A literatura é prolífica em nos apresentar distopias, uma mais horripilante que a outra. Em A Máquina do Tempo, H. G. Wells nos mostra a deterioração da Humanidade em duas espécies, os Eloi, pacíficos, apáticos, vivendo frugalmente, e os Morlocks, predadores dos primeiros, vivendo na escuridão. Em Fahrenheit 451, Ray Bradbury nos apresenta um futuro em que a censura cria uma realidade em que impera a alienação total, e os livros — as ideias, o amálgama dos próprios pensamentos — são proscritos. Em Admirável Mundo Novo, as castas genéticas são uma realidade, e a sociedade é controlada por meio de um mar intransponível de distrações, minuciosamente programadas por cientistas prá lá de competentes.
No cinema, outras distopias não menos nefastas nos têm sido apresentadas com sofreguidão mórbida. Em No Mundo de 2020 (a triste tradução do título genial Soylent Green), o abismo brutal entre os poucos ricos e a massa de excesso de população, conjugado com a falta de comida gera o próprio inferno na Terra. Em Eles Vivem os alienígenas não só já chegaram, mas vivem entre nós há muito tempo e comandam nossas vidas. Não representam a “ameaça comunista”, como a metáfora de muitos filmes de invasão das décadas de 50 a 80, mas são, de fato, os mais selvagens capitalistas que poderíamos imaginar. Em Os Filhos da Esperança a espécie humana está em franca extinção porque ninguém mais consegue se reproduzir.
E por aí vai.
Em minha opinião pessoal, o mais tenebroso dos futuros distópicos — não que os demais sejam “brisas” — continua sendo a obra 1984, de George Orwell. Nenhum pesadelo é tão tenebroso quanto a possibilidade de ter os próprios pensamentos vigiados, ter uma completa reedição da História, ter a própria língua alterada para facilitar a dominação. Pobre Winston. Em filme e, sobretudo nas páginas do livro, essa obra é, para mim, o retrato do pior futuro possível.
Todas essas distopias têm em comum o fato de serem neutras em termos de gênero. Trazem a marca de suas épocas, é claro, mas os infernos descritos são tão tenebrosos para mulheres quanto para homens (se bem que em vários casos, as identidades sexuais não-cis são especialmente perseguidas e maltratadas, é bom lembrar).
Pois é. Em 1985, a escritora canadense Margaret Atwood mudou esse cenário, criando um dos mais horripilantes pesadelos em forma de distopia, e certamente o pior deles sob o ponto de vista feminino: O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale, no título original em inglês). Li esta sombria história há mais de uma década, e jamais consegui me livrar do mal-estar que ela provoca. Li sem saber onde estava embarcando, aliás. Na época (como hoje), eu caçava ficções científicas onde podia, e lia qualquer coisa cuja descrição começasse com “em um futuro…” (próximo, distante, tanto fazia). Trombei com muitas porcarias nesse processo, e com algumas pérolas. O Conto da Aia é, sem dúvida, uma pérola. Uma dolorosa pérola, mas uma pérola mesmo assim.
Recentemente, o Hulu, o principal concorrente da Netflix nos EUA, produziu uma série sobre o livro, e essa série estreou no dia 26 de abril, com a disponibilização dos três primeiros episódios. Em função disso, fui obrigado a revisitar esse pesadelo, uma vez que não consigo resistir às boas séries (que andam mais que escassas na telinha).
A produção é primorosa, com a atriz Elisabeth Moss (revelada para a TV americana na série Mad Men: Inventando Verdades) encabeçando o elenco, que conta ainda com Joseph Fiennes (da série Flashforward: Linha do Tempo) e com Ivonne Strahovsky (da série Dexter).
No enredo, vemos a taxa de natalidade caindo a níveis abissais, o que gera um golpe de estado nos EUA e o nascimento de uma nova nação, chamada Gilead. Esse novo país é, na verdade, algo entre uma teocracia e uma ditadura, com lei marcial vigorando o tempo todo. As mulheres são destituídas de todo e qualquer direito, e divididas entre “martas”, que são serviçais, e “aias”, que são mantidas por sua capacidade de procriação. A história é contada por Offred (Moss), uma aia.
A jovem vive na residência do comandante Waterford (Fiennes), e é frequentemente submetida a um ritual de procriação, no qual ela é mantida imóvel por Serena Joy (Strahovsky), a esposa do comandante, enquanto esse a penetra sexualmente, na esperança de produzir uma criança. Todas as aias, aliás, são mantidas para o mesmo propósito nas residências onde habitam, e são submetidas frequentemente ao mesmo tratamento.
