Ao longo da última década, tenho nutrido um hobby inconfesso: acompanhar as desventuras da Cientologia. Nascida nos EUA em 1954 essa organização recebeu o status oficial de religião (inclusive com todas as isenções de impostos) em 1993, mas ainda é considerada uma seita em vários países, como no caso da França.
A Cientologia nasceu da cabeça do escritor de ficção científica Ron L. Hubbard, cresceu em número de fiéis durante as décadas de 60, 70 e 80, e tem estado em declínio desde então, pelos números apresentados por Mike Rinder, um ex-membro de alto escalão da organização. Apesar de os números oficiais falarem em 10 milhões de membros no mundo inteiro (um número, como reforça Rinder, que não muda desde 2006), o IAS — International Association of Scientologists, listava 20.000 membros em 2016 (também segundo Rinder). O consenso entre os observadores externos da Cientologia é de que não haja mais de 40.000 membros no mundo inteiro.
Em vários documentários que vi sobre Cientologia nos últimos anos, o que mais impressiona é o semblante de seus ex-membros. Expressões tristes, sofridas, um tanto envergonhadas, de quem percebe que errou profundamente em seu julgamento, prejudicando seu futuro e sua tranquilidade, a perder de vista. Depois de investir décadas de suas vidas e centenas de milhares de dólares (e, em alguns casos, milhões) de seus bolsos na Cientologia, eles entendem que aquilo não lhes faz bem e conseguem abandonar o barco. Não sem antes verem cortadas as suas relações com os que permanecem na Cientologia, e não sem sofrer processos movidos pelos advogados da organização. Ainda assim, muitos deles falam abertamente sobre como a Cientologia — em sua visão — não é uma boa ideia, e em muitos casos é abusiva no trato pessoal, leonina no trato financeiro, e fantasiosa/ineficiente no trato espiritual.
O que mais me dói, nesses relatos, é a constatação dos ex-membros de que jogaram fora décadas de suas vidas. Muitos entraram para a Cientologia ainda crianças ou adolescentes, levados por seus pais. Quando conseguem sair, vinte ou trinta anos se passaram, e com esse tempo, boa parte de suas vidas (em alguns casos, a porção mais potencialmente produtiva). É triste ver essa constatação no semblante dos que têm essa percepção. O olhar de quem investiu pesado, investiu errado, e não tem a menor possibilidade de recuperar o que considera ter perdido.
Para piorar, muitos desses ex-membros começam a perceber que a Cientologia não é de fato significativa para si mesmos anos antes de conseguirem abandonar a organização. O que justifica a insistência em ficar, apesar da constatação de que seria melhor sair? Esse assunto é bastante estudado não pela Teologia ou pela Psicologia, mas pela Economia. O mecanismo se chama “tirania dos custos irrecuperáveis”, ou “falácia dos custos irrecuperáveis”.
Esse mecanismo pode ser definido assim: os “custos irrecuperáveis” são aqueles que depois de incorridos não podem mais gerar retorno. Decisões feitas levando em consideração os custos irrecuperáveis em geral tendem a ir na mesma direção desses custos, na esperança de que, em algum momento no futuro, no total dos investimentos, esses custos terão valido a pena. O qualificador “tirania” vem do fato de que esses custos tendem a determinar as decisões, tendo poder de mando sobre elas. O qualificador “falácia” aponta para o fato de que esperar a recuperação desses custos é uma ilusão. Não há como reavê-los, e os prejuízos incorridos serão sempre maiores.
Penso que a maioria de nós é vítima da tirania dos custos irrecuperáveis ao longo da vida, em vários aspectos. Em alguns casos, a situação é prosaica e não gera maiores consequências, como no caso dos torcedores de um time que já passou de seu ápice e que, pela deterioração financeira do clube, já não tem mais a menor possibilidade de voltar a ser relevante no futebol nacional, ou até mesmo estadual. Mas, como pais, avós e amigos continuam torcendo, como foram décadas de dedicação à bandeira, o torcedor se empertiga no orgulho dos bons tempos, e segue em frente. Sonhar também é preciso, mesmo que o sonho nunca passe de uma miragem, cada vez mais distante na névoa do passado.
