Quando uma família se estabelece em um bairro, preocupa-se com a presença de elementos comuns que constituem o que chamamos de um bairro. Para além do aspecto das casas e das ruas, estabelecimentos como uma farmácia, o mercado de bairro, uma padaria, a costureira, um boteco – para quem aprecia – são elementos tidos como essenciais na vida de todos quando decidimos nos instalar em um determinado local. Se você mora em uma cidade pequena, não existirão tantas opções. Não é como morar em uma capital ou uma cidade grande, onde podemos desviar nosso olhar de onde moramos para dizer que vivemos – ou pelo menos, gostaríamos de viver – em outro.
A barbearia é um desses locais. A barbearia ainda se mantém como um reduto de projeções masculinas. Um lugar em que preocupações constantes com o decoro para o mundo não se aplicam em parte, mas no qual outras regras são seguidas. É um sinal dos novos tempos o movimento de resgatar a barbearia como um espaço masculino cuja finalidade é permitir-se um lugar no mundo, mesmo que arregimentado pelas tendências de consumo recentes.
Grandes cenas de filmes e do universo da música se passam em uma barbearia. Um exemplo: Grand Torino (2008), dirigido pelo Clint Eastwood, tem uma ótima cena em uma barbearia:
https://www.youtube.com/watch?v=GtSJOUOEJ8o
Outro exemplo: o clipe Subirosdoistiozim (2011), do rapper Criolo, tem um belo encaminhamento do tema, com pérolas de sabedoria no bom português brasileiro:
Espectro das transformações sociais de nosso tempo, o local ainda guarda em si o reduto que se acredita existir de que as coisas poderiam ser, voilá, como antigamente?! As famosas cadeiras de barbear Ferrante. Pôster da seleção campeã. Flâmula do time de futebol. A moça da capa da revista pregada em um canto, contra a parede da entrada e visível somente quando sentado. As revistas em um canto, ao lado das cadeiras. Azulejo a meio pé-direito e talha d’água, de filtro de vela. Afinal, a barbearia é uma cápsula do tempo universal, mas também por isso, e na verdade e sempre, é uma casa brasileira.
Normalmente, na infância, frequenta-se a barbearia junto com o pai, que o leva àquele local, em que homens se fazem presentes. O progenitor apresenta o filho, neófito naquela gleba, reduto de uma ideia de masculinidade. São estabelecidas as regras e a etiqueta necessárias ao filho continuar a frequentá-la. Seja educado. Cumprimente. Fala bom dia. Aperta a mão, olho no olho. Como você teme mais o pai do que o mundo, você faz e obedece. Mesmo que ele peça com jeitinho, ainda você quer mostrar que já sabe o que faz. Demora para descobrir que não, mas um dia a gente aprende, no duro.
Depois do rito de apresentação, seguem-se temas recorrentes e esperados: o tempo, o time de futebol, os lances da semana, uma tragédia escorrida do jornal, mais um escândalo governamental. Colagem da escola em um flash de passar d’olhos a devorar as revistas: o friso da porta do novo modelo à meia-luz aquelas curvas escondidas pela echarpe a potência do motor mais uma das notícias populares o último atentado a bomba arrasa-quarteirão capa da revista rainha da bateria do carnaval passado pivô do escândalo com o excelentíssimo senador da República um desacato a charge do Millôr sobre o presidente general que amava mais os cavalos do que a gente.
E tudo bem se disser que sempre me cismou esse código de conduta das barbearias, meio mal não dito? Falo das barbearias tradicionais. O barbeiro participa do jogo sem nada dizer: brinca com o filho, deixa-o mais à vontade. Tudo é mais fácil se você não saiu de casa, ou do bairro, ou da cidade em que mora. Na comodidade da terra natal, tudo fica fácil: se não se conta com um pai, pode-se frequentar a barbearia ao lado do trabalho, e a cadeira de corte vira uma extensão da mesa do boteco próximo, no esquema fim de expediente. Como disse, se você mora em uma cidade razoavelmente grande, sobretudo no coração dos seus cidadãos, sempre vai encontrar um local desses para chamar de seu.
Agora, quando você é uma presença só no mundo – e não precisa de muito para isso acontecer, pois basta manter como exercício diário sair de si pelo menos uma vez ao dia, todos os dias – você encasqueta de descobrir um local em que se encontre algo de familiar, mas novo. Na mocidade, advinha-se o primeiro voo cego de independência pela escolha de um novo barbeiro, diferente da escolha paterna. Sofre ainda mais a alma nômade, que muda o espírito e o corpo para outra terra, para além-mar, trás-dos-montes.
Enquadrado no segundo caso, não sossego apartado, em coxo fechado. Ao morar durante anos em Campinas, passei uma boa década a procurar um local assim, sem sucesso. Um exemplo é o conhecido estabelecimento de 70 e outros tantos anos de existência. Espelhado para tudo quanto é lado, aquele comércio é infinita vitrine de ilusão de ótica, localizado no centro daquela cidade a bater no peito que possui mais de um milhão de habitantes. Narro.