De quebra, uma doutrina fundamentalista cristã, absolutamente deturpada e destilada para garantir o controle da população, é imposta a todos os que não detém o poder, e mais violentamente às aias.
O livro é bem escrito a não poder mais, e trata o assunto com muita seriedade, com muito cuidado. É perceptível como a autora sofre ao descrever as dores de Offred. Ela mesma diz: a obra a assombra até os dias de hoje. É o que acredito, pelo modo de descrever e de nos apresentar Offred e as situações pelas quais ela passa. O livro é doloroso, mas vago em responder uma das questões fundamentais da história: como chegamos a esse ponto? Já a série, não: é brutalmente explícita. À medida que somos apresentados ao dia-a-dia de Offred, vemos flashbacks do caminho doloroso que ela foi obrigada a trilhar para chegar até ali. Somos levados a testemunhar todos os passos da desconstrução de sua identidade, da destruição de seus direitos e da substituição de tudo isso por uma quantidade astronômica de medo e insegurança.
O regime totalitário sob o qual Offred vive é implacável. Toda forma de oposição é combatida com vigor e violência, e os corpos dos que resistem são dispostos em público, como aviso. Em cada canto, em cada olhar, pode se esconder um espião. A opressão é palpável, e a tristeza que essa opressão gera em nós testemunhas, acoplada ao fato de que as aias são vistas como meros objetos de reprodução, desconsideradas por seus senhores e desprezadas a não poder mais por suas senhoras, é algo que nos leva à beira das lágrimas se paramos para considerar a situação em seu todo.
O Conto da Aia é uma das raras histórias que empilha horrores, acumulando-os ao mesmo tempo em que os multiplica, que os potencializa. Descreve um cenário que nos afoga como se estivéssemos submersos em uma piscina de mel, presos alguns metros abaixo da superfície. Emergir não é fácil, depois de realizado o mergulho, e quando finalmente conseguimos respirar novamente, olhamos à nossa volta e nos felicitamos por viver aqui, no mundo real, longe do tétrico país de Gilead. Bem, pelo menos até nos darmos contas de que em algumas partes desse nosso mundão de meu deus a realidade de Offred é vivida por um enorme contingente de mulheres, diariamente. Mulheres que não têm domínio sobre seu corpo. Mulheres que são mutiladas sexualmente porque é proibido sentir prazer. Mulheres que são culpadas e punidas por seus próprios estupros. Mulheres que são apedrejadas em caso de adultério (mesmo que esse adultério seja forçado por um homem). Mulheres que às vezes aparecem na mídia como vítimas de estupros coletivos, pelos quais nem sequer um dos perpetradores é punido. Mulheres que são impedidas de estudar ou de adquirir qualquer tipo de conhecimento que lhes permita um módico de liberdade e independência. Mulheres que não têm escolha absolutamente nenhuma em suas vidas, sendo tratadas como mera propriedade dos homens que as cercam.
É uma história que certamente faz a gente pensar. No meu caso, o contraste entre a ficção de Gilead com a realidade, digamos, da Arábia Saudita, ao mesmo tempo presente com a congruência dessas duas realidades é algo impressionante demais para ser ignorado. A tristeza que sentimos por Offred é fictícia, mas tem o inestimável valor de nos emprestar, ainda que imperfeitamente e por apenas alguns instantes, as lentes pelas quais qualquer mulher que sofra violência por conta de seu gênero enxerga o mundo. A ficção de Margaret Atwood nos aproxima da realidade que temos aqui mesmo, em nosso planeta, em nosso século, muitas vezes aqui ao lado, com pessoas a quem conhecemos, que nos são caras.
Se você acha que testemunhar a violência desse livro, dessa série, não é necessário, não discordarei de você. Não é necessário para muitos e não é efetivo para tantos outros, também. Mas, para quem é ignorante (como muitos de nós) e ao mesmo tempo tenta manter os olhos abertos (como muitos de nós), é um aprendizado. Uma poesia triste, mas vital; um sentimento doloroso, mas importante. É a oportunidade de sermos arremessados de cabeça contra uma parede de humanidade, e alguns de nós precisamos disso. Alguns outros de nós, que não precisamos, vamos nos beneficiar se nos dermos essa oportunidade. Por mais que seja doloroso prá dedéu.
Sim, 1984 é uma precisa descrição de um inferno do qual não estamos tão longe. Mas O Conto da Aia — o livro, certamente, e a série com mais intensidade ainda — consegue superar os horrores de George Orwell para pelo menos metade da população de nosso planeta. Até porque, para um contingente dessa metade da população, não é ficção, mas sim a realidade.
Comments: no replies