Em outros casos, a situação é mais grave, pois a tirania dos custos irrecuperáveis nos faz vítimas de nós mesmos. Nossa incapacidade de enxergar que continuar insistindo na antiga ideia é patentemente nocivo — e assim tem sido já há algum tempo — nos mantém atrelados a um passado cuja transposição para o presente ou para o futuro não passa de delírio.
Um exemplo claro disso é a insistência que vemos em amigos e conhecidos de propalar suas convicções e ideais e, por consequência, de investir em partidos que, no passado, nasceram para mudar o país, para trazer justiça à população, para mudar a cara da política, para avançar uma agenda de interesse da nação. O partido e o direcionamento nasceram de uma ideologia bela, com personagens idealistas, combativas, que nos davam orgulho. O partido cresceu, a ideia se expandiu, os correligionários apareceram e se organizaram. O resultado nas urnas melhorava a cada eleição e o partido, em seu ápice fez prefeitos, governadores, deputados, senadores e até o presidente. Com resultados tão promissores, com uma agenda tão necessária para o avanço do país, nós investimos com energia, com paixão.
Investimos tanto e nos dedicamos tanto aos ideais, que não percebemos as rachaduras, pelas quais começava a subir o cheiro empesteante da podridão. Continuamos investindo nosso tempo e nossos esforços mesmo diante de acusações de comportamento antiético dos representantes do partido. “É do jogo político: eles não têm como combater nossa agenda e nossas ideias, por isso atacam nossos quadros”, dissemos (e continuamos dizendo).
Indiciamentos, evidências, manchetes de jornal: CAPEMI, Coroa-Brastel, Escândalo da Mandioca, Ibraim Abi-Ackel, Escândalo da LBA, Esquema PC, privataria, compra de votos para a reeleição, SIVAM, Mensalão, Petrolão, e tantos, tantos, tantos outros, e a gente prendeu o nariz e seguiu em frente. Em algum momento, essa defesa toda deixou de ser racional e passou a ser racionalizada: justificávamo-nos com uma lógica que só faz sentido para nós mesmos, não resistindo a uma análise fria dos fatos.
Alguns (ou vários) de nossos amigos e conhecidos, que junto conosco se enfileiraram para defender os ideais do partido, da corrente política, perceberam que a deterioração já tirava qualquer sentido do investimento, e sabiamente se afastaram. “Vendidos, caducos, fracos”, dissemos (e continuamos dizendo). Livraram-se do investimento irrecuperável sem se entregar por completo à sua tirania, e rapidamente encontramos motivos para lhes desqualificar as opiniões. Não passavam de raposas em pele de cordeiro, e que bom que se revelaram. Nós, não: nós entendemos a importância do que fazemos, do que defendemos. Continuamos a investir nesse fundo mais que perdido.
De repente, não foi só o moleque atrevido que riu do imperador(triz), nu(a) na rua, à frente da comitiva. De repente eram muitos a cair na gargalhada daquele(a) que representa o ápice de nossos ideais. Para eles, já estava claro o ridículo de defender alguém que não é nem sombra daquilo que acreditamos (um dia, se formos honestos conosco mesmos). Mas seguimos em frente, ainda que já com o discurso modificado: “Temos que ser pragmáticos. Não é possível fazer diferente em um ambiente em que todos agem assim. É melhor que as alternativas, é o que temos. Deixa ele(a) trabalhar! Pelo menos ele(a) é esperto(a) suficiente para não ser pego(a), e é desse tipo de inteligência que precisamos. Não tem como limpar a sujeira sem se sujar um pouco”, e outros disparates é o que repetimos como mantra para justificarmos o que já é patentemente injustificável.
A cada dia, tornamo-nos mais ridículos. Defendemos o fim da Previdência sem admitir que o problema seria facilmente resolvido se os devedores — as grandes empresas a quem estamos defendendo, em última instância — pagassem o que devem. Defendemos uma “agenda social” sem admitir que esse discurso serve apenas de criadouro de massas eleitorais de manobra e de escudo para que nossos heróis nos roubem. Defendemos o fim do Estado e dos impostos sem conseguir enxergar que é o mesmo Estado que garante que não sejamos escravizados pelos que têm mais dinheiro e poder. Defendemos maiores impostos para “as elites” sem admitir que não adianta lutar por justiça fiscal, enquanto “nossos heróis” continuarem roubando o erário público sem a menor vergonha. Defendemos a volta da ditadura militar sem admitir que naquela época roubava-se tanto quanto hoje, e com a desvantagem de muitos viverem com medo, calados, sem a possibilidade nem de reclamar. Gritamos contra a volta da direita ao poder e contra a ineficiência dessa direita em arrumar os enormes problemas que enfrentamos, mas continuamos cegos para o fato de que foram os governos anteriores, que defendemos com tanto ardor, que criaram os problemas que vivemos.