Na primeira vez, depois da breve entrevista do barbeiro, ficou a impressão de não pertencer àquele lugar, em que todos sabiam disso menos eu. Acho que já não passei na primeira pergunta: “De onde você é?” Não sendo da cidade, a coisa poderia ter parado ali, mas demora a gente saber o lugar da gente, né? E a reação foi recíproca. Na segunda vez, impressionou-me a direção das conversas, que afiançavam uma fé inabalável sobre a política passada: “Como era bom o tempo dos militares. Não havia essa baderna!” Na terceira e derradeira vez, a ignomínia foi completa, pois não se aceitava cartão. Só dinheiro vivo. Uma pausa de silêncio e o olhar de todos os barbeiros, em caleidoscópios de desprezo.
Saindo dali, percebi que me faltava uma figura singular, mas de suma importância: um conterrâneo já frequentador, que conhecesse os tais códigos de etiqueta e bom comportamento. Na paideia clássica, Heródoto arregimentaria um conterrâneo grego em terra estrangeiro. Um proxeno. Fazia-me falta a figura de um amigo dessa natureza, que morasse na vizinhança, que me botasse na roda. Coisa de 5ª série, mas a lógica é a mesma.
Ao mudar para uma cidade próxima, mas bem menor, a esperança se reavivou. No entanto, um aspecto se sucedia nas novas experiências: as barbearias já haviam sido tomadas pela febre consumista que reside em um selo gourmet – ou vintage, como queira. Ainda assim, como os outros locais que enumerei, a barbearia se torna uma forma de se conhecer o espírito do lugar. Fui me aventurar, claro. Também houve decepções. Segue o relato.
Na primeira tentativa nessa nova cidade, o sujeito abrira a loja junto a um posto de gasolina. Não bastasse a confusão entre um local de rápida passagem, conveniência a quem fosse menos ao cliente, havia um pouco de esforço em chamar o local pelas coisas antigas: bancos de cinema restaurados, coleção de carrinhos de metal, entre outras coisas. O problema residia no fato de que as conversas tabuladas pelo barbeiro em questão resvalavam em uma figura política peculiar: Maluf. Isso diz tudo! Quando, na mesma conversa, questionou o porquê de não se poder mais usar abertamente a expressão “macaco” impunemente. Bem, diz o bruxo do Cosme Velho: “Há coisas que se dizem melhor calando”. Fico com o nosso bardo, sempre.
Próxima! A segunda investida se identificava como uma “barber shop“. Legal até: tinha Fliperama, mesa de bilhar personalizada, figuras de cera de cantores e personagens de HQs, bebida inclusa, acepipes. Nesse caso, a coisa incomodou, porque era tudo feito para te lembrar que aquele local era tudo, menos uma barbearia. E não havia filas. Estranho. As coisas precisam estar no seu devido lugar, ao menos para si mesmo. Questione, leitor-leitora! Cada um na loucura de seu cada qual. Na segunda vez em que fui cortar o cabelo, o barbeiro de quem gostei do corte e serviço saiu (ou saíram com ele) e, cereja nesse sundae, o Maluf apareceu de novo na conversa. Transitei.
O terceiro lugar foi um alento para a verborragia recente: o senhor perguntava com gestos concisos o corte que se queria, que ao gosto ou não do freguês, saia. Ao sentar-se na cadeira, o cliente já recebia no colo o último número da Playboy, para ler as belas crônicas do Mário Prata. Tá bom, vi um pouquinho do ensaio da menina, mas li toda a crônica e a entrevista, tá certo? A função social da publicação estava garantida, pois bem. Entretanto, faltava algo: o parlatório. Nesse quesito, havia uma força maior a impedir a plenitude da experiência: o cognome do barbeiro era Mudinho. Com a devida correção política, aquilo de não conversar com alguém que vai ter o controle de sua vida durante alguns instantes me incomodava. Nessa demanda, é claro que fui a outros lugares.
Tentativa e erro. Mas encontrei. O preço convidava. No local, havia também o anúncio de “Afia-se facas e tesouras”, assim mesmo com o correto erro de concordância do português mais popular brasileiro. Havia fila. Um alento, porque a fila é uma das instituições democráticas mais interessantes. Isso até quando permitirem, né?
Dessa vez, o arremate da experiência foi a presença de livros, vários, todos, junto das revistas, nada complicadas, de criança. Você cresce, e as leituras ficam exigentes. Porque havia agora também um novo companheiro. Eu agora era a sentinela. Meu filho precisava viver isso, lucidamente. Até que ele tenha a sanha dos ventos do mundo a corroer as entranhas, e queira ele próprio buscar seu lugar no mundo.
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* O título é uma alusão e uma homenagem ao livro Zen e a arte de manuteção das motocicletas, de Robert M. Pirsig, em que um homem viaja de moto com seu filho.
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