um contexto, um plano de fundo em evidência sem o qual o filme não garantiria sua grandiosidade. Afinal os cenários espetaculares do deserto, típicos dos clássicos westerns americanos, como em John Huston por exemplo, são um outro protagonista, no entanto nesse caso estão ausentes, inacessíveis. O caubói, imagem de vida livre, está circunstanciado às cercas nos dias de hoje.
Esses são o tema e a estrutura do filme A qualquer custo (Hell or High Water. EUA, Policial/Western – 2016. 01h42) dirigido pelo escocês David Mackenzie e roteirizado por Taylor Sheridan (do ótimo Sicario: terra de ninguém). Trata-se da história de dois irmãos, o divorciado e desempregado Toby (interpretado por um ótimo Chris Pine) e o ex-presidiário e assaltante Tanner (com a atuação enérgica e não menos sutil de Bem Foster) que elaboram um plano para assaltar pequenas quantias das agências do banco e para quitar a hipoteca da propriedade da família, prestes a ser perdida pela inadimplência e pelos juros após a morte da mãe.
Na outra ponta dessa narrativa, temos os Texas Rangers Marcus Hamilton (interpretado por Jeff Bridges em um papel coadjuvante primoroso, que justifica sua indicação ao Oscar desse ano) e Alberto Parker (interpretado por Gil Birmingham, que também merece menção pela ótima atuação, pois a atuação de Bridges se deve também a seu parceiro de cena). Hamilton é um policial branco viúvo às vésperas de sua aposentadoria, e vislumbra no caso a possibilidade de encerrar sua longa carreira com distinção e louvor. Parker é descendente de mexicanos e indígenas, casado, cuja etnia é constantemente lembrada pelo parceiro de trabalho, com comentários jocosos e racistas, misto de franqueza e brutalidade que destoam de um discurso politicamente correto que toma as narrativas contemporâneas atuais. Para tanto, Parker responde com mudez e, no fim, com a mesma ironia, ao comparar a expulsão das pessoas de suas casas e terras devido a dívidas, com as guerras de expansão dos EUA. Não nos esqueçamos de que o Texas principiou como fronteira e território ocupado. Diretor e roteirista se arriscaram, mas de maneira correta: ao evidenciar problemática da fronteira por meio dos discursos dos personagens representantes da lei, também se demonstram os impasses originários desse modo de ocupação (da terra sem lei, dos discursos sem a vigilância da correção política).
Emergem aos poucos as motivações do plano dos irmãos: salvar a propriedade do resgate do banco, garantir um futuro para os filhos de Toby, dar o troco no banco e, claro, não serem pegos. A propriedade da família está em jogo, e os irmãos são lançados constantemente a um estado de impermanência. Na verdade, todos os moradores daquela região estão em risco, envolvidos em situações em que se deslocam ou estão na iminência de ser obrigados a se mudar, devido às dívidas, ao trabalho (ou à falta deste). Isso não nos é dado no início, mas aos poucos por meio dos planos-sequência em que a região do oeste do Texas é captada como um lugar pobre, abandonado, cujos moradores se encontram também endividados, e as terras estão tomadas pela especulação imobiliária ou pela exploração petrolífera. A continuidade desse ciclo é apontada pela presença dos outdoors a ofertar empréstimos e renegociação de dívidas, uma espiral que o protagonista Toby luta para quebrar. O verdadeiro inimigo é o setor financeiro que, à distância, impõe uma pauta silenciosa e não menos avassaladora de exclusão econômica aos habitantes. Assim, é fácil entender os irmãos Howard como proscritos, uma versão moderna de Robin Hood, que são apoiados ou até mesmo protegidos por testemunhas de seus assaltos. A fala de Toby no fim é contundente: fugir da miséria que contamina tudo; estabelecer um abrigo, um lar. A fotografia e a iluminação nas cenas refletem isso: cenas diurnas, com ISO aberto. Não há sombras para se refugiar.
A narrativa insere a complexidade desses personagens em contingência: os irmãos são ligados por uma história de uma família disruptiva (pai violento, mãe passivo-agressiva), que se insinua em momentos sutis, como em diálogos alusivos a esse passado. A resposta dos personagens às reminiscências é sempre uma brutal ironia e uma negação de emoções. A herança, a aridez da terra que pode se perder, também é a aridez das relações. Ao mesmo tempo, é esse o mesmo elemento que permite aos dois irmãos realizar os assaltos. Eles sabem que devem se tornar o inimigo, como atesta um dos diálogos. De outro lado, o ranger Marcus insinua levar às últimas consequências terminar sua carreira com distinção e louvor: com sorte, busca morrer em serviço, no cumprimento do dever, para evitar uma solitária aposentadoria. Já Parker revela o ressentimento de ser homem da lei e, ao mesmo tempo, ser lembrado constantemente de não pertencer à sociedade; ele revida com a indiferença a exposição dos dramas do velho parceiro. Mesmo as mulheres, quando aparecem, são lutadoras não menos imponentes. A ex-esposa de Toby; a jovem garçonete, mãe a defender sua gorjeta; a velha atendente a impor o cardápio tradicional aos rangers. Todas elas tentam manter um modo de vida, superar o que se espera delas. Como nada é óbvio no filme, nem o confronto final é pleno: é anticlímax, mas não menos grandioso pelo que faz antever.
Criminosos e homens da lei necessitam ser duros: como se nota em cenas preciosas do filme, o Texas é um lugar em que as relações ocorrem por meio da violência, na ponta da bala e da língua literalmente. Todo o filme é um esforço de resistência do modo de vida, do cotidiano, da dignidade, do gênero de cinema. No último caso, um esforço muito bem-sucedido. Nisso reside a alma do Faroeste, como se antevê também em produções recentes, como Westworld, para ficarmos em um exemplo próximo: uma luta contra um destino inevitável.
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Foto: Ruy Flávio de Oliveira, dez. 2016.
Análise muita aguda, caro Guilherme! Essa falta de refúgio, de lar como colo, tem ganhado tons deprimentes nesses faroestes contemporâneos, não? Lembrei muito do "Tudo por justiça", com o Christian Bale. Abraço grande do Pedro.
Guilherme. Faroeste, bang-bang, tema apaixonante que povoou minha adolescência. E como sempre, uma análise criteriosa nos detalhes. Não quero perder.