Está na hora de percebermos que já não dá mais. Que, aliás, já não dá mais há muito tempo. Está na hora entendermos que somos vítimas da tirania dos custos irrecuperáveis. Não, não há o menor sentido em defendermos ideias que a realidade não sustenta. Está na hora de nos livrarmos de nossas ilusões. As palavras imortais de Cazuza estão sendo cantadas para nós: “A tua piscina tá cheia de ratos / Tuas ideias não correspondem aos fatos”. Por mais que doa, está na hora de admitirmos que já vimos errando há um bom tempo, e que não há sentido nenhum em continuarmos errando.
Diferentemente da música de Cazuza, nossos heróis nessa tragicomédia não morreram de overdose, mas continuam bem vivos, baratas políticas que são, estuprando-nos moralmente, gananciosamente aguardando nossos aplausos, nossas defesas, nossas palavras de ordem. Enquanto continuarmos assim, entregando-nos de mão beijada e bom grado, não estaremos (como já não estamos há muito tempo) defendendo ideais, nossa liberdade, a causa justa, ou qualquer ilusão semelhante. Estaremos apenas alimentando mais ainda a tirania dos custos irrecuperáveis. Pobres daqueles de nós que insistirem nessa insânia.
Agora vamos combinar uma coisa. O problema de andar no fio da navalha do agnosticismo político — que sempre tento trilhar, apesar de nem sempre conseguir, e de quase nunca me fazer entender — é que todos os lados da questão vão dizer “não é comigo, é com o outro que ele está falando. Eles são cegos. Eles não conseguem enxergar o lado certo dessa questão. Eles estão completamente equivocados, na melhor das hipóteses, ou são todos uns salafrários, o que é mais provável.”
Então, mas saiba o seguinte: é, sim, para você essa mensagem. É exatamente para você.
Foi de Cazuza, vou de Engenheiros! :) "Quem ocupa o trono tem culpa Quem oculta o crime também Quem duvida da vida tem culpa Quem evita a dúvida também tem Somos quem podemos ser Sonhos que podemos ter" Não temos nem 30 anos de voto direto. Que os sonhos continuem, mas com maior conhecimento e engajamento político, melhorando o bairro, a cidade, o país. Nada fácil, não mesmo...Afinal, a crise na educação não é uma crise, mas sim, um projeto (Darcy Ribeiro).
Não, não é fácil, Jaylei. mas como eu sempre digo para meus alunos, "fácil é dormir nas férias. O resto dá trabalho". Por isso insisto tanto nesse assunto. Por isso quero que as pessoas saiam de suas zonas de conforto e percebam que muitos de seus investimentos são em ilusões, e das mais perigosas. Bom fim de semana, e bom feriado procê.
Parabéns pelo texto. Concordo em gênero, número e grau. Se permitires, gostaria de compartilhar.
Puxa, Humberto, muito obrigado! Se achar que vale a pena, claro que pode compartilhar. Serei grato por isso, aliás! Um bom feriado procê!
Caro Ruy, Antes de qualquer outro ponto, parabéns pelo honesto convite à reflexão de todos que já tiveram ideais de uma sociedade mais justa. Gostaria apenas de discordar do comentário "Defendemos a volta da ditadura militar sem admitir que naquela época roubava-se tanto quanto hoje, e com a desvantagem de muitos viverem com medo, calados, sem a possibilidade nem de reclamar." Tenho 54 anos e apesar de sempre ter votado com a esquerda (Roberto Feire, Lula e Dilma, entre outros), nasci e me criei em uma família de muitos militares, entre eles um pai que se aposentou como capitão de mar-e-guerra e um padrinho que se aposentou como general de exército. Ambos já falecidos, deixaram apenas os imóveis que moravam quitados para suas viúvas. É verdade que na época da ditadura, alguns poucos oficiais graduados aproveitaram a situação para complementarem suas rendas como testas de ferro de algumas multinacionais que se instalaram no Brasil nessa época (trabalhei em uma delas), mas nada que se compare à roubalheira de esquerda e de direita que vemos hoje diariamente estampada nos jornais. Esses oficiais nada mais eram que a exceção que justifica a regra. A grande maioria dos militares vive de forma modesta dentro de suas vilas militares e posso lhe dizer de sem medo de errar que a maioria deles trabalha em locais onde a maior parte da população brasileira não tem interesse de trabalhar. Creio que os treze anos de governo do PT nos mostraram o lado negativo das nossas políticas sociais: o que os estudiosos chamam de "comportamento disfuncional". Isso me chamou a atenção quando soube de uma familiar que estava para contratar uma pessoa para trabalhos domésticos em MG que a candidata recusou um emprego que pagava 1,5 salário-mínimo quando soube que teria a carteira assinada(!!). A explicação era que se ela tivesse a carteira assinada, teria de abrir mão do bolsa-família, que lhe dava algo próximo do salário-mínimo. Em outras palavras: para que ralar um mês inteiro para ganhar um salário se eu consigo não trabalhar e ganhar quase isso? Mas, por favor, não me entenda mal. Apesar de não conseguir vislumbrar uma saída constitucional para o imbróglio criado pelas castas corporativistas do funcionalismo público (em especial no Legislativo e no Judiciário), não estou aqui a defender a volta da ditadura nem da direita raivosa da década de 60. Mas, na minha opinião, os militares ainda são uma das poucas reservas morais que esse país possui. O problema é que sempre se sabe onde uma ditadura começa, mas nunca quando ela vai terminar... Atenciosamente, João Alberto
Primeiramente, muito obrigado por seu tempo e por sua atenção, João Alberto. Seu comentário me fez pensar muito. Sim, é verdade que raros foram os militares que se locupletaram durante a Ditadura, e a maioria deles era frontalmente contra os abusos institucionais cometidos pelo DOPS e pelo DOI/CODI. Tenho amigos no Exército, e sei do trabalho indispensável que as Forças Armadas desempenham em nosso país, na vasta maioria das vezes sem que o cidadão nem saiba que são eles que estão realizando esse trabalho. A situação a que me refiro é semelhante ao tráfico de drogas nas favelas. 99,9% dos habitantes das favelas nada têm a ver com o tráfico: o traficante é exceção. Ainda assim, não há como escapar dos efeitos nefastos que ele provoca. Durante a Ditadura, a vasta maioria dos componentes das Forças Armadas continuaram sua vida honrada a serviço de nossa Pátria. Ainda assim, o efeito causado pelas exceções não pode ser ignorado. Como eu coloquei, CAPEMI, Coroa-Brastel, Grupo Delfim foram casos que nos marcaram em termos de corrupção. Sem falar no escândalo do Rio-Centro e em outras "operações" subreptícias que não condizem com os ideais das Forças Armadas. De novo: eram exceções, e a vasta maioria de nossos cidadãos de caserna são pessoas honradas, éticas, lutando por amor ao Brasil (um amor que a maioria de nós não é capaz de sentir). Mas ainda assim, os efeitos provocados pelas exceções foram marcantes. Hoje é pior? Só em termos de volume, porque o problema é o mesmo. E sem o medo de um regime totalitário. Enfim, o trecho a que você se refere foi escrito para mostrar que é irreal buscar uma volta aos "áureos tempos", pois isso é uma ilusão. Mais que isso: é uma perigosa alucinação. A solução, concordo com você não é a volta da ditadura, nem da direita raivosa dos anos 60/70. E eu também nã sei como sairmos do imbróglio em que nos encontramos. Ainda assim, não posso me furtar de apontar o caminho errado só porque não sei qual o caminho certo. Quem está perdido na montanha ainda tem a obrigação de ajudar seus amigos a não caírem no abismo logo ao lado. Mais uma vez: obrigado pelo comentário. Boa semana procê.
Pingback:É uma maratona, seu trouxa | Confrariando
[…] é contra essa não-venezualização, sugiro fortemente a leitura — ou releitura — do texto A tirania dos custos irrecuperáveis, que publiquei algumas semanas atrás). Hipocritamente não reclamamos da farsa jurídica sobre a […]