Estive em uma palestra cujo título era: Advento e Natal e sua atuação na alma humana. Não, não era um encontro religioso. O que se pretendia era abordar a visão antroposófica sobre o tema. Rudolf Steiner (fundador da Antroposofia) afirma que recebemos uma convocação crística na época do Natal. Não se refere ao Cristo católico ou de qualquer outra religião, mas no sentido do significado etimológico da palavra: khristós = o ungido, o consagrado. Devemos nos conscientizar da origem humana: simplesmente divina. Ou seja: somos a condensação máxima de matéria espiritual. E, o Natal, quando se comemora o nascimento de Jesus, o ungido, pode reacender nossa fagulha luminosa. Trata-se de uma época em que a divindade surge anunciando, lembrando-nos de nossa essência consagrada, de nossa essência crística.
Assim como teria sido com Maria, mãe de Jesus, diante dessa anunciação, ficamos atordoados num primeiro momento. Depois, podemos ficar pensativos, cheios de dúvidas. Então, nos cabe questionar e entender o significado do impacto desse advento. Por fim, podemos lançar mão de nosso livre arbítrio: decidirmos por assumir nossa essência verdadeira ou não…
Assumir nossa identidade divina dá um bocado de trabalho, pois, a partir daí, temos que deixar vir à tona nossos dons e aptidões natas. Segundo Steiner, o que diferencia as individualidades humanas é a tônica com a qual cada uma nasceu. Cada um é bom fazendo algo a seu jeito, sabe? Só que, no decorrer de nossas vidas, somos adestrados a padrões de sistemas competitivos em que todos tentam, igualmente, ser diferenciados. Resultado: todos são igualmente sem identidade própria.
Nas palavras de Steiner:
Os novos sentimentos cristãos mudarão muitas opiniões e conceitos. Por exemplo, entender-se-á como eram vistos os profetas do Velho Testamento. Eles estavam a serviço de Jeová, que lhes outorgava certos dons que se sobressaíam das características do povo em geral.
Ele abençoava estes dons que lhes eram transmitidos pelo sangue. Jeová não atuava sobre a consciência desperta, diurna, mas sim durante o sono.
O verdadeiro conhecedor das leis no Antigo Testamento sentia no seu coração, que aquilo que diferencia os Homens pelos dons e aptidões e que alcançava dimensões elevadas nos profetas nasce de fato com o Homem. Mas eles só podem servir ao Bem se o Homem, no sono, penetra no mundo onde Jeová guia os impulsos da sua alma e transforma espiritualmente as aptidões ligadas ao corpo físico. Isto aconteceu em tempos passados. Novas imagens devem penetrar na evolução histórica mundial. Nos novos tempos, o Homem deve tornar-se apto a espiritualizar na vigília, na consciência diurna, clara, aquilo que no passado, conforme acreditavam os antigos hebreus, Jeová transformava durante o sono inconsciente.
(Trecho de uma versão livre, segundo uma palestra de RUDOLF STEINER, proferida em Basiléia, em 22-XII-1918). Tradução: Leonore Berlalot Revisão do português: Áurea Maria Salgueiro Rolo São Paulo, junho de 1992)
Pois é… Que “responsa!!” Atuar como ungidos em pleno dia-a-dia de nossa contemporaneidade! É ou não é um trabalho hercúleo? Esse é o Advento. Você está preparado para ele?
Nessa mesma palestra que eu mencionei, eu conheci um texto de Clarice Lispector que me fez acreditar que a autora tinha consciência do verdadeiro espírito do Natal.
A ANUNCIAÇÃO
Tenho em casa uma pintura do italiano Savelli — depois compreendi muito bem quando soube que ele fora convidado para fazer vitrais no Vaticano.
Por mais que olhe o quadro, não me canso dele. Pelo contrário, ele me renova. Nele, Maria está sentada perto de uma janela e vê-se pelo volume de seu ventre que está grávida. O arcanjo, de pé ao seu lado, olha-a. E ela, como se mal suportasse o que lhe fora anunciado como destino seu e destino para a humanidade futura através dela, Maria aperta a garganta com a mão, em surpresa e angústia.
O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas: carnudas, e o seu rosto é o rosto de um homem.
É a mais bela e cruciante verdade do mundo.
Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir.
A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.
(LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo – Crônicas. Anunciação. 21 de dezembro de 1968. Pág. 163 . 4 ª Edição. Rio de Janeiro, 1994. Ed. Francisco Alves).
Não sei quanto a você, mas já não consigo me fazer de cega frente à realidade não visível. Frente ao chamado interior. Frente aos cutucões do meu próprio Arcanjo. Ainda me encontro impactada pelo desconforto da responsabilidade. Já mergulhei em introspecções só pensando a respeito. Hoje, começo aquela fase da indagação, da investigação: afinal, qual é a minha verdade? Sei que não posso postergar por muito tempo minha decisão: assumir ou não assumir meus dons e aptidões que me foram dados ao irromper em minha existência?
Enfim, o que tenho a dizer, por enquanto é: Feliz Natal! Que você aceite o impacto do Advento em seu coração!